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Proc. nº 683/95
1ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. A., B. e C. foram condenados pela prática da contra-ordenação prevista no artigo 35º, nº 1, do Regime Jurídico das Infracções Fiscais Aduaneiras (Decreto-Lei nº 376-A/89, de 25 de Outubro), por decisão do Subdirector Geral das Alfândegas de 5 de Agosto de 1993.
2. Os arguidos interpuseram recursos desta decisão para o Tribunal Fiscal Aduaneiro do Porto.
Por sentença de 22 de Março de 1994 do Tribunal Fiscal Aduaneiro do Porto os recursos foram julgados parcialmente procedentes, tendo, em consequência, os arguidos sido condenados em coimas de valores inferiores aos constantes da decisão recorrida.
3. Desta sentença recorreram para o Tribunal Tributário de 2ª Instância o Representante da Fazenda Pública e os arguidos, sustentando estes a inconstitucionalidade da norma contida no artigo 15º do Decreto-Lei nº 503/85, de 30 de Dezembro, e tendo concluído do seguinte modo:
'(...)
f) O D.L. 503/85, de 30/12, art. 15º, baseia-se em autorização legislativa concedida em violação do art. 168º da CRP
(inconstitucionalidade orgânica);
g) O referido diploma não publicita as taxas dos direitos compensadores nem os mecanismos da sua criação,
h) e, subsequentemente, tais taxas nunca foram publicitadas
(CRP, art. 106º - art. 122º);
i) o que retira total eficácia aos actos legisla-tivos ou administrativos que suportam a sua cobrança (CRP - art. 122º, nº 3).
j) Acima do voluntarismo dos agentes administra-tivos está a CRP e o Acto Único Europeu, sendo que por desrespeito da primeira não se gerou nenhuma obrigação tributária e o segundo extinguiu as fronteiras interiores.
(...)'
Por seu turno, o Representante da Fazenda Pública sustentou a não inconstitucionalidade da norma sindicada.
Finalmente, por acórdão de 6 de Dezembro de 1994 do Tribunal Tributário de 2ª Instância decidiu-se negar provimento aos recursos interpostos pelos ora recorrentes.
4. É deste acórdão (de 6 de Dezembro de 1994) que vem interposto o presente recurso, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 280º da Constituição e da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade à Constituição da norma contida no artigo 15º do Decreto-Lei nº 503/85, de 30 de Dezembro.
Junto deste Tribunal, os recorrentes apresentaram alegações que concluíram assim:
'- O direito compensador incidente sobre as bananas é um imposto (Cód. Aduaneiro - art. 4º, 10),
- cuja taxa não foi fixada pelo legislador do DL 503/85, de
30/12, ficando o seu 'apuramento' dependente do poder regulamentar e administrativo,
- mediante a variável aleatória que era o preço de entrada, apurado em concurso público.
- A omissão de taxa explícita, com carácter genérico,
- e a falta de publicidade da mesma,
- inquinam o art. 15º do DL 503/85 de inconstitucionalidade formal.'
Por seu turno, o Representante da Fazenda Pública sustentou, nas contra-alegações que apresentou junto deste Tribunal, não ser o processo contra-ordenacional o meio processualmente adequado para suscitar as questões de constitucionalidade normativa que os ora recorrentes aduziram, devendo estas ser arguidas no processo autónomo de reacção à liquidação de receitas tributárias aduaneiras, previsto no artigo 68º, alínea a), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (processo que os ora recorrentes não intentaram).
5. Corridos os vistos, cumpre decidir.
II Fundamentação
A Delimitação do objecto do recurso
6. Os recorrentes invocam, nas alegações de recurso apresentadas junto do Tribunal Constitucional, 'três ilegalidades' do acórdão proferido pelo Tribunal Tributário de 2ª Instância.
Porém, como os próprios recorrentes acabam por reconhecer, este Tribunal não se poderá pronunciar sobre os referidos vícios.
Com efeito, o Tribunal Constitucional fiscaliza a constitucionalidade (e certa legalidade) normativa e não a conformidade à Constituição (ou à lei) de decisões judiciais. Nos termos do artigo 70º, nº 1, alíneas b) e f), cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo; e que apliquem norma cuja ilegalidade haja sido suscitada durante o processo com qualquer dos fundamentos referidos nas alíneas c), d) e e) do mesmo artigo.
Acresce que o presente recurso foi interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional e não ao abrigo da alínea f) do mesmo preceito (como deveria ter sido se os recorrentes pretendessem que o Tribunal Constitucional apreciasse uma questão de legalidade normativa).
