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Processo n.º 1103/98 ACÓRDÃO Nº 102/99 Conselheiro Messias Bento
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. M.G.L.T., S.P.R.G., J.A.L., A.J.A.F., J.L.T.M.M. e M.A.T.M. recorrem para este Tribunal, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 7 de Outubro de
1998, que negou provimento aos recursos que tinham interposto do acórdão da 1ª Vara Criminal de Lisboa, que os condenara em penas de prisão: a todos, pelo crime de tráfico de estupefacientes; e a alguns deles, também pelo de participação em associação criminosa.
Também A.P.G.T.M., que fora igualmente condenada numa pena de prisão por aqueles dois ilícitos, recorreu daquele acórdão do Supremo Tribunal de Justiça. O respectivo recurso foi, no entanto, oportunamente, julgado deserto, por falta de alegações.
Pretendem os recorrentes que se aprecie a constitucionalidade das seguintes normas:
(a). recorrente M.G.L.T.: da norma constante do artigo 374º, n.º 2, do Código de Processo Penal, “se interpretado no sentido descrito da referida peça” (ou seja, no acórdão recorrido);
(b). recorrente S.P.R.G.: das normas constantes dos artigos 21º e 28º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, e 30º do Código Penal;
(c). recorrente J.A.L. da norma constante do artigo 433º do Código de Processo Penal, na seguinte interpretação: “se, tendo existido arguição dos vícios a que alude o artigo 410º, n.º 2, alíneas a), b) e c), do Código de Processo Penal, em sede de apreciação dos referidos vícios, não se especificar a matéria provada no que a ele concerne”;
(d). recorrente A.J. A. F.:
(1). da norma constante do artigo 61º, n.º 1, alíneas b) e f), do Código de Processo Penal, “com o sentido da desnecessidade de o arguido ser ouvido durante o inquérito sobre os factos que lhe imputam”; e
(2). das normas constantes dos artigos 21º, 24º e 28º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, e do artigo 30º do Código Penal, “com o sentido de que é possível o concurso real entre o crime de tráfico de estupefacientes agravado e o crime de associação criminosa”;
(e). recorrente J.L.T.M.M.: da norma constante do artigo 374º, n.º 2, do Código de Processo Penal, interpretada “de molde a considerar como não sendo necessário concretizar a relação existente entre os meios de prova que serviram para formar a convicção do tribunal e os respectivos factos (ou em relação à responsabilidade de cada arguido), sobre os quais a mesma incidiu”;
(f). recorrente M.A.T.M.: da norma constante do artigo 374º, n.º 2, do Código de Processo Penal, interpretada “de molde a considerar como não sendo necessário concretizar a relação existente entre os meios de prova que serviram para formar a convicção do tribunal e os respectivos factos (ou em relação à responsabilidade de cada arguido), sobre os quais a mesma incidiu”.
Neste Tribunal, a recorrente M.G.L.T. concluiu a sua alegação como segue:
1º No seu recurso, a recorrente arguiu a inconstitucionalidade do artº 374º, nº
2, do CPP por violação do disposto no art. 32º, nº 1, da CRP se interpretada no sentido de a exposição dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão com a indicação das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal, se verificar ou estar salvaguardada face à lei, desde que o Tribunal indique a prova que serviu para a fundamentação, a proficuidade e qualidade da mesma, sem que contudo caracterize em relação a cada arguido ou grupo de arguidos o alcance da mesma prova.
2º A este respeito o Supremo Tribunal de Justiça considerou que a lei não exige que as provas que fundamentam a decisão tenham de ser distinguidas para cada um dos arguidos como também não exige uma indicação dos meios de prova em relação a cada um dos factos que o Tribunal tenha considerado como provado e mais se considerou que tal interpretação não ofende o disposto no artº 32º, nº 1, da CRP.
3º Conforme resulta da decisão proferida em 1ª instância, num processo com 53 arguidos, apenas se considerou quais os meios de prova em que o tribunal baseou a sua convicção e a quantidade e qualidade desses meios de prova sem que se tenha operado qualquer distinção na prova ou apreciado segundo um critério indicativo da forma como esses meios de prova serviram para formar a convicção do Tribunal, no que à recorrente concerne.
4º Assim desconhece-se qual o segmento probatório utilizado pelo Tribunal quanto
à recorrente e consequentemente, a existir, qualquer inexistência, deficiência, insuficiência da prova, tal seria absolutamente incontrolável, dada a forma abrangente como o Tribunal enuncia os meios de prova.
5º Assim existe claramente uma diminuição das garantias de defesa, que é contrário e violador do disposto no artº 32º, nº 1, da Constituição, quando se postula que o processo criminal deve assegurar todas as garantias de defesa, pelo que a interpretação da norma no sentido descrito em 1 é inconstitucional.
