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Proc. nº 509/97
1ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1. - A..., identificada nos autos, foi condenada, na 10º Vara Criminal de Lisboa, como autora material de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, previsto e punido pelo artigos 21º, nº 1, e 24º, alínea c), do Decreto-Lei nº
15/93, de 22 de Janeiro, com referência à tabela I-A, no prazo de cinco anos e dois meses de prisão, após se ter operado a sua separação de culpa do processo principal em que vários arguidos figuram como acusados. Inconformada, recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça, suscitando diversas questões de inconstitucionalidade. Esse Alto Tribunal, por acórdão de 10 de Abril de 1997, negou provimento ao recurso, sem, nomeadamente, ter surpreendido qualquer dos alegados vícios de inconstitucionalidade. A arguida recorreu, oportunamente, desse aresto para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, pretendendo ver apreciada as seguintes questões de constitucionalidade, por si já suscitadas perante o Supremo: a) a das normas dos artigos 410º e 433º do Código de Processo Penal (CPP), na medida em que restringem o duplo grau de jurisdição sobre os factos às hipóteses contempladas nos nºs. 2 e 3 daquele artigo 410º e não implicam a reapreciação de toda a matéria de facto - com o que se viola o disposto nos artigos 12º, 13º,
32º, nºs. 1 e 5, e 212º, nº 5 (hoje, artigo 210º, nº 5), da Constituição da República (CR); b) da norma do artigo 127º do CPP, porquanto esta norma viola o artigo 32º, nºs.
1 e 5, da CR ao não estabelecer os limites legais sobre que deve incidir a referida apreciação da prova e, também, ao não permitir a aplicação subsidiária do artigo 396º do Código Civil; c) a norma do artigo 30º do CPP, por violação do disposto nos artigos 13º, nº 1,
20º, 29º, nº 5, e 32º, nºs. 1, 2 e 5, da CR, uma vez que, interpretada de modo a permitir a separação de processos quanto ao arguido, assim provocando a sua ausência na audiência principal, sem se poder defender, ofende o princípio do contraditório, além de que, permitindo que ambos os processos - principal e
'acessório' - sejam julgados pelo mesmo juiz, ofende o princípio do acusatório, proporcionando que o julgamento se faça sem as devidas independência e imparcialidade.
2. - Recebido o recurso, alegaram oportunamente a recorrente e o Ministério Público, como recorrido. A primeira condensou do seguinte modo as suas alegações, ao concluir:
'1. O artº 410º não permite o reexame da matéria de facto;
2. As alíneas do nº2 do artº 410º, circunscrevem a reapreciação do facto ao
‘texto da decisão recorrida’;
3. Não sendo os factos quesitados, não permitem que se descubra o vício mesmo quando a decisão em si enferma de irregularidades na ponderação da prova recolhida em audiência;
4. Quando a matéria de direito se não apresenta como controversa o cidadão recorrente/encontra-se limitado na sua legítima expectativa de ver o seu caso reexaminado sob o aspecto fáctico;
5. As disposições combinadas dos artºs. 432º, al. c) 433º, 410º, nºs. 2 e 3 do C.P.P. estão feridas de inconstitucionalidade por violação do duplo grau de jurisdição ex vi artº 32º, nº 1 da C.R.P., artº 11º, nº 1 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, recebido e elevado a princípio constitucional pelo artº 16º nº 2 da C.R.P. e do artº 14º, nº 5 do Pacto Internacional dos Direitos Cívicos e Políticos de 16 de Dezembro de 1966, aprovado pela Lei nº
29/78 de 12 de Junho e artº 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, aprovado pela Lei nº 65/78 de 13 de Outubro.
6. Assim sendo, devem as normas referentes aos artºs. 410º e 433º do Código de Processo Penal serem declaradas inconstitucionais, até porque a nova C.R.P., revista em Setembro, consagra claramente esse duplo grau de jurisdição ao afirmar no nº 1 do artº 32º que o processo criminal assegura todas as garantias de defesa incluindo o recurso;
7. Na C.R.P. revista e anotada por Jorge Lacão é o próprio a afirmar expressamente que a inclusão da garantia do recurso entre as garantias de defesa constitucionalizou no domínio do processo penal o duplo grau de jurisdição;
8. O artº 127º do C.P.P. ao não estabelecer um limite para a ‘livre convicção’ e ao socorrer-se do conceito, vago e abstracto, de ‘regras de experiência’, encontra-se ferido de inconstitucionalidade material evidente, por violação do disposto no artº 32º nºs. 1 e 5 da C.R.P. e por permitir, na ausência de outro preceito normativo análogo, a aplicação subsidiária do artº 396º do Código Civil.
9. Ao declarar-se a separação dos processos, nos termos do artº 30º da C.R.P., devem declarar-se impedidos nos termos do artº 40º do C.P.P. os magistrados que vão julgar o processo principal,
10. Pois que, existe uma imparcialidade objectiva do Colectivo em virtude de ter ouvido prova acusatória contra a arguida sem que esta tivesse o direito de defesa,
11. consequentemente emitiu a sua opinião e valorou prova contra aquela, como se constata no Acórdão do processo principal, ainda antes da mesma ser julgada em separado.
12. Devem ser pois as normas do artº 30º consideradas materialmente inconstitucionais quando interpretadas no sentido em que quando ordenada a separação dos processos, os julgamentos do processo principal como do separado se farão pelos mesmos magistrados.
13. Consequentemente devem os Juízes do processo principal considerarem-se impedidos, ex vi artº 40º do C.P.P., para julgarem o processo separado.
