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Proc. nº 543/96
1ª Secção Rel: Cons. Ribeiro Mendes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional: I
1. E..., com os sinais dos autos, foi acusada da prática de um crime de tráfico de estupefacientes. Requereu então ao Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa a realização de certas diligências probatórias, nomeadamente que fossem tomadas, no âmbito da instrução, novas declarações a ela própria e à sua mãe, também arguida no mesmo processo, a fim de se apurar a quem pertenciam certos objectos de ouro que lhe haviam sido apreendidos.
Através do despacho de fls. 554, foi indeferido o pedido de realização destas diligências probatórias.
Inconformada, interpôs esta arguida recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, suscitando na motivação do recurso uma questão de constitucionalidade, sustentando que a interpretação judicial acolhida nesse despacho contendia 'com o disposto na norma prevista no artigo 286º do C.P.P. como, e antes de mais, com o próprio artigo 32º, nºs. 1 e 4 da Constituição da República Portuguesa (C.R.P.)' (a fls.
10 vº do presente processo). E, nessa mesma motivação, explicitou que, 'ao interpretar o artº 286º nº 1 do C.P.P. no sentido de não permitir à arguida efectivar a sua defesa relativamente à propriedade dos objectos apreendidos o Mº Juiz «a quo», salvo o devido respeito, violou garantias de defesa da arguida e, nomeadamente, a garantia que se consubstancia no próprio princípio do contraditório, assim violando os nºs. 1 e 4 do art. 32º da C.R.P.' (a fls. 12). Alegou ainda que as finalidades da instrução, no processo penal, não comportavam apenas a dedução da acusação ou o arquivamento do inquérito, mas ainda o apuramento e determinação do grau de responsabilidade do agente, averiguando-se, em concreto, a existência ou não de provas conducentes ao afastamento de agravantes pelas quais tivesse sido acusado.
No Tribunal da Relação, o Ministério Público exarou parecer onde preconizou a procedência do recurso.
A Relação de Lisboa, através de acórdão proferido em 8 de Maio de
1996, negou provimento a este recurso. Pode ler-se nesse acórdão:
' Não se preocupando minimamente, pelo menos ao nível da instrução, nem com a enorme quantidade de droga encontrada na sua casa - quase 1 Kilograma de heroína
(!) - nem com as avultadas quantidades em dinheiro apreendidas - quase 4.000 contos (!) - pretendia a recorrente apenas demonstrar que o ouro apreendido havia sido, na sua maior parte, encomendado à consignação para vender a terceiros, e que a outra pequena parte pertencia à sua mãe, também arguida no tráfico de droga. E, para provar tal facto, nada de melhor encontrou do que serem de novo ouvidas no processo ela e sua mãe, como se de antemão não se adivinhasse o teor dessas declarações e se não prognosticasse a sua débil força probatória! Porém, qualquer delas foi já ouvida na fase de inquérito, tendo aí, naturalmente, oportunidade de exporem a sua versão sobre tal matéria. Não seria mais profícuo indicar a pessoa ou pessoas que lhe forneceram o ouro à consignação? Não o fez, e lá teria as suas razões. De todo o modo, a alegação da recorrente ficou consignada no seu requerimento instrutório junto ao processo [...]. Bem analisada a acusação, havemos de convir que não foi apenas, (nem essencialmente), a apreensão do ouro que determinou o M. P. a imputar à recorrente a incriminação agravada do art. 24º c) do D.L. 15/93. Não seria suficiente, para tanto, a ponderação e avaliação da enorme quantidade de droga apreendida e as avultadas quantias em dinheiro encontradas na posse da recorrente? Não temos dúvidas quanto a tal ponto [...].
«O juiz... indefere os actos que não interessarem à instrução ou servirem apenas para protelar o andamento do processo...» - sendo certo ainda «os actos e diligências de prova praticados no inquérito só são repetidos no caso de não terem sido observadas as formalidades legais...». É o que se dispõe no art. 291º do C.P.P., ao abrigo do qual o Sr. Juiz indeferiu o requerimento da recorrente. E, ao proceder deste modo, não colocou em crise, nem o princípio do contraditório, nem qualquer garantia de defesa da recorrente' (a fls. 37 e 38).
Inconformada com este acórdão, veio a recorrente interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo das alíneas b) e f) do nº 1 do art.
70º da Lei do Tribunal Constitucional, indicando como objecto do recurso a norma do art. 286º, nº 1, do Código de Processo Penal, alegadamente em interpretação inconstitucional por violadora do art. 32º, nºs. 1 e 5, da Constituição.
O recurso veio a ser admitido, não obstante se ter ponderado no despacho de admissão que o despacho recorrido e o acórdão que o confirmara se haviam estribado essencialmente no normativo do art. 291º do Código de Processo Penal. Todavia, aí se considerou que, tendo o despacho do juiz de instrução invocado o art. 286º do mesmo diploma, outra solução não restaria 'senão admitir o recurso, ainda que se nos afigure de todo infundado' (a fls. 44).