6º Tal inconstitucionalidade verifica-se em duas vertentes, a primeira que decorre do facto de não ser possível averiguar se a prova é inexistente, insuficiente ou padece de alguma deficiência ou ainda nem sequer se ter indicado a forma como a prova influiu na convicção do Tribunal no que à recorrente concerne, o que manifestamente se traduz numa diminuição das garantias de defesa, sendo incompatível com o disposto no artº 32º, nº 1, da CRP.
7º A segunda decorre do facto de, ao não se permitir a distinção da prova utilizada em relação à recorrente por contraposição com todos os restantes arguidos se colocar em questão a própria eficácia do recurso, onde teoricamente,
à recorrente deveria ser possibilitado arguir tudo o que pudesses esgrimir em seu favor e que eventualmente contestasse em relação à aplicação do artº 374º, nº 2, do CPP, pelo que também por aqui, a interpretação vertida em 2 das conclusões é inconstitucional por violação do disposto no artº 32º, nº 1, da CRP. Nestes termos e noutros de Direito doutamente supridos deve ser tirado douto acórdão que revogue o recorrido, declarando-se a inconstitucionalidade do art.
374º, nº 2, do CPP se interpretado no âmbito referido em 1 das conclusões, com o que se fará total justiça.
De sua parte, a recorrente S.P.R.G. formulou, na alegação, as seguintes conclusões: Iª. Verificando-se os requisitos para a existência de uma organização, a arguida nunca deveria ser condenada em concurso real e efectivo, pelo crime de tráfico de estupefacientes e associação criminosa. IIª. Efectivamente, as normas legais que prevêem o crime de associação criminosa e tráfico de estupefacientes, estão numa relação de (subsidiariedade) consumpção. IIIª. A norma legal que prevê o crime de associação criminosa integra os elementos essenciais do tipo legal do crime de tráfico, aliás, só existe crime de associação criminosa quando estejam reunidos os requisitos do crime de tráfico de estupefacientes. IVª. Temos como dado adquirido para a doutrina e jurisprudência e, para o douto acórdão recorrido, em particular, que o crime de tráfico de estupefacientes protege a saúde pública em geral e o crime de associação criminosa a paz pública. Vª. A norma do artº 21º - se não directamente, pelo menos indirectamente – protege também a ordem social ou a paz pública, na medida em que cada vez mais existe um elo de ligação de delitos por consumidores de droga com a criminalidade em geral, se atentarmos nos crimes e violências que origina, «com a erosão de valores que provoca» que afecta a vida em sociedade e, assim sendo:
“o valor protegido com a incriminação do tráfico será (também) o da segurança pública” González Zorrilla, “Legislação simbólica e administrativização do Direito Penal: a penalização do consumo de drogas”, RMP, nº 55 (1993), pág. 71 e segs; VIª. A norma do art. 28º - se não directamente, pelo menos indirectamente – protege também a saúde pública, pois que sendo um crime de perigo comum abstracto, apenas pressupõe a perigosidade da acção, para a uma ou mais espécies dos bens jurídicos protegidos pela norma do artº 21, aliás, conforme remissão do próprio artigo. VIIª. No mesmo sentido, o crime de associação criminosa consome o crime de tráfico de estupefacientes nomeadamente, porque atenta inclusivamente, a punição como pena máxima de prisão, nele haver já, e até de forma mais intensa, a protecção do bem jurídico tido em conta, no crime de tráfico: a saúde pública (a declaração de voto do Exmº Conselheiro Abranches Martins, in Col. Jur., STJ, tomo I, pág. 197) – e ainda, entre outros – o Exmº Conselheiro Fernando Lopes de Melo onde refere: “que estamos perante uma das excepções a que alude o Prof. Figueiredo Dias, nas págs. 73 a 74 do seu estudo intitulado “As Associações Criminosas” no Código Penal Português de 1982, arts. 277º, 278º, e Separata da Revista de Legislação e Jurisprudência, nº 3.751 e 3.760 “in Col. Jur. Tomo V, pág. 30”. VIIIª. Porque estamos no campo de disposições, que punem abstractamente um perigo de lesão do bem jurídico tutelado, independentemente da averiguação de um perigo efectivo de lesão, a eficácia desta disposição (art. 28º) consome naturalmente a daquela (artº 21). IXª. Por isso entendemos, no caso sub judice, que as normas, do art. 21º (ou
24º) com o artº 28º, estão entre si numa relação de concurso aparente
(consumpção) e não de concurso real. Xª. Nos casos de concurso aparente, são formalmente violados vários preceitos incriminadores, mas esta plurima violação é tão-só aparente; não é efectiva, porque resulta da interpretação da lei que só uma das normas têm cabimento, que verificando-se embora a violação plurima de vários tipos de crime, a culpa está tão acentuadamente num preceito “o mais”, que um só juízo de censura, e não vários, é possível formular. XIª. Os factos referidos em II-a) – pontos nºs 353, 3.95 e 3.225 – ficou consignado quais as funções da recorrente: procedia – quer no 1º como no 2º grupo – às misturas dos produtos estupefacientes com produtos de “corte” e guardava os que se destinavam a ser distribuídos, verifica-se que integram caracterizadamente o crime previsto no artº 21, nº 1, e também o do artº 28º, nº
2. XIIª. Isto porque os factos tidos nos pontos 3.8, 3.13, 3.14 e 3.15 são conclusões lógicas dos factos acima indicados, ou seja, a arguida só aderiu na medida em que praticou dentro da associação aquela função, como refere o Prof. Figueiredo Dias in RLJ, nº 3757, pág. 104: “São por isso, dois elementos a exigir cumulativamente: a pertinência do indivíduo ao «corpo unitário» em que a associação se constitui; e o trabalho realizado a favor do fim criminoso comum”. XIIIª. Donde é necessário para aderir ou apoiar a organização a prática de
“algo” que, como diz o autor no local acima citado (nº 3758, pág. 135) “importa pois que o apoio concedido seja em abstracto proveitoso para a associação (...)