14. Ao ser interpretado o artº 30º do C.P.P. da forma como o Tribunal o interpretou foram violadas as normas constantes dos artigos 13-1-20, 29-5,
32-1,25 da C.R.P..'
O Ministério Público, por seu turno, conclui assim as suas alegações:
'1º Não padecem de inconstitucionalidade as normas constantes dos artigos 127º, 410º e 433º do Código de Processo Penal
2º A norma que prescreve acerca da competência do tribunal, no caso de ter ocorrido separação de processos, é a que consta da alínea b) do artigo 31º do Código de Processo Penal – e não do artigo 30º, que se limita a regular a matéria dos pressupostos de admissibilidade da separação de processos conexos – a qual não foi oportunamente questionada pelo ora recorrente, o que implica que se não deva sequer conhecer, quanto a esta questão, do recurso.
3º Não obstante - e se assim se não entender – não deve a norma questionada ser julgada inconstitucional, já que não implica qualquer diminuição das garantias de imparcialidade do tribunal a circunstância de este ter julgado, em processo separado, os demais co-arguidos, sem que obviamente as provas ali produzidas possam afectar o apuramento da responsabilidade criminal do arguido.
Termos em que deverá improceder inteiramente o recurso interposto.'
Ouvido sobre a questão prévia suscitada, a recorrente não se pronunciou. Correram-se os vistos legais, cumprindo apreciar e decidir.
II
1. - A questão prévia do não conhecimento parcial do objecto do recurso. Sublinha o magistrado recorrido que a norma que prescreve acerca da competência do tribunal, no caso de ter ocorrido separação de culpas, é a constante da alínea b) do artigo 31º do CPP e não a do artigo 30º do mesmo diploma, convocada pela recorrente, que se limita a regular a matéria dos pressupostos da admissibilidade da separação de processos conexos, pelo que, nesta parte, o recurso não seria de conhecer. Na verdade, para a recorrente, 'as normas do artigo 30º do CPP são materialmente inconstitucionais ao permitirem que, quanto à separação de processos como a que consta do caso concreto, ambos sejam julgados pelos mesmos juízos e sobre os quais não recai qualquer impedimento previsto no artigo 40º do CPP', violando, deste modo, o disposto nos artigos 13º, nº 1, 20º, 29º, nº 5, e 32º, nºs. 1, 2 e
5 da CR. No entanto, a lógica de suspeição subjacente a esta tese - que, a propósito, convoca a norma do artigo 40º e o impedimento aí previsto de participação no processo - nada tem a ver com o complexo normativo deste artigo 30º, orientado a optimizar a realização de Justiça, acelerando-a e, do mesmo passo, acautelando a defesa dos interesses nele mencionados, uns de natureza material, sejam do arguido, do lesado ou do Estado, outros processuais. Com efeito, prevê-se, aqui, a separação de processos conexos, de resto em obediência a preestabelecidos critérios; não se cuida de prorrogação ou extensão, de modo a manter-se a competência do tribunal de conexão para julgar os processos separados por força do nº 1 daquele artigo 30º. A problemática suscitada assenta na eventual inconstitucionalidade da norma que decreta a extensão da competência, mas no tocante a essa norma não foi a mesma impugnada nem se pediu a apreciação da sua constitucionalidade: trata-se de norma da alínea b) do artigo 31º. Razão suficiente para julgar procedente a deduzida questão prévia, não conhecendo do objecto do recurso relativamente à norma do artigo 30º do CPP.
2. - Assim expurgado o objecto do recurso, restam as normas dos artigos 410º e
433º do CPP, por um lado, e a do artigo 127º, do mesmo Código, por outro. Sobre estas normas e na dimensão ora equacionada já este Tribunal teve oportunidade de se debruçar pelo que, agora, não se vislumbrando razões válidas para alterar o entendimento já existente, só há que remeter para a jurisprudência decorrente das decisões anteriores.
2.1. - No tocante ao primeiro grupo normativo, podem apontar-se numerosos acórdãos deste Tribunal no sentido da não inconstitucionalidade, como o ilustram os nºs. 322/93, 170/94, 171/94 e 1164/96, publicados no Diário da República, II Série, de 29 de Outubro de 1993, 6 e 19 de Julho de 1994 e 14 de Março de 1997, respectivamente. A orientação que então exprimiu a maioria foi, por sua vez, em acórdão tirado em plenário, ao abrigo do artigo 79º-D da Lei do Tribunal Constitucional - nº
573/98, publicado no Diário da República, II Série, de 13 de Novembro de 1998 - objecto de decisão que não julgou inconstitucionais as normas resultantes da conjugação do artigo 433º do Código de Processo Penal com o corpo do nº 2 do artigo 410º do mesmo Código, na medida em que limitam os fundamentos do recurso a que 'o vício resulta do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum'. Assim, em aplicação da jurisprudência firmada neste acórdão por último citado, julgam-se não inconstitucionais as normas em causa.
2.2. - Quanto à norma do artigo 127º do CPP, também este Tribunal se tem pronunciado pela sua não inconstitucionalidade, como, paradigmaticamente, ilustra o acórdão nº 1165/96, publicado no Diário da República, II Série, de 6 de Fevereiro de 1997, para cuja fundamentação igualmente se remete e se dá aqui por reproduzida.
III Em face do exposto, decide-se: a) não tomar conhecimento do recurso quanto à norma do artigo 30º do Código de Processo Penal; b) negar, no mais, provimento ao recurso. Lisboa, 2 de Março de 1999 Alberto Tavares da Costa Maria Fernanda Palma Vítor Nunes de Almeida Paulo Mota Pinto Artur Maurício Maria Helena Brito José Manuel Cardoso da Costa