2. Subiram os autos ao Tribunal Constitucional.
Fixado prazo para alegações, vieram a recorrente e o Ministério Público a apresentar as correspondentes peças processuais.
Na sua alegação, a recorrente pronunciou-se sobre o teor do despacho de admissão do recurso, sustentando que a indicação por si, como objecto de recurso, de norma eventualmente não aplicada pela decisão recorrida (com referência ao art. 286º do Código de Processo Penal) não seria 'limitativa por forma a impedir o Tribunal Constitucional aprecie a questão de inconstitucionalidade suscitada pela recorrente' (a fls. 48). E formulou as seguintes conclusões:
'1- A denegação à arguida de ver deferido o seu requerimento de abertura de instrução pelo facto de, alegadamente, tal em nada relevar para o apuramento dos pressupostos da responsabilidade criminal da arguida é uma interpretação inconstitucional dos artigos 286º nº 1, 287º nº 2 e 291º nº 1 do C.P.P. por violação do art. 32º nºs. 1 e 5 da C.R.P.
2- As instâncias recorridas apenas poderiam ter indeferido tal direito da arguida nos casos previstos no art. 287º nº 2 do C.P.P., casos esses que não se verificavam em concreto.
3- À arguida tem de ser eficazmente assegurada uma verdadeira igualdade de armas no processo que lhe permita contrariar a prova contra si carreada para o processo durante a fase de inquérito.
4- A instrução há-se servir não apenas para se apurar se é de manter a acusação tal como ela vem delineada pelo M. P. ou, ao invés, para a arquivar, mas também para se permitir ao indiciado agente do crime que coloque em causa tudo quanto a acusação contra si coligiu durante a fase de inquérito, mesmo que se trate
«apenas» de determinar a quem pertencem os objectos apreendidos à ordem do processo.
5- Com muito mais acuidade se coloca a questão quando a posse de tais objectos tenha levado o M. P. a deduzir acusação com a agravante prevista na alínea c) do art. 24º do D.L. 15/93.
6- A interpretação restritiva das regras relativas à admissibilidade da instrução nomeadamente com fundamento em que ao agente sempre é facultada a hipótese de se defender em julgamento ofende as suas garantias de defesa consignadas nos nºs. 1 e 5 do art. 32º do C.R.P. dado que impede o agente de começar a impugnar e contrariar toda a prova que contra ele começou a ser coligida durante a fase de inquérito.
7- Assim, verifica-se por parte das doutas instâncias recorridas uma inconstitucional interpretação dos artigos 286º nº 1, 287º nº 2 e 291º nº 1 do C.P.P., com violação do art. 32º nºs. 1 e 5 da C.R.P. o que deverá ser decretado por esse Alto Tribunal com todas as legais consequências.' (a fls. 52 e vº)
O Ministério Público, por seu turno, suscitou a questão prévia de não conhecimento do recurso, concluindo do seguinte modo:
' Não tendo a decisão recorrida aplicado, como fundamento do decidido, a norma a que a recorrente reportou o presente recurso - a do artigo 286º, nº 1, do Código de Processo Penal - mas outra norma que, aliás, especifica e indica expressamente - a constante do artigo 291º do Código de Processo Penal - falta um essencial pressuposto de admissibilidade do recurso interposto.' (a fls. 61)
Ouvida sobre esta questão prévia, a recorrente manteve a posição de que devia conhecer-se do objecto do recurso, o qual versava sobre a questão de
'denegação pelo Mº J. I. C., sufragado pelo Tribunal da Relação, de ver realizada a instrução por si requerida com as diligências probatórias por si igualmente requeridas denegação essa cujos fundamentos de direito constam dessas duas decisões' (a fls. 65). Em seu entender, o teor do art. 71º da Lei do Tribunal Constitucional apontava iniludivelmente nesse sentido, sendo certo que, no despacho do Juiz de Instrução Criminal, se aludira ao art. 286º do Código de Processo Penal, a par do art. 291º do mesmo diploma. Fosse como fosse, o fundamento das duas decisões das instâncias residia no art. 286º, nº 1, desse Código.
4. Foram corridos os vistos quanto à questão prévia.
Cumpre, pois, apreciar a mesma.
II
5. A fim de apreciar a questão prévia suscitada pelo Ministério Público, importa analisar brevemente o teor das decisões das instâncias, bem como o disposto nos arts. 286º, nº 1, e 291º do Código de Processo Penal.