é dizer, funcionalmente adequados, na sua objectividade, a uma total finalidade”. XIVª. O corpo do artº 28º, nº 1 e no caso em apreço o do nº 2 é um tipo em que a incriminação da conduta do agente se esgota nos primeiros actos de execução, independentemente de os mesmos corresponderem a uma execução completa; XVª. A repetição dos actos, como produção de sucessivos resultados, é, ou pode ser, imputada a uma realização única; o resultado típico é obtido pela realização inicial da conduta ilícita e, daí que este tipo de crimes não admitam a desistência ou a tentativa, precisamente porque o indivíduo que apoia ou adere a uma organização que vise a prática de crimes de tráfico e outras actividades ilícitas, já preencheu o tipo, na medida em que está a criar “perigo”, independentemente de não se verificar a lesão efectiva do bem jurídico tutelado,
“o mais” a paz pública ou, “o menos” a saúde pública. XVIª. Não nos parece, salvo o devido respeito pela opinião contrária, que pelo art. 28º se pretenda, somente, visar a protecção da paz pública ou, do combate ao crime organizado, se tivermos em atenção que essa mesma protecção já se encontra prevista no Código Penal sob a epígrafe “associações criminosas”. XVIIª. As relações de parentesco que se estabelecem entre os arts. 21º, e 28º, resultam formados pela fusão de dois ou mais valores que já vários preceitos penais, exclusivamente, protegem: saúde pública (arts. 21º e 24º, entre outros) e a paz pública (secção do CP “dos crimes contra a paz pública”). XVIIIª. O tipo do crime de “associação criminosa”, p.p.p. art. 28º, nº 2, integra só por si, os elementos essenciais do tipo legal do crime de “tráfico de estupefacientes” XIXª. Ora, no caso em apreciação, ter-se-á de concluir face aos factos provados que estamos perante um só crime: o de associação criminosa p.p.p. nº 2 do art.
28º; XXª. Assim, temos que pela realização da mesma realidade fáctica a arguida é punida duas vezes, artºs 21º, nº 1, 24º, nº 1, als. b) e c) e 28º, nº 2, violando por isso o princípio constitucionalmente garantido, ne bis in idem... XXIª. Os factos que qualificaram o crime p.p.p. nº 2 do art. 28º são rigorosamente os mesmos, que por colação, qualificaram o tráfico de estupefacientes, pelo que uns e outros são indissociáveis. XXIIª. A expressão “crime”, deve pois ser tomada como uma certa conduta ou comportamento, ou melhor, como um dado de facto ou acontecimento histórico que, porque subsumível em determinados pressupostos de que depende a aplicação da lei penal constitui crime, sendo a proibição da dupla apreciação jurídico-penal de um determinado facto, já valorado, que se quer evitar. XXIIIª. Por isso entendemos que o art. 21º, 24º, 28º, do DL 15/93, de 22 de Janeiro, na interpretação dada pelo douto acórdão recorrido, conjugado com o art. 30º, nº 1, do CP são inconstitucionais, por permitir que alguém seja julgado e condenado pela prática do mesmo crime, ou, em concreto, duas vezes pela prática do mesmo facto, por violação do art. 29º, nº 5, da CRP, norma que foi violada, isto se aceitarmos que o art. 28º, nº 2, já abrange o bem jurídico tutelado pelos arts. 21º e 24º do mencionado diploma. Nestes termos e nos mais de direito, deve o presente recurso de apreciação concreta da constitucionalidade dos arts. 21º, 24º e 28º e, em particular, o nº
1 do art. 21º, b) e c) do art. 24º e nº 2 do art. 28º, do Decreto Lei 15/93 de
22 de Janeiro, em conjugação com o art. 30º do CP, ser considerado procedente, e por via dele, serem declarados inconstitucionais, se interpretados de acordo com o douto acórdão recorrido, por violação do nº 5 do art. 29º da Constituição da República Portuguesa, devendo os autos baixarem ao Supremo Tribunal de Justiça, para que o mesmo reforme o acórdão em conformidade com o julgamento sobre a questão de inconstitucionalidade suscitada e, assim se fazendo a costumada e sã justiça.
O recorrente J.A.L., por sua vez, disse a concluir a sua alegação:
1º O recorrente arguiu a inconstitucionalidade da norma do art. 433º do CPP, se interpretada no sentido de, tendo existido a arguição dos vícios a que alude o art. 410º, nº 2, alíneas A, B e C do CPP, em sede de apreciação dos referidos vícios, não se especificar a matéria provada, no que a ele concerne, por violação do disposto no art. 32º, nº 1, da, CRP.
2º Cabe referir que nos presentes autos, a matéria provada é composta por 94 páginas relativas a 53 arguidos julgados.
3º Na decisão proferida pelo Tribunal recorrido, e a propósito dos vícios do art. 410º, nº 2, do CPP apenas se referiu que a matéria provada fundamentava a decisão de direito, não existindo contradição, nem existindo erro notório na apreciação da prova.
4º A não enunciação da matéria provada em sede de apreciação do presente recurso e face à dimensão do processo, levanta a dúvida se a mesma terá sido apreciada de forma exacta ou adequada, o que é incompatível com o disposto no art. 32º, nº
1, da CRP, já que o processo criminal deve assegurar todas as garantias de defesa, incluindo o recurso, pelo que há violação clara deste preceito constitucional.
5º Com efeito tendo em conta a pluralidade de arguidos, de situações, de comportamentos, de acções, etc., afigura-se-nos que não estão asseguradas as garantias de defesa que prescreve a norma do art. 32º, nº 1, da CRP, se não se enunciar a matéria provada, em sede de apreciação do recurso do recorrente, de molde a perceber-se que o seu recurso foi correctamente julgado. Nestes termos e noutros de Direito doutamente supridos deverá ser concedido provimento ao recurso, declarando-se a inconstitucionalidade da norma do art.
433º do CPP se interpretada dentro do âmbito referido em 1 das conclusões, seguindo-se os ulteriores termos, fazendo-se justiça. Quanto ao recorrente A.J.A.F., terminou a sua alegação do modo seguinte:
1- Conforme resulta dos autos o recorrente não prestou declarações nos presentes autos.
2- Mesmo durante o inquérito qualquer cidadão deve ser confrontado com os factos que sobre si impendem, para já nesta fase se defender e também para melhor se esclarecer a verdade.
3- É que, tendo a acusação um poder inquestionavelmente superior à defesa, e afectando esta a situação jurídica do cidadão, caso o arguido não seja chamado a defender-se o seu direito de defesa fica irremediavelmente comprometido.
4- Tem pois qualquer cidadão na fase investigatória o direito de audição.
5- Não interpretando deste modo, o douto tribunal “a quo” o artigo 61º, nº 1, al. b) e f), a mesma está ferida de inconstitucionalidade por violar o estatuído no artigo 32º, nº 1, da CRP.
6- O art. 28º do DL 15/93 abarca para além da reunião de pessoas com vista a cometer um crime, também a prática de factos – venda de estupefacientes – que consubstanciam o crime p. e p. no art. 21º do mesmo diploma.
7- Existem assim duas zonas fácticas que são punidas pelo art. 28º e pelo art.
21º, sendo, portanto, censuráveis duas vezes.
8- Tal circunstância colide com o princípio ne bis in idem”.
9- Acresce ainda que o artigo 28º já prevê, como resulta das penas elevadas aí previstas, a prática do crime de tráfico de estupefacientes.
10- Ora, quando o douto tribunal “a quo” interpreta os artigos 21º, 24 e 28º do D.L. 15/93, conjugados com o artigo 30º do CP, da forma acima confrontada, faz com que essas normas contendam com o estatuído no artigo 29º, nº 5, da CRP tornando-as inconstitucionais. Violaram-se os artigos:
- 29º, nº 5 e 32º, nº 1 da CRP
- 21º, 24º e 28º do D.L. 15/93 Nestes termos e nos demais de direito deverá o presente recurso obter provimento julgando-se as normas acima apontadas inconstitucionais.
Também os recorrentes J.L.T.M.M. e M.A.T.M., apresentaram alegação que terminaram com as seguintes conclusões:
1º - Do douto acórdão condenatório interpuseram os recorrentes o competente recurso para o Venerando Supremo Tribunal de Justiça alegando (na parte aqui pertinente) que o mesmo aresto deveria ser considerado Nulo nos termos da alínea a) do art. 379º do CPP, por violação do disposto no nº 2 do art. 374º do mesmo Código.
2º - Ainda na sequência dessa alegação invocaram os recorrentes a inconstitucionalidade do mencionado artigo 374º, nº 2, com o entendimento que lhe foi conferido pelo Tribunal de 1ª Instância, espelhado no douto acórdão, por violação do art. 32º, nº 1 da CRP, dado que o mesmo considerou constitucional a interpretação de tal norma com o sentido de que não é necessário elaborar uma fundamentação indicando motivos de facto e de direito concretos e individuais para cada arguido, bem como, indicar os respectivos meios de prova para cada arguido e sobre que factos os mesmos valeram.
3º - O Venerando Supremo Tribunal de Justiça veio a corroborar esse entendimento considerando que a interpretação conferida ao mencionado artigo é conforme à Constituição, bastando para garantir a defesa de cada arguido a simples referência aos meios de prova, utilizando os seguintes argumentos:
4º - O artigo 374º, nº 2, do CPP não exige, no seu texto que, em caso de pluralidade de arguidos, a fundamentação seja distinta para cada arguido;
- Interpreta ainda tal norma no sentido de que a lei não exige que as provas tenham que ser distinguidas para cada arguido e para cada facto.
- Concluindo, resumidamente, que a exigência da lei visa apenas verificar a lógica e conformidade com a experiência comum e a utilização.
5º - Salvo o devido respeito por tão douta opinião, entendem os recorrentes que a mesma consubstancia violação do art. 32º, nº 1, da CRP por não assegurar todas as garantias de defesa ao arguido. Com efeito,
6º - Apenas nos parece conforme à citada norma constitucional a interpretação do artigo 374º, nº 2 do CPP de que, em caso de pluralidade de arguidos num só processo, a fundamentação da decisão, deverá concretizar e individualizar (ainda que, e pelo menos, sucintamente), quanto a cada arguido, as provas que serviram para fundamentar a decisão, a respectiva motivação de facto e de direito, bem como, de igual forma, indique os meios de prova que utilizou para prova de um facto ou conjunto de factos. É que,
7º - À simplicidade e lógica do argumento literal de que a lei não exige tal distinção, contraargumentam os recorrentes com afirmação de teor semelhante, esclarecendo que a norma em causa foi pensada e feita para os casos de processo com um arguido. Vejam-se as referências nos restantes números da norma. E assim,
8º - O que esta pretende é assegurar “ao arguido”, individualmente, encontre-se ou não em processo apenas seu ou com outros arguidos, a possibilidade de
“fiscalizar” o teor da decisão e a sua conformidade com os elementos carreados ou não para os autos.
9º - E tal desiderato não é dispiciendo ou de tão reduzido valor para a defesa do arguido quanto o entende a interpretação conferida pelo Supremo a tal norma; de facto pensamos em inúmeros casos concretos em que a diferença entre um e outro entendimento é substancial, como é o caso do exemplo que aqui se dá por reproduzido, e consta do corpo das presentes alegações. Nestes termos requer a V. Exªs. que, concedendo provimento ao presente recurso, venham a declarar a inconstitucionalidade da interpretação conferida ao artigo
374º, nº 2 do CPP pelos doutos e Venerandos Tribunais “a quo”, por violação do artigo 32º, nº 1, da CRP, por a interpretação possível não violadora de tal norma constitucional ser aquela que vem expressa na conclusão 6º destas alegações de recurso, com as legais consequências nos presentes autos.
Por sua parte, o PROCURADOR-GERAL ADJUNTO em exercício neste Tribunal concluiu do modo que segue a sua alegação:
1º. Não tendo os arguidos J.M. e M.M. suscitado, em termos tempestivos e adequados, durante o processo, a questão de inconstitucionalidade normativa a que se reportam os recursos de constitucionalidade, interpostos com fundamento na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, não deverá deles tomar-se conhecimento.
2º. Tendo o Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão recorrido, concluído pela preclusão da pretensa irregularidade, suscitada pelo arguido A.J.F., não há interesse processual em apreciar a questão de inconstitucionalidade que o mesmo reportou à norma do artigo 61º, alíneas b) e f), do Código de processo Penal.
3º. Não constitui interpretação inconstitucional da norma constante do artigo
433º do Código de Processo Penal a que se traduz em - rejeitada a existência de pretenso erro notório na apreciação da prova - se especificar no texto do acórdão a matéria de facto apurada nas instâncias e que subsiste incólume, atenta a inexistência dos vícios emergentes do preceituado no n.º 2 do artigo
410º do Código de Processo Penal.
4º. Não traduz interpretação inconstitucional da norma constante do n.º 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal (naturalmente com a redacção existente à data em que foi proferida a decisão impugnada) a circunstância de o tribunal - que se limitou a especificar os meios de prova em que se fundou a sua convicção
- ao proceder a uma análise crítica das provas e à reconstituição do “iter” lógico-jurídico que conduziu à formação da sua convicção, motivar a decisão com referência à matéria de facto que considerou provada (e não, individual,
“atomística” e subjectivamente, quanto a cada um dos arguidos), tendo em conta que, estando em causa situações de co-autoria, certos factos se configuram naturalmente como comuns a vários arguidos.
5º. É à ordem dos tribunais judiciais que incumbe proceder à interpretação e aplicação do direito infraconstitucional, cabendo-lhe determinar, no âmbito dessa tarefa, quais os bens jurídicos protegidos por cada norma incriminadora, para daí concluir sobre qual o tipo de concurso - real ou aparente - existente entre tais normas, cujas previsões foram preenchidas com a actuação do arguido.
6º. Assente que entre os crimes de tráfico de estupefacientes e de associação criminosa visando o tráfico, previstos e punidos nos artigos 21º e 28º do Decreto-Lei n.º 15/93, existe um concurso real, atenta a essencial diversidade dos bens jurídicos tutelados por um e outro desses tipos legais de crime, não traduz violação do princípio “ne bis in idem” a aplicação aos arguidos de sanções pelo cometimento de um e outro daqueles crimes.
7º. Termos em que deverão improceder os recursos interpostos.
Os recorrentes, a quem as questões prévias suscitadas pelo Ministério Público respeitam, foram ouvidos sobre elas. Disseram, a esse propósito, os recorrentes J.M. e M.M.:
1ª - Embora seja certo que os recorrentes tratam da questão da nulidade (por violação de norma processual penal) referida pelo Exmº Procurador-Geral Adjunto, discordam os recorrentes da opinião expendida nas doutas contra-alegações de recurso quanto à sua inadmissibilidade, porquanto, não existe confusão ou unificação entre essa questão e a da inconstitucionalidade levantada;
2ª - A qual (questão de inconstitucionalidade), foi arguida pelos recorrentes de forma adequada e suficiente, e ainda que sumariamente, fundamentada, dela constando todas as referências necessárias ao conhecimento da sua bondade por este Venerando Tribunal.
3ª - É isso mesmo que resulta, pelo menos do texto ou contexto em que tal invocação se insere, tendo como tal sido apreciada plenamente pelo Venerando Supremo Tribunal de Justiça. Nestes termos e nos demais de direito deverá o presente recurso ser admitido e seguir os seus termos legais até final.
Por sua parte, o recorrente A.J.A. F. disse:
1 – O STJ interpretou o artigo 61º, nº 1, al. f), sendo certo que é sobre este ponto que o Tribunal Constitucional se terá de pronunciar.
2 – A questão de se saber se estamos perante uma nulidade ou irregularidade já constitui uma consequência que ultrapassa o Tribunal Constitucional.
3 – Acresce ainda que estamos perante uma nulidade, uma vez que, qualquer cidadão tem o direito de se defender, de ser ouvido durante a fase investigatória, estando este direito consagrado na Constituição.
4 – É que o arguido recorrente apenas teve conhecimento deste processo quando recebeu a acusação como tal não poderia fazer uso do artigo 61º, nº 1, al. f).
5 – A segunda questão prévia colocada, salvo o devido respeito, também não procede, uma vez que, sendo certo que compete aos tribunais judiciais a interpretação das normas jurídicas o mesmo se diga que é o Tribunal Constitucional que fiscaliza essa interpretação.
6 – Ora, o que no caso sub judice se pretende é exactamente saber se a interpretação levada a cabo pelo douto tribunal “a quo” está em conformidade com as normas constitucionais. Nestes termos e demais de direito deverão as questões prévias suscitadas serem consideradas improcedentes.
2. Cumpre decidir.
II. Fundamentos:
4. Questões prévias:
4. 1. Recursos de J.L.T.M.M. e de M.A.T.M.:
Na motivação do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (isto é: durante o processo), os recorrentes não suscitaram a inconstitucionalidade da norma do artigo 374º, n.º 2, do Código de Processo Penal, na interpretação que, agora, acusam de inconstitucional, ou seja, interpretada “de molde a considerar como não sendo necessário concretizar a relação existente entre os meios de prova que serviram para formar a convicção do tribunal e os respectivos factos (ou em relação à responsabilidade de cada arguido), sobre os quais a mesma incidiu”. O que eles disseram foi que “o acórdão violou o artigo 374º, n.º 2, do CPP, ao não indicar quais os motivos ou provas que apoiaram o tribunal na condenação de cada um dos arguidos individualmente considerados” (conclusão I, folhas 12.876). E acrescentaram: “mais se suscita a inconstitucionalidade do douto acórdão por violação do artigo 32º da CRP, já que a ausência de um critério distintivo quanto às motivações de facto e de direito que fundamentaram a decisão e a indicação dos meios de prova que serviram para formar a convicção do tribunal, põem em causa as garantias de defesa dos arguidos” (conclusão IV, folhas citadas).
Pois bem: este Tribunal tem dito repetidamente que não pode apreciar a constitucionalidade das decisões judiciais recorridas, consideradas em si mesmas. Ele só pode sindicar a constitucionalidade das normas jurídicas que essas decisões tenham desaplicado, por as julgar inconstitucionais, ou que as hajam aplicado, não obstante, durante o processo, o recorrente lhes ter assacado o vício de inconstitucionalidade.
Como se não verifica, quanto a estes recursos, o pressuposto da suscitação de uma questão de inconstitucionalidade normativa, durante o processo, deles não vai conhecer-se.
4.2. Recurso de A.J.A. F.:
O Tribunal só vai conhecer do recurso interposto por este recorrente, na parte em que ele tem por objecto a constitucionalidade das normas que se contêm nos artigos 21º, 24º e 28º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, e no artigo
30º do Código Penal, “com o sentido de que é possível o concurso real entre o crime de tráfico de estupefacientes agravado e o crime de associação criminosa”. Não tomará conhecimento desse recurso, enquanto ele tem por objecto a norma constante do artigo 61º, n.º 1, alíneas b) e f), do Código de Processo Penal,
“com o sentido da desnecessidade de o arguido ser ouvido durante o inquérito sobre os factos que lhe imputam”.
É certo que, na motivação do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, este recorrente disse que, “durante as investigações nunca lhe foi dada a oportunidade de se defender dos factos que posteriormente lhe vieram a ser imputados”, pois que “apenas foi ouvido na investigação respeitante ao crime de branqueamento”. E acrescentou: “a interpretação a dar ao artigo 61º, n.º 1, alíneas b) e f), terá de ser a de obrigatoriamente o arguido ser ouvido em sede de inquérito sob pena de este preceito estar inquinado de inconstitucionalidade, por violação do artigo 32º da CRP”. Simplesmente, o acórdão recorrido - depois de consignar que o recorrente “foi ouvido durante inquérito”; que, “ao ser ouvido, tem de estar acompanhado de defensor”; que, “em face do que lhe era perguntado, não estava inibido de intervir no inquérito e na instrução, de acordo com o estipulado na alínea f) do n.º 1 do artigo 61º do Código de Processo Penal”; e que, “se nada fez, foi porque não quis”, pois “não há nos autos prova de a sua intervenção lhe ter sido vedada” - acrescentou: “em face do disposto nos artigos 118º a 123º do Código de Processo Penal, há que concluir que não se está perante uma nulidade, mas sim de uma irregularidade - que não se mostra verificada - e, por conseguinte, o momento em que a questão foi levantada é (seria) extemporâneo”. Ou seja: para o acórdão recorrido, suposto que se tivesse cometido uma irregularidade durante o inquérito, a mesma, por força do que se prescreve nos artigos 118º a 123º do Código de Processo Penal, sempre estaria sanada, por o recorrente a não ter suscitado a tempo.
Ora, estando sanada a irregularidade eventualmente cometida, se este Tribunal fosse apreciar, sub specie constitutionis, o referido artigo 61º, n.º 1, alíneas b) e f), e, acaso, concluísse pela ilegitimidade constitucional da interpretação que o acórdão recorrido dele fez, esse julgamento não iria repercutir-se de nenhum modo no processo, pois, por força dele, não iria extrair-se qualquer consequência daquela eventual irregularidade. Só um juízo de inconstitucionalidade, que o Tribunal, acaso, viesse a formular sobre a interpretação que o acórdão recorrido fez dos mencionados artigos 118º a 123º, era susceptível de se repercutir sobre essa eventual irregularidade. Estas normas, porém, não constituem objecto do recurso. Não existe, por isso, interesse processual na decisão de uma tal questão de constitucionalidade.
Como os recursos de constitucionalidade desempenham uma função instrumental, não vai, como já se disse, conhecer-se deste recurso, na parte em que ele tem por objecto o artigo 61º, n.º 1, alíneas b) e f), do Código de Processo Penal.
5. As questões de constitucionalidade:
5.1. Artigo 374º, n.º 2, do Código de Processo Penal:
A recorrente M.G.L.T., no requerimento de interposição de recurso para este Tribunal, questionou a constitucionalidade da norma constante do artigo 374º, n.º 2, do Código de Processo Penal, “se interpretado no sentido descrito da referida peça” (ou seja, no acórdão recorrido).
O acórdão recorrido foi confrontado com a seguinte questão de constitucionalidade, colocada pela recorrente na respectiva motivação: o artigo
374º, n.º 2, do Código de Processo Penal estaria ferido de inconstitucionalidade, “se interpretado no sentido de a exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, ser suficiente, desde que o tribunal indique os meios de prova considerados, a proficuidade e quantidade de elementos recolhidos provenientes desses meios de prova, mas sem concretizar o alcance da mesma em relação a cada um dos arguidos ou grupos de arguidos existentes no processo”
(cf. a conclusão 10ª). Ou seja: a recorrente questionou a constitucionalidade do referido artigo 374º, n.º 2, se interpretado no sentido de que, sendo vários os arguidos, “a exposição dos motivos de facto e de direito, que fundamentam a decisão, e a indicação das provas, que serviram para formar a convicção do tribunal”, pode ser “feita de forma global”, sem necessidade de concretizar “os motivos ou provas que apoiaram o tribunal na condenação de uns ou outros arguidos” (cf. a conclusão 5ª da mesma motivação).