O exposto é suficiente para se concluir que o Tribunal Constitucional não se pronunciará sobre as pretensas ilegalidades do acórdão recorrido.
7. Pretendem os recorrentes que o Tribunal Constitucional aprecie a conformidade à Constituição das normas contidas no artigo 15º do Decreto-Lei nº 503/85, de 30 de Dezembro, e no nº 1 da Portaria nº 1242/92, de
31 de Dezembro.
Contudo, nas alegações apresentadas junto do Tribunal Tributário de 2ª Instância, os recorrentes apenas questionaram a conformidade à Constituição da norma contida no artigo 15º do Decreto-Lei nº 503/85.
Ora, sendo o presente recurso interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, é necessário que a questão de constituciona-lidade normativa tenha sido suscitada durante o processo, isto é, em tempo e de forma a que o juiz a quo se pudesse pronunciar sobre ela (cf. Acórdão nº 155/95, D.R., II Série, de 20 de Junho de 1995).
Era, portanto, perante o Tribunal Tributário de 2ª Instância que os recorrentes deveriam ter suscitado todas as questões de constitucionalidade de normas que pretendem, agora, que o Tribunal Constitucional aprecie. Não o tendo feito, não pode este Tribunal apreciar a conformidade à Constituição das normas cuja inconstitucionalidade só foi invocada no requerimento de recurso de constitucionalidade.
É certo que os recorrentes mencionaram a inconstitucionalidade da Portaria nº 1242/92 e da 'legislação que serve de suporte à cobrança da dívida aduaneira' nas alegações apresentadas junto do Tribunal Fiscal Aduaneiro do Porto. Porém, admitindo que a colocação da questão de constitucionalidade nesse momento seria suficiente para que o Tribunal Constitucional a pudesse conhecer, sempre se concluirá que tais afirmações são de tal forma genéricas que não podem ser tidas como modo processualmente adequado de suscitar uma questão de constitucionalidade normativa.
Na verdade, os recorrentes deviam ter individualizado a ou as normas cuja conformidade à Constituição pretendiam questionar. A referência a todo um diploma (no caso, a uma portaria) ou a toda a legislação que serve de fundamento à cobrança de uma dívida é de tal forma imprecisa que não coloca verdadeiramente sob apreciação a questão da constitucionalidade de norma alguma, ou pelo menos não o faz de modo processualmente adequado (neste sentido, cf. o já citado Acórdão nº 155/95).
Conclui-se, pois, que não se tomará conhecimento do objecto do recurso no que respeita à conformidade à Constituição da norma contida no nº
1 da Portaria nº 1242/92, de 31 de Dezembro, por não ter sido suscitada durante o processo tal questão de constitucionalidade [artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional].
8. Por último, sustenta a entidade recorrida que a apreciação da questão de constitucionalidade suscitada nunca poderia surtir efeito na decisão recorrida, na medida em que o que está em causa é a aplicação de uma coima e não a impugnação do processo de liquidação de receitas tributárias aduaneiras.
Porém, o recorrido não tem razão. Sendo verdade que não está em causa, nos presentes autos, a impugnação da liquidação dos direitos compensadores, também é certo que faz parte do tipo contra-ordenacional o comportamento que tenha por fim evitar o pagamento de prestações tributárias aduaneiras (artigo 35º do Regime Jurídico das Infracções Fiscais Aduaneiras). Constata-se, pois, que é pressuposto da contra-ordenação em causa a dívida da prestação tributária aduaneira, cujo surgimento resulta, neste caso, da aplicação da norma sindicada.
Assim, um eventual julgamento de inconstitucionalidade da norma que consagra a dívida a cujo cumprimento os recorrentes alegadamente se furtaram afectará, necessariamente, a decisão que aplicou a coima correspondente
à contra-ordenação que tem por elemento típico tal comportamento. Por conseguinte, é relevante no presente processo o conhecimento do recurso na parte respeitante à norma contida no artigo 15º do Decreto-Lei nº 503/85.
9. Ante o exposto, conclui-se que o presente recurso de constitucionalidade tem por objecto a norma contida no artigo 15º do Decreto-Lei nº 503/85, de 12 de Dezembro.
B
A conformidade à Constituição da norma contida no artigo 15º do Decreto-Lei nº 503/85, de 12 de Dezembro
10. A redacção do preceito questionado é a seguinte:
'1. Sempre que o preço de entrada das bananas importadas se situar abaixo do preço de referência, será cobrado um direito de compensação igual à diferença entre os dois preços.
(...)'