Assim, no despacho do Juiz de Instrução Criminal de fls. 554
(certificado a fls. 24 e vº do presente processo), após se aludir ao disposto no art. 286º, nº 1, do Código de Processo Penal, refere-se o seguinte:
' A questão suscitada no requerimento de abertura de instrução da arguida, e sobre a qual deverão versar as pretendidas diligências probatórias, em nada releva, nos termos em que é colocada, para o apuramento dos pressupostos da responsabilidade criminal da requerente, podendo interessar, quando muito, com vista à determinação do destino a dar aos objectos apreendidos, que é problema que se não discute em sede de instrução. Nesta conformidade, as diligências referidas pela arguida E... carecem de interesse para a finalidade da instrução. Assim sendo, e ao abrigo do disposto no art. 291º, nº 1 do C.P.P., indefiro a realização de tais diligências.'
Também o acórdão da Relação de Lisboa, em passo atrás transcrito, refere que o indeferimento das diligências foi feito 'ao abrigo' do art. 291º do C.P.P., considerando que a aplicação dessa norma 'não colocou em crise, nem o princípio do contraditório nem qualquer garantia de defesa da recorrente'.
Parece, assim, indiscutível que a norma aplicada pelas duas sucessivas decisões judiciais foi a do nº 1 do art. 291º do Código de Processo Penal.
Atente-se, agora, no teor das normas dos arts. 286º, nº 1, e 291º, nº 1, do Código de Processo Penal. Dispõe a primeira dessas disposições:
' A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.'
Estatui o segundo desses preceitos:
' Os actos de instrução efectuam-se pela ordem que o juiz reputar mais conveniente para o apuramento da verdade. O juiz indefere, por despacho, os actos requeridos que não interessarem à instrução ou servirem apenas para protelar o andamento do processo e pratica ou ordena oficiosamente aqueles que considerar úteis.'
6. Afigurando-se seguro que foi o art. 291º, nº 1, do Código de Processo Penal que foi sucessivamente aplicado, por terem as instâncias considerado que os actos probatórios requeridos não interessavam à instrução, há-de concluir-se que a recorrente não interpôs recurso da decisão de segunda instância quanto à norma efectivamente aplicada nesse acórdão.
Nas alegações, a recorrente deu-se conta da falta deste pressuposto, não desconhecendo o teor do art. 75º-A, nº 1, da Lei do Tribunal Constitucional, preceito que invocou expressamente no seu requerimento de interposição de recurso. Procurou, porém, ancorar na formulação do art. 71º, nº 1, da Lei do Tribunal Constitucional a possibilidade de o Tribunal alargar o objecto do recurso, indicando como verdadeiro objecto o disposto nos arts. 286º, nº 1,
287º, nº 2, e 291º, nº 1, do Código de Processo Penal.
Não tem razão a recorrente, sendo seguro que, em caso algum, poderia ser ampliado nas alegações o objecto do recurso, delimitado no requerimento de interposição.
Como sublinhou o Exmº. Procurador-Geral Adjunto, a primeira parte do art. 79º-C da Lei do Tribunal Constitucional vincula este Tribunal a um estrito princípio do pedido ('o Tribunal só pode julgar inconstitucional ou ilegal a norma que a decisão recorrida, conforme os casos, tenha aplicado ou a que haja recusado aplicação...'), havendo de pôr-se em relevo que - estando em causa um recurso interposto nos termos da alínea b) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional (a referência feita pela recorrente à alínea f) do mesmo número e artigo é incorrecta, não tendo sido suscitada uma questão de ilegalidade) - só cabe recurso para o Tribunal das decisões 'que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo'.
Falta, assim, um pressuposto processual para se poder conhecer do objecto do recurso: o recorrente imputou a inconstitucionalidade à norma do art.
286º do Código de Processo Penal, na interpretação acolhida pelo tribunal de primeira instância, mas a norma aplicada pelas instâncias foi outra, precisamente a do nº 1 do art. 291º do mesmo diploma. Acrescente-se que a razão invocada pelo relator no Tribunal da Relação de Lisboa para admitir o recurso não parece determinante, além de não vincular o Tribunal Constitucional (cfr. art. 76º, nº 3, da respectiva lei orgânica): de facto, a circunstância de o Juiz de Instrução Criminal ter feito referência às finalidades da instrução indicadas no nº 1 do art. 286º do C.P.P. não é decisiva, tanto mais quando se impugna a decisão de segunda instância; por outro lado, se o recurso fosse tido como 'de todo infundado', a decisão do relator deveria ter sido a de não admissão do recurso (art. 76º, nº 2, in fine, da Lei do Tribunal Constitucional).
7. Em conclusão: por falta do necessário pressuposto processual, não pode conhecer-se do objecto do recurso. III
8. Nestes termos e pelas razões expostas, decide o Tribunal Constitucional julgar procedente a questão prévia suscitada pelo Ministério Público e, por isso, não tomar conhecimento do objecto do recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 (cinco) unidades de conta.
Lisboa, 14 de Janeiro de 1997 Armindo Ribeiro Mendes Antero Alves Monteiro Diniz Maria da Assunção Esteves Alberto Tavares da Costa Maria Fernanda Palma Vitor Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa