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Proc.Nº 377/95 ACÓRDÃO Nº 17/97 Sec. 1ª Rel. Cons. Vitor Nunes de Almeida
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional: I - RELATÓRIO:
1. - No dia 24 de Maio de 1993, na sequência de uma denúncia contra ele apresentada, por ter recusado identificar-se perante guardas da G.N.R. - facto pelo qual veio a ser julgado e condenado no Tribunal Judicial da Comarca de Lagos na pena de multa, com execução suspensa por três anos, sentença esta transitada em julgado A... veio a ser detido por aqueles guardas da GNR e conduzido ao posto de Lagos, onde, segundo queixa que posteriormente apresentou, acabou por ser agredido por MJ.
Sobre a queixa apresentada contra o agressor, nos Serviços do Ministério Público da Comarca de Lagos, veio a recair despacho no sentido de considerar incompetente o foro comum para apreciar a denúncia, sendo os autos remetidos ao Juiz de Instrução Militar, entidade considerada competente, no referido despacho, para averiguar os factos e instruir os autos.
Feita a instrução, os autos foram remetidos ao Tribunal Militar Territorial de Elvas para ser aí ser deduzida acusação contra o soldado da GNR, MJ, o que veio a suceder, sendo o arguido acusado da prática do crime de violências desnecessárias, previsto e punido pelo artigo 88º do Código de Justiça Militar (CJM).
Por decisão do Colectivo dos juizes do Tribunal Militar de Elvas, de 5 de Abril de 1995, o arguido veio a ser condenado pela prática de um crime de abuso de autoridade por rigor ilegítimo, previsto e punido no artigo
95º, com referência ao artigo 94º, alínea e) do CJM, na pena de 10 meses de presídio militar.
Para o efeito baseou-se o Tribunal na factualidade que seguidamente se transcreve, consignada no acórdão:
'1. No dia 24/5/93, cerca das 19.45 horas, foi recebida no Posto da G.N.R. de Lagos uma chamada telefónica, solicitando a sua intervenção, para sanar uma contenda, que estava a ocorrer na localidade de Almádena, entre 2 indivíduos. Ao local deslocaram-se o cabo V... e o réu, a mando do Comandante do Posto. Aí constataram que os contendores eram, por um lado o ofendido A... e a testemunha S..., que no entanto, não chegaram a ofender-se corporalmente. Foi pedida a identificação ao A..., que para o efeito se deslocou a casa a buscar o Bilhete de Identidade, que entregou ao cabo V..., mas que lho voltou a tirar das mãos, quando aquele se preparava para o identificar. Assim, porque se recusasse a fornecer os elementos de identificação, foi o ofendido detido e conduzido ao Posto da G.N.R. de Lagos. Aí persistiu na recusa em se identificar, apesar de instado a tal pelo Comandante, então, do Posto, a testemunha Sargento Chefe J.... O ofendido, que estava exaltado, deu alguns murros na secretária onde se instalava o Comandante do Posto e dirigiu para o cabo V... e para o réu as expressões 'sois uns mentirosos e uns incompetentes e não sabeis o que andais a fazer'. De imediato, o réu, que continuava de serviço, desferiu 2 socos no lado esquerdo da cara do ofendido, projectando-o de encontro à parede que estava por trás a cerca de 2 metros. Com esta actuação, produziu-lhe, o réu, como consequência directa e necessária, edema na região maxilar inferior esquerda e fractura do ramo ascendente do maxilar inferior esquerdo. O ofendido porque estava a sangrar e porque sentia dores na zona atingida, pediu para ser conduzido ao Hospital, pretensão que foi de imediato satisfeita. Aí, pelas 21.25 horas, o ofendido declarou ter sido agredido e à observação, apresentava pequena lesão de cerca de 4mm no lábio inferior, no canto esquerdo da boca. Voltou novamente para o Posto, onde pernoitou. No dia seguinte, da parte da manhã foi presente no Tribunal, aonde regressou pelas 14 horas, tendo, então, sido submetido a julgamento em processo sumário, com base na desobediência e nas injúrias, tendo a final sido condenado em pena de multa cuja execução foi suspensa pelo período de 3 anos. De seguida, por que se sentisse pior, deslocou-se novamente ao Hospital de Lagos, onde voltou a referir ter sido agredido e mostrando dificuldade de mobilizar o maxilar inferior e edema da face lateral esquerda e submetido ao R.X. constatou-se apresentar fractura do ramo ascendente do maxilar inferior. Para tratamento a estas lesões foi o arguido internado no Hospital Distrital de Faro, em 27/5, operado a 1/6, tendo tido alta em 7/6/93. Na intervenção cirúrgica procedeu-se à colocação de material de osteossíntese. Como sequela ficou com uma cicatriz operatória com cerca de 6 cm na região mandibular inferior esquerda e consequentemente alteração estética aparente. O réu actuou de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo ser tal conduta contrária ao Direito. O ofendido apresentou queixa contra o réu em 22/9/93 na Delegação da Procuradoria da República de Lagos. O réu é primário. Foi louvado uma vez e encontra-se na 1ª classe de comportamento. Integram o agregado familiar do réu, a mulher, doméstica e três filhos, todos menores. Vivem em casa arrendada e têm veículo automóvel, que ainda não está totalmente pago. Foi incorporado na G.N.R. em 3/8/81. Como habilitações literárias tem a 4ª classe da instrução primária.
* Nada mais se provou. Não resultaram provados os seguintes factos: que a decisão condenatória proferida no processo sumário contra o ofendido haja transitado em julgado; que a cicatriz tenha carácter de parmanência; que as lesões hajam causado um período de doença de mais de 15 dias com incapacidade para o trabalho; que o ofendido estivesse munido de espingarda caçadeira a proferir ameaças de morte contra o Santos Rodrigues; que o Cabo tivesse informado o ofendido das consequências que poderiam advir da sua recusa em fornecer a identificação; que a actuação do queixoso provocasse a queda de objectos no chão; que o réu se encontrasse do lado direito do ofendido; que o tivesse afastado da secretária, agarrando-o com a mão e puxando-o para trás; que a acção do réu não tenha provocado qualquer lesão; que o ofendido tenha dito que lhe tinham arrancado um dente; que o ofendido tenha jantado e almoçado no Posto; que não tenha feito queixas de ordem física; que em audiência, no processo sumário, o ofendido não tenha feito referência à agressão.
* A materialidade acima dada como provada colhe a sua demonstração, quanto aos factos e suas consequências nas declarações do ofendido, prestadas de forma clara, precisa, linear e absolutamente plausíveis e verosimeis, ao contrário, das declarações do réu e depoimentos dos restantes elementos da G.N.R., plenas de vazios e contradições e de uma inverosimelhança manifesta, atroz e lamentável e, ainda nos elementos clínicos juntos aos autos, que corroboram e complementam a versão do ofendido. Em situações como a dos autos, em que os factos acontecem no interior de instalações policiais, com toda a inerente confidencialidade, se bem que devamos sempre averiguar eventuais motivações não sérias para a denúncia contra os agentes de autoridade, também devemos valorar, de forma mais evidente o depoimento do queixoso, quando é merecedor de credibilidade. Quanto à personalidade e modo de vida do réu, o Tribunal baseou-se, tão só nas declarações do próprio, aliada à nota de comportamento e certificado de registo criminal.'
2. - O arguido, não se conformando com esta decisão, interpôs recurso para o Supremo Tribunal Militar (STM), alegando ter havido erro de facto notório na apreciação da prova e suscitando a incompetência material do Tribunal, na medida em que, no caso, inexiste qualquer crime essencialmente militar e deduzindo ainda a inconstitucionalidade da norma do artigo 418º, nº1, do CJM, por violação do artigo 32º, nº1. da Constituição.
O STM, por acórdão de 22 de Junho de 1995, negou provimento ao recurso, depois de afastar as questões que o recorrente tinha suscitado nas suas alegações, inclusive a questão da inconstitucionalidade do artigo 418º, nº1, do CJM.
O arguido notificado desta decisão, veio interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo das alíneas b) e g) do nº1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, pretendendo que se aprecie a conformidade constitucional da norma do artigo 418º, nº1, do CJM.
3. - Neste Tribunal, tanto o recorrente como o Ministério Público produziram alegações, tendo o recorrente formulado a seguinte conclusão:
'Deve ser julgada inconstitucional a norma do artigo 418º, nº1, do Código de Justiça Militar, por violação do artº 32º, nº1, da Constituição da República Portuguesa, na medida em que impede a apreciação da matéria de facto no Tribunal de Recurso violando assim as garantias de defesa mais elementares doa arguido em processo penal'.
Pelo seu lado, o Procurador-Geral adjunto, nas suas alegações, concluíu da seguinte forma:
'1º Não viola o direito a um segundo grau de jurisdição, abarcando a própria matéria de facto que fundou a condenação penal, a norma constante doa artigo 418º, nº1, do Código de Justiça Militar, interpretada e aplicada em termos de consentir ao Supremo Tribunal de Justiça [só por mero lapso, pois trata-se do Supremo Tribunal Militar], sendo caso disso, o uso dos poderes de controlo da decisão de facto que os artigos 410º e 433º do Código de Processo Penal em vigor conferem ao Supremo Tribunal de Justiça - e que, segundo a jurisprudência constitucional, respeitam, em termos bastantes, aquela garantia.
2º Termos em que deverá improceder o recurso.'