Sustentam os recorrentes que, sendo os direitos compensadores verdadeiros impostos, a circunstância de a respectiva 'taxa' vir a ser fixada através da determinação da diferença entre o preço de referência e o preço de entrada (o que consubstancia uma determinação casuística) viola o preceituado nos artigos 106º e 122º da Constituição, o que implicaria a respectiva inconstitucionalidade material.
11. Admitindo a natureza de imposto da prestação em causa, que é sustentada pelo recorrente, importaria verificar se o legislador respeitou os preceitos constitucionais, nomeadamente o princípio da tipicidade tributária, na determinação do montante da prestação devida por força da aplicação do preceituado no nº 1 do artigo 15º do Decreto-Lei nº 503/85.
Estabelece o nº 2 do artigo 106º da Constituição que 'os impostos são criados por lei, que determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes'. Assim, a lei deve fixar os elementos constitutivos essenciais da obrigação de imposto, de forma a tutelar os direitos e garantias fundamentais dos contribuintes.
Todavia, tal exigência não implica que do preceito legal tenha de resultar directamente o valor da prestação que cada contribuinte deve pagar por força da aplicação da norma de incidência. Na verdade, o valor exacto da prestação a favor do Estado há-de resultar da aplicação de um critério pré-fixado (a taxa do imposto) referido a um factor variável (base tributável), sem que tal mecanismo de apuramento do quantum do imposto represente uma violação do princípio da tipicidade tributária.
Assim, existem várias modalidades de taxas (taxas constantes, progressivas, específicas, ad valorem) que, em função da sua aplicação a factores mais ou menos variáveis, levam à determinação do montante que o contribuinte terá de entregar ao Estado. O critério a utilizar (que, por via de regra, se reconduz a um valor percentual - 'taxa') tem de estar genérica e abstractamente previsto na lei; os valores das variáveis a que se referem, em concreto, tais critérios, dos quais resultará o montante específico da prestação devida, já não estarão - nem podiam estar, por natureza - sujeitos ao princípio da legalidade.
12. Neste caso, trata-se de uma taxa ad valorem (na verdade, uma taxa de 100% relativamente à diferença de montante entre o preço de referência e o preço de entrada), própria de uma espécie tributária que incide sobre um acréscimo patrimonial repercutido sobre o consumo e destinada a proteger o mercado. A lei prevê o critério pelo qual se determina o montante a entregar ao Estado por força da cobrança de direitos compensadores na importação de bananas. O valor a pagar resultará da diferença entre o preço de referência
(fixado por portaria) e o preço de entrada (fixado nos termos do nº 2 do artigo
15º do Decreto-Lei nº 503/85), sempre que este for inferior àquele.
Este critério está genérica e abstractamente consagrado na lei (artigo 15º, nº 1, do Decreto-Lei nº 503/85), tendo sido objecto da devida publicidade (o referido diploma foi publicado no D.R., I Série A, de 30 de Dezembro de 1995). O que resulta do funcionamento das leis do mercado não é a taxa do imposto devido (como sustentam os recorrentes), mas sim o valor de uma das variáveis (preço de entrada) que irá permitir determinar a prestação devida
à luz do princípio da igualdade tributária. Está-se já no momento de concretização do valor da obrigação de imposto e não no da fixação da respectiva taxa.
O critério objectivo que conduz à determinação do montante está previsto na lei. Da aplicação desse critério aos valores variáveis (o que pressupõe, naturalmente, a concretização destes) resulta a fixação do valor a pagar e não o valor da taxa a aplicar. A determinação do preço de entrada enquadra-se, pois, na fase de fixação do montante a pagar pelo contribuinte, não consubstanciando a fixação de qualquer 'taxa' do imposto.
13. Conclui-se, assim, que mesmo a considerar-se a prestação em causa como imposto a norma contida no nº 1 do artigo 15º do Decreto-Lei nº
503/85 não violaria o disposto nos artigos 106º, nº 2, e 122º da Constituição.
III Decisão
14. Ante o exposto, decide-se:
a) não tomar conhecimento do recurso no que concerne à norma contida no nº 1 da Portaria 1242/92, de 31 de Dezembro;
b) tomar conhecimento do recurso no que respeita à norma constante do nº 1 do artigo 15º do Decreto-Lei nº 503/85, de 12 de Dezembro, e não a julgar inconstitucional, negando provimento ao recurso e confirmando, em consequência, o acórdão recorrido no que respeita à questão de constitucionalidade suscitada.
Lisboa, 12 de Março de 1997
Maria Fernanda Palma Vitor Nunes de Almeida Armindo Ribeiro Mendes Alberto Tavares da Costa Maria da Assunção Esteves Antero Alves Monteiro Dinis José Manuel Cardoso da Costa