Corridos que foram os vistos legais cumpre apreciar e decidir. II - FUNDAMENTOS:
4. - O recorrente apenas suscita no recurso a questão da
(in)constitucionalidade do artigo 418º, nº1, do CJM. Importa, por isso e antes de mais, analisar o teor da norma em causa:
'Artigo 418º
(Julgamento da matéria de facto)
1. O tribunal julgará de facto definitivamente, segundo a sua consciência, com plena liberdade de apreciação, e de direito.'
Segundo o recorrente, quando o acórdão do STM refere que 'nos termos do artigo 418º nº1 do C.J.M. se tem por definitivamente fixada a matéria de facto apurada pelo tribunal recorrido' infringe-se o princípio do duplo grau de jurisdição em processo penal militar.
O acórdão recorrido fundamentou assim o afastamento da questão de inconstitucionalidade levantada pelo recorrente:
'Não foram arguidas nulidades nem o processo enferma de alguma que se deva oficiosamante conhecer, pelo que, nos termos do artº 418º, nº 1 do C.J.M., se tem por definitivamente fixada a matéria de facto apurada pelo Tribunal recorrido. Contra esta conclusão se insurge, porém, o recorrente ao alegar, por um lado, a inconstitucionalidade de referido artº 418º, nº 1 e, por outro, a existência de erro notório na apreciação da prova. São duas questões diversas que importa analisar e resolver. Determina o artº 32º, nº 1 da Constituição que 'o processo criminal assegurará todas as garantias de defesa'. Embora o texto constitucional e bem assim a Declaração Universal dos Direitos do Homem e a Convenção Europeia dos Direitos do Homem não consagrem, entre os direitos de defesa, a existência do duplo grau de jurisdição, a doutrina e a jurisprudência têm entendido que, tal como consta do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, o direito ao recurso é uma das garantias de defesa do processo criminal e, mais do que isso, que o recurso deve abranger tanto a matéria de direito como a de facto. Todavia no que toca ao âmbito do recurso da matéria de facto, tanto a jurisprudência constitucional como a doutrina concordam em que tal âmbito não é irrestrito, podendo a apreciação pelo Tribunal Superior limitar-se a controlar se o julgado na instância o foi correctamente. Por isso, tem o Tribunal Constitucional entendido serem conformes à Constituição os artºs 410º e 433º do Código de Processo Penal vigente. Preceitua este artº 433º que 'sem prejuízo do disposto no artº 410º, nºs 2 e 3, o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame da matéria de direito' e os nºs 2 e 3 do artº 410º citado dispõem: '2 - Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso à matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação; c) Erro notório na apreciação da prova.
3 - O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso à matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada'. De harmonia com estes transcritos normativos, o Supremo Tribunal de Justiça, no que toca à matéria de facto, pode anular a decisão recorrida se existir nela insuficiência, contradição insanável, erro notório de apreciação ou inobservância de preceito cominado sob pena de nulidade insanada. Como se referiu, o Tribunal Constitucional tem entendido ser suficiente esta intervenção do Supremo Tribunal de Justiça para assegurar o direito ao recurso em matéria de facto. No foro militar, como se verá, é mais ampla a intervenção do Supremo Tribunal Militar no que toca à matéria de facto. O artº 418º, nº 1 do Código de Justiça Militar determina: 'O Tribunal julgará de facto definitivamente, segundo a sua consciência, com plena liberdade de apreciação, e de direito'. Todavia, tem este Supremo Tribunal afirmado por várias vezes que a decisão do tribunal de instância sobre matéria de facto só é definitiva se não existir nulidade que implique a anulação do julgamento. E, por força do artº 457º, nº 2 do C.J.M., existindo nulidade essencial ocorrida na audiência de julgamento, o que inclui a prolação do acórdão decisório, o Tribunal Superior, mesmo que ela não constitua fundamento de recurso, anulará o julgamento. Nulidades essenciais são, nos termos do artº 458º do C.J.M., entre outras: a deficiência, obscuridade ou contradição no julgamento da matéria de facto; a preterição de formalidade determinada na lei sob pena de nulidade; e a preterição de acto substancial para a boa administração da justiça, que influa ou possa influir na boa decisão da causa. Comparando este regime com o prescrito no Código do Processo Penal, verifica-se: a) No C.P.P. apenas se prevê como razão para a anulação a insuficiência ou a contradição na decisão sobre matéria de facto, ao passo que o C.J.M. inclui ainda a obscuridade; b) O C.P.P. só admite como causa de anulação a preterição de formalidade cominada com nulidade insanada, enquanto o C.J.M. admite mais a preterição de qualquer outro acto substancial para a boa administração da justiça, com influência possível na boa decisão da causa.
É certo que o C.P.P. fala no erro notório na apreciação da prova, não referido no C.J.M., mas tal erro integra sempre ou contradição ou obscuridade no julgamento da matéria de facto. Deste modo, haverá que concluir que o artº 418º, nº 1 do Código de Justiça Militar, pelo menos na interpretação que este Supremo Tribunal sempre lhe tem dado, não atinge as garantias de defesa constitucionalmente asseguradas no processo criminal, pelo que é conforme à Lei Fundamental. Mesmo que assim não fosse, mesmo que o citado artº 418º, nº 1 fosse inconstitucional e, consequentemente, se tivesse de recorrer subsidiariamente aos artºs 433º e 410º, nºs 2 e 3 do Código do Processo Penal, o resultado prático seria o mesmo pois, como se referiu, não existe na decisão recorrida insuficiência ou contradição na matéria de facto , inobservância de requisito ou formalidade, ou erro notório na apreciação da prova. O recorrente alega a existência deste erro notório resultante de, segundo o seu juízo, a prova produzida em julgamento conduzir a diferentes conclusões das que foram firmadas pelo aresto recorrido. Todavia, como escreve o Conselheiro Maia Gonçalves: 'De salientar, porém, que os vícios apontados no nº 2, como fundamento do recurso, têm que resultar do próprio texto da decisão recorrida (não sendo, assim, portanto permitida a consulta a outros elementos constantes do processo), por si ou conjugado com as regras da experiência comum. Serão, portanto, casos de erro notório da apreciação da prova aquele em que um acórdão recorrido menciona que o arguido estava às 10 horas e 30 minutos desse mesmo dia em Lisboa e aquele em que diga que o arguido deu um tiro procurando atingir o coração da vítima, que efectivamente atingiu e esfacelou, mas que não houve da sua parte intenção de matar' (Código do Processo Penal anotado, pág. 477). Também o Supremo Tribunal de Justiça entendeu que 'o erro notório na apreciação da prova, como é concebido, só existe quando esse erro é de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem médio facilmente dele se dá conta' (acórdão de 9 de Janeiro de 1991, in Boletim do M. Justiça, nº 403, pág. 154). Da análise do acórdão recorrido não resulta a existência de erro notório na apreciação da prova, mas somente que o Tribunal, ponderadas todas as provas, considerou provados os factos e não provados outros de entre os alegados, em desacordo com o recorrente, mas dentro das suas competências de julgador - judex judicare debat secundum alegada e probata partium et secundum conscientia sua. E nada existe, no processo ou fora dele, que possa legitimamente contrariar o juízo de valor feito pelo acórdão recorrido quanto à matéria de facto que, portanto, se tem por definitivamente fixada.
Faz-se referência, no acórdão que se transcreveu parcialmente aos artigos 457º, nº 2, e 458º, ambos do Código de Justiça Militar (CJM). Para melhor compreensão da questão de constitucionalidade convirá desde já ter presente o texto destas duas normas: Artigo 457º
(Conhecimento de nulidades)
1. ....
2. Se, porém, o processo enfermar de alguma nulidade essencial ocorrida na audiência de julgamento, o tribunal, embora ela não constitua fundamento de recurso, assim o declarará oficiosamente, mandando que seja reformado no mesmo tribunal de instância. Artigo 458º
(Nulidades essenciais)
São nulidades essenciais somente as indicadas nos números seguintes:
............ c) Deficiência, obscuridade ou contradição no julgamento da matéria de facto;
5. - Importa, assim, analisar se o artigo 418º, nº1, tal como foi interpretado e aplicado, viola ou não as garantias de defesa do arguido, constantes do artigo 32º, nº1, da Constituição. A análise há-de reportar-se aos termos em que a norma foi interpretada e aplicada no processo - sublinhe-se desde já este ponto - sem perder de vista que a decisão recorrida veio a incidir sobre o julgamento realizado em primeira instância e não pôde deixar de ter em conta os termos em que foi proferida a correspondente decisão, a cuja transcrição, por esta razão, atrás se procedeu na parte relevante para a posição a tomar em sede de fiscalização da constitucionalidade.
Com efeito, tal como já teve o Tribunal Constitucional oportunidade de deixar dito, 'no domínio dos processos de fiscalização concreta de constitucionalidade, ao contrário do que acontece em sede de fiscalização abstracta, não é possível dissociar-se a norma ou normas postas em causa, da própria relação jurídica substancial a que foi ou forma aplicadas, nem tão pouco das circunstâncias objectivas em que essa aplicação ocorreu. E isto é assim porquanto será a partir da norma concretamente aplicada que se há-de formar o juízo deste Tribunal sobre a eventual invalidade constitucional da respectiva norma' (cfr. Acórdão nº 249/90, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 16º vol., pag. 751 e segs, bem como ibidem, Acórdão nº 210/90, pag. 565 e segs.).
É verdade que o S.T.M. entendeu como definitivamente fixada a matéria de facto, e portanto limitou-se a conhecer do direito. Cabe todavia assinalar que aplicou o artigo 418º, nº 1, do CJM, não isoladamente mas em conjugação com outras duas normas desse Código. Assim, verificou previamente que não ocorriam nulidades essenciais na audiência de julgamento, nela incluída a prolação do acórdão recorrido, uma vez que, nos termos do artigo 457º, nº 2, do CJM, em caso contrário, teria de anular a decisão proferida.
Para o efeito, teve em conta o disposto no artigo 458º do CJM, norma em que o legislador procedeu ao enunciado dessas mesmas nulidades. E, embora no Código de Justiça Militar não se faça referência ao 'erro notório na apreciação da prova', que constitui fundamento de recurso no processo penal comum segundo a alínea c) do nº 2 do artigo 410º do CPP, entendeu que esse vício da decisão é também ele relevante em processo militar penal, a título de nulidade essencial. Para o efeito, considerou o Tribunal recorrido que 'erro notório na apreciação da prova' deve ser abrangido pela referência contida no CJM à contradição ou obscuridade no julgamento da matéria de facto expressamente prevista como nulidade essencial na alínea c) do artigo 458º desse Código.
A posição do Supremo Tribunal Militar foi muito clara no sentido de que se eventualmente ocorresse o vício em questão, porque o mesmo valeria por nulidade essencial, o julgamento seria anulado, em aplicação do artigo 457º, nº
2, do Código de Justiça Militar (CJM).
De alguma forma, o Tribunal recorrido procedeu à interpretação das referidas normas do CJM sobre nulidades à luz e em conformidade com o que se dispõe no CPP em matéria de fundamentos do recurso em processo penal. Designadamente entendeu que valeriam por nulidades cometidas em processo penal militar os vícios da decisão que, nos termos do nº 2 do artigo 410º do CPP, fundamentam recurso susceptível de ser conhecidos por instância que em regra, no processo penal comum, só conhece da matéria de direito. É bem clara neste sentido a afirmação, já atrás transcrita no contexto em que vem inserida, de que
'como se referiu, não existe na decisão recorrida insuficiência ou contradição na matéria de facto, inobservância de requisito ou formalidade, ou erro notório na apreciação da prova'.
O objecto do presente recurso é, consequentemente, a norma do artigo
418º, nº 1, do CJM, não no sentido literal e imediato resultante da redacção que lhe foi dada pelo legislador, mas no sentido de que não estará vedado ao S.T.M., para o efeito de apurar da existência de nulidades essenciais que viciem o julgamento anterior, o acesso à matéria de facto. São assim convocadas para a apreciação a que haverá agora de se proceder também as normas do nº 2 do artigo
457º e a alínea c) do artigo 458º, ambas contidas no mesmo Código de Justiça Militar.
Não restam dúvidas, portanto, de que o artigo 418º, nº 1, do CJM, foi interpretado como conferindo ao tribunal superior, em recurso, poderes de cognição em matéria de facto não inferiores àqueles que são atribuídos ao tribunal competente em sede de 'revista alargada' no processo penal comum. Poderá até dizer-se que são mais abrangentes esses poderes neste particular, na medida em que, tal como refere a decisão em apreço, nulidade essencial será também a obscuridade da decisão recorrida não referida no CPP como fundamento do recurso.
Neste contexto, haverá que encarar a questão de constitucionalidade que vem suscitada. A posição a tomar não pode deixar de se colocar por forma similar à posição que o Tribunal Constitucional vem seguindo quando é chamado a analisar o vigente sistema de recursos sobre a matéria de facto em processo penal (dito de 'revista ampliada'). O próprio STM na sua decisão não deixou de chamar aqui à colação os artigos 410º, nº 2 e 433º do Código de Processo Penal de 1987 (CPP).
Assim, parece não se vislumbrarem razões para, quanto a esta matéria, divergir da jurisprudência que o Tribunal Constitucional vem seguindo em vários arestos, designadamente, para referir apenas decisões já publicadas, nos acórdãos nºs 172/94 e 171/94, publicados no 'Diário da República' IIª Série, de 19 de Julho de 1994, 170/94, 'Diário da República'. IIª Série, de 16 de Julho de 1994, 141/94,' in 'Diário da República', IIª, Série, de 7 Janeiro de 1995, e
322/93, in 'Diário da República, IIª Série, de 29 de Outubro de 1993, ainda que com votos discordantes, no sentido da não inconstitucionalidade do regime actualmente vigente quanto a esta matéria.
Nesta ordem de ideias, será suficiente acompanhar em termos sintéticos a fundamentação que tem sido seguida maioritariamente nesta matéria e
à qual se adere.
De acordo com o preceituado no CJM, e porque o tribunal de instância julga de facto definitivamente, segundo a sua consciência, com plena liberdade de apreciação, e de direito (artigo 418º, nº 1), no que respeita à matéria de facto o STM limita-se a verificar se existe ou não deficiência, obscuridade ou contradição no julgamento da matéria de facto ou preterição de acto substancial para a boa administração da justiça, de modo que possa ter influído ou influa no exame e decisão da causa (alíneas c) e d) do artigo 458º).
Se o tribunal de recurso constata a ocorrência de algum dos vícios referidos e não pode decidir a causa, tem de determinar o reenvio do processo para se proceder a novo julgamento, que pode abranger a totalidade do objecto do processo ou questões concretamente identificadas na decisão de reenvio.
Na apreciação a que procedeu, não se considerou o STM limitado ao que resulta do próprio texto do acórdão recorrido, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, limitação essa contida no artigo 410º,nº2, «in fine», do CPP, muito embora o tribunal de recurso, enquanto tal, não possa substituir-se à primeira instância na apreciação directa da prova nem realizar ele próprio diligências de prova. Seja ou não este um entendimento comum na jurisprudência do S.T.M., o certo é que foi ele o seguido na decisão recorrida, onde se lê em determinado momento (fls. 146, vº): 'E nada existe, no processo ou fora dele, que possa legitimamente contrariar o juízo de valor feito pelo acórdão recorrido quanto à matéria de facto que, portanto, se tem por definitivamente fixada'.
O recurso penal, interposto do acórdão final do tribunal colectivo para o STM, à luz do que decorre da decisão sob recurso, estrutura-se, assim, como um recurso de revista ampliada, em que a decisão de 1ª instância é apreciada quanto à matéria de direito, pois que, quanto ao facto o tribunal de recurso intervém somente para 'despistar situações indiciadoras de erro judiciário' (cf. Cunha Rodrigues, 'Recursos', in 'O Novo Código de Processo Penal', pg. 394, de algum modo transponível para esta sede).
Contrariamente ao que sustenta o recorrente, o regime que decorre das normas do Código de Justiça Militar referidas e transcritas, no entendimento que lhes foi dado na decisão recorrida, não colide com as garantias de defesa asseguradas pelo artigo 32º, nº 2, da Constituição (sendo certo que o artigo 11º da Declaração Universal dos Direitos do Homem ou o artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos nada acrescentam ao que da norma constitucional invocada decorre sobre tal matéria, pelo que só esta será considerada).
Aquele preceito constitucional não consagra expressamente o princípio do duplo grau de jurisdição, como aliás acontece também com a Declaração Universal dos Direitos do Homem e com a Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Tal princípio surge consagrado apenas no Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (aprovado para ratificação pela Lei nº
29/78, de 12 de Junho), no seu artigo 14º, nº 5, onde se refere que 'qualquer pessoa declarada culpada de crimes terá o direito de fazer examinar por uma jurisdição superior a declaração de culpabilidade e a sentença, em conformidade com a lei'.
É sabido que constitui jurisprudência firme do Tribunal Constitucional que uma das garantias de defesa a que se reporta o artigo 32º, nº
1, da Constituição é justamente o direito ao recurso contra sentenças penais condenatórias, o que equivale a reconhecer o aludido princípio. Todavia, sublinha essa jurisprudência que, 'tratando-se de matéria de facto, há razões de praticabilidade e outras (decorrentes da exigência de imediação da prova) que justificam não poder o recurso assumir aí o mesmo âmbito e a mesma dimensão que em matéria de direito; basta pensar que uma identidade de regime, nesse capítulo, levaria, no limite, a ter de consentir-se sempre a possibilidade de uma repetição integral do julgamento perante o tribunal colectivo'. Conforme resulta do acórdão nº 401/91, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional,
20º vol., pag. 153 e segs., que declarou a inconstitucionalidade com força obrigatória geral do artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929, na interpretação que lhe foi dada pelo Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Junho de 1934, não estará em conflito com a Constituição '... outra solução que não seja a da repetição da prova em audiência perante as relações' pois outros sistemas haverá '...que não porão em causa as garantias de defesa que o processo criminal deve assegurar, por força do citado preceito constitucional'.
Devem assim ser considerados como compatíveis com a Constituição aqueles regimes legais que protejam o arguido dos perigos de um erro de julgamento - designadamente de um erro grosseiro na decisão da matéria de facto
- e que, em consequência, o defendam do risco de uma sentença injusta.
Observe-se que, estando em causa o recurso para o Supremo Tribunal Militar de acórdãos finais dos tribunais de instância, constituídos por dois juízes militares e por um juiz auditor (artigo 232º, nº 1, do CJM), a intervenção destes tribunais, tendo em conta as regras do seu próprio funcionamento e as que presidem à audiência de julgamento, constitui uma primeira garantia no julgamento da matéria de facto. O poder do Supremo Tribunal Militar de decretar a anulação da decisão recorrida sempre que apurar a existência de deficiência, obscuridade ou contradição no julgamento da matéria de facto, incluindo erro notório na apreciação da prova [alínea c) do artigo
458º, interpretado à luz do que dispõe o artigo 410º, nº 2, alínea c) do CPP] ou mais amplamente 'preterição de acto substancial para a boa administração da justiça, de modo que possa ter influído ou influa no exame e decisão da causa'
(alínea e) do mesmo artigo 458º do CJM) completa o quadro de uma protecção constitucionalmente adequada em face de sentenças injustas.
10. - Em conformidade com o que se deixa escrito, pode concluir-se que a 'limitação' dos poderes de cognição do Supremo Tribunal Militar em matéria de facto, nos recursos de decisões proferidas pelo Tribunal de Instância, entendida não nos termos literais do artigo 418º do CJM, mas cingida às hipóteses a que se reporta a norma do artigo 458º do referido Código, por força da aplicação da norma do dito artigo 418º, nº 1,sendo ambas as normas entendidas em conjugação com as normas dos artigos 410º, nºs 1,2 e 3 e 433º, estas do Código de Processo Penal e interpretadas de forma a que o Tribunal de recurso possa conhecer em qualquer caso, e sem se encontrar limitado ao texto da decisão recorrida, de vício de erro notório na apreciação da prova, decretando então a anulação do julgamento, se traduz numa solução compatível com a exigência constitucional formulada no artigo 32º, nº 1, da Constituição. III - DECISÃO
11. - Nestes termos, decide o Tribunal Constitucional negar provimento ao recurso, confirmando o acórdão recorrido na parte impugnada. Lisboa,1997.01.14 Vítor Nunes de Almeida Antero Alves Monteiro Diniz Alberto Tavares da Costa Maria Fernanda Palma (vencida nos termos da declaração de voto junta) Declaração de voto
Votei vencida o presente acórdão pelas seguintes razões:
1ª. Entendo que a Constituição assegura o direito a um duplo grau de jurisdição em matéria penal, nos artigos 20º, nº 1, e 32º, nº 1.
Em processo penal, o direito de acesso aos tribunais do arguido concretiza-se imediatamente no direito de recurso, uma vez que o direito penal só é passível de aplicação jurisdicional. O arguido é, evidentemente, titular do direito de (apenas) ser responsabilizado por um tribunal, mas o acesso aos tribunais, por sua iniciativa, para defesa dos seus direitos e interesses legítimos (artigo 20º, nº 1), postos em causa pela aplicação de penas ou medidas de segurança, só é efectivado em sede de recurso.
O direito a um duplo grau de jurisdição constitui garantia de defesa, ainda que não prevista especificamente (artigo 32º, nº 1). Só serão admissíveis excepções em caso de acordo entre a acusação e a defesa, visando a contenção do exercício do poder punitivo estatal e relativamente a sanções de reduzida gravidade - como sucede no processo sumaríssimo [cf. os artigos 392º,
396º, nº 3, e 400º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Penal].
2ª. Entendo, igualmente, que o duplo grau de jurisdição no processo penal abrange a matéria de facto e a matéria de direito. Um sistema que excluísse em absoluto o recurso penal em matéria de facto continuaria a violar as normas dos artigos 20º, nº 1, e 32º, nº 1, da Constituição, visto que não asseguraria ao arguido, de forma plena, a defesa dos seus direitos, denegando-lhe uma garantia de defesa.
Desta exigência não resulta, todavia, que o tribunal ad quem deva reapreciar toda a matéria de facto em obediência ao princípio da imediação que conforma a audiência de julgamento em primeira instância. Um sistema de revista alargada, como o contemplado no artigo 410º do Código de Processo Penal para os casos em que o recurso seja interposto para o Supremo Tribunal de Justiça ou para o Tribunal de Relação de sentença precedida de audiência não documentada
(artigos 433º e 428º, nº 2, respectivamente, do Código de Processo Penal), pode satisfazer as prescrições constitucionais, até porque permite a realização de novo julgamento, quando, em face dos vícios da decisão recorrida, não for possível decidir a causa (artigos 426º e 436º do Código de Processo Penal).
3ª. Sendo a revista alargada o regime-regra do nosso processo penal
[uma vez que abrange todos os casos em que o julgamento decorreu perante tribunal colectivo e de júri e mesmo perante tribunal singular, ressalvadas as hipóteses em que algum dos sujeitos processuais declarou não prescindir da documentação da audiência - artigos 432º, alíneas b) e c), e 364º, nº 1, do Código de Processo Penal], julgo que ela não contempla, plenamente, um duplo grau de jurisdição, atendendo aos concretos limites que lhe são impostos no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal:
a) A exigência de que 'o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum' é incompatível com a tutela assegurada no artigo 18º, nº 2, da Constituição, aos direitos, liberdades e garantias.
Na verdade, o direito de recurso constitui uma garantia fundamental, incluída no Título I da Parte I, só podendo ser restringido na medida do estritamente necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. Ora, é manifesto que não existe, neste caso, nenhum direito ou interesse que decisivamente imponha tal restrição. O único interesse que vagamente se pode reconhecer é o interesse na economia e celeridade processuais, que aconselharia a dispensa de o tribunal ad quem analisar as várias peças que compõem o processo. Não se vê, porém, como pode este interesse prevalecer sobre o interesse na realização da justiça material, numa hipótese de reformatio in melius.
Apenas se poderia reconhecer a legitimidade da 'restrição' se ela, afinal, não constituísse restrição nenhuma - se fosse sempre possível, como no exemplo do documento autêntico não recenseado ou valorado na decisão recorrida fornecido pelo presente acórdão, fundamentar o recurso em nulidade insanável, ao abrigo do disposto no nº 3 do artigo 410º do Código de Processo Penal. Contudo, a limitação do vício ao texto da decisão recorrida constitui uma efectiva restrição. A sentença pode, por exemplo, dar como provado um facto e indicar as provas que permitiram formar a convicção do tribunal sem incorrer em nulidade alguma (artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal) e, todavia, cometer uma injustiça que apenas é documentada pelos autos (e não pelo seu próprio texto).
Suponha-se, por exemplo, que do processo constam declarações para memória futura, colhidas durante o inquérito ou a instrução (artigos 271º e
294º, respectivamente, do Código de Processo Penal). Tais declarações podem, porventura, 'comprovar', na perspectiva da decisão recorrida (do seu texto), que o arguido esteve em determinado local mas, simultaneamente, serem tão incoerentes que não podem aceitar-se como credíveis (a testemunha pode sustentar que viu o arguido, distintamente, no campo, durante a noite, a uma grande distância ...). Nesta hipótese, a insuficiência da matéria de facto e o erro notório na apreciação da prova não são patenteados necessariamente pelo texto da decisão recorrida e não será admissível proibir o tribunal ad quem de compulsar os autos e reformar essa decisão (ou determinar o reenvio do processo).
Assim, julgo que a norma constante do nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal é materialmente inconstitucional, por violar, conjugadamente, os artigos 20º, nº 1, 32º, nº 2, e 18º, nº 2, da Constituição, na medida em que exige que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras de experiência comum.
b) A exigência de contradição da fundamentação insanável [alínea b) do nº 2 do artigo 410º] ainda é, a meu ver, passível de uma interpretação segundo a Constituição (artigo 80º, nº 3, da Lei do Tribunal Constitucional): apenas poderá considerar-se irrelevante a contradição cuja sanação seja absolutamente insusceptível de influir no sentido da decisão recorrida.
c) Diferentemente, a exigência de erro notório na apreciação da prova restringe inadmissivelmente o direito de recurso, põe em causa a independência dos tribunais (artigo 206º da Constituição) e viola o próprio princípio da presunção de inocência do arguido (artigo 32º, nº 2, da Constituição).
Deve reconhecer-se, é certo, que a notoriedade do erro se há-de aferir pelo saber, capacidade e experiência de um magistrado judicial de um tribunal superior - e não de um magistrado em início de carreira ou, muito menos, de um leigo. Todavia, mesmo nesta perspectiva, é inaceitável que o tribunal ad quem não possa corrigir aquilo que ele próprio, segundo a sua livre convicção, considera um erro na apreciação da prova, por não constituir erro notório. Esta limitação põe em causa a
'independência interna' dos tribunais - a independência de cada tribunal perante os restantes tribunais.
Por outro lado, tal limitação pressupõe, afinal, que no âmbito do recurso ordinário a presunção de inocência do arguido é substituída por uma presunção de legalidade da decisão do tribunal a quo. Ora, a presunção de inocência do arguido vale até ao preciso momento do trânsito em julgado da sentença condenatória (artigo 32º, nº 2, da Constituição) e impõe que qualquer non liquet na questão da prova seja valorado a favor do arguido, apresentando como corolário, na fase da decisão, o princípio in dubio pro reo.
Por conseguinte, julgo que a norma constante da alínea c) do nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal é materialmente inconstitucional, por violar, conjugadamente, os artigos 20º, nº 1, 32º, nº 1, e 18º, nº 2, e ainda, autonomamente, os artigos 206º e 32º, nº 2, da Constituição, na medida em que põe em causa a independência dos tribunais e exige que o erro na apreciação da prova seja notório. Armindo Ribeiro Mendes (vencido nos termos das declarações de voto juntas aos acórdãos nºs. 190/94 e 504/94). José Manuel Cardoso da Costa