Esta questão mereceu do acórdão recorrido a seguinte resposta: Se atentarmos no n.º 2 do artigo 374º, não vemos aí exigido que a fundamentação tenha de ser distinta para cada um dos arguidos, no caso de pluralidade destes. Daí o ser jurisprudência deste Tribunal que “a lei não exige que as provas que fundamentam a decisão tenham de ser distinguidas para cada um dos arguidos” - acórdão de 24.6.92, Proc. 42.767.
Pois bem: como se sublinhou no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13 de Fevereiro de 1992 (publicado na Colectânea de Jurisprudência, ano XVII, 1992, tomo I, páginas 36 e 37), o dever de fundamentação da sentença só se cumpre, quando esta - para além de conter a indicação dos factos provados e não provados e a indicação dos meios de prova - contiver os “elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituíram o substracto racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse no sentido de considerar provados e não provados os factos da acusação”.
A este mesmo propósito, disse-se, no acórdão n.º 322/93 deste Tribunal
(publicado no Diário da República, II série, de 29 de Outubro de 1993), que,
“estando em causa uma decisão de um tribunal colectivo e tendo a fundamentação, por isso - como se assinalou no acórdão 61/88 - que traduzir ou reflectir o
‘mínimo de acordo ou convergência consensual maioritariamente apurada no seio do tribunal’ (onde pode ser diverso, de juiz para juiz, o fundamento da resposta num dado sentido ou ‘oferecer entre todos cambiantes significativos’), há-de ela
(a fundamentação) permitir, no entanto (e sempre), avaliar cabalmente o porquê da decisão. Ou seja: no dizer de MICHELLE TARUFFO (‘Note sulla garanzia costituzionale della motivazione’, in Boletim da Faculdade de Direito, volume IV, páginas 29 e seguintes), a fundamentação da sentença há-de permitir a
‘transparência’ do processo e da decisão”. Posteriormente, no acórdão n.º 172/94
(publicado no Diário da República, II série, de 19 de Julho de 1994), o Tribunal insistiu em que “a fundamentação da decisão do tribunal colectivo, no quadro integral das exigências que lhe são impostas por lei, há-de permitir ao tribunal superior uma avaliação segura e cabal do porquê da decisão e do processo lógico-mental que serviu de suporte ao respectivo conteúdo”. E, mais recentemente, no acórdão n.º 573/98 (publicado no Diário da República, II série, de 13 de Novembro de 1998), o Tribunal sublinhou que a decisão sobre a matéria de facto tem que “estar substancialmente fundamentada ou motivada - não através de uma mera indicação ou arrolamento dos meios probatórios, mas de uma verdadeira reconstituição e análise crítica do iter que conduziu a considerar cada facto como provado ou não provado”. Foi na esteira deste reiterado entendimento jurisprudencial, que o Tribunal, no seu acórdão n.º 680/98 (por publicar), julgou inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal, “na interpretação segundo a qual a fundamentação das decisões em matéria de facto se basta com a simples enumeração dos meios de prova utilizados em 1ª instância”.
Simplesmente, não é este o caso do acórdão recorrido, pois - como refere o Ministério Público - a decisão da 1ª instância que ele confirmou “tratou de fundamentar ou motivar, aprofundada e substancialmente, as razões que determinaram a formação da convicção do tribunal acerca da matéria de facto que considerou provada. Fê-lo ao longo de fls. 12.493 e 12.498, não se limitando a uma simples enunciação ou especificação dos meios de prova que considerou relevantes e decisivos, mas procedendo também a uma análise crítica das provas, da qual resulta perfeitamente reconstituído o ‘iter’ que conduziu à referida convicção do tribunal”. Depois - e decisivamente -, também não é nesta dimensão que a recorrente questiona a constitucionalidade do artigo 374º, n.º 2, do Código de Processo Penal. O que ela questiona é que a fundamentação possa ser
“feita de forma global”, sem necessidade de concretizar “os motivos ou provas que apoiaram o tribunal na condenação de uns ou outros arguidos”.
Sendo esta a questão de constitucionalidade que, agora, há que enfrentar, adianta-se já que o artigo 374º, n.º 2, do Código de Processo Penal, no ponto ora considerado, não é inconstitucional, quando interpretado, como foi pelo acórdão recorrido, no sentido de que, sendo vários os arguidos que, em co-autoria, praticaram os factos delituosos, o tribunal não tem que fazer uma fundamentação formalmente distinta para cada um deles.
O tribunal do julgamento tem, é certo, que explicitar as razões que, relativamente aos vários arguidos, o levaram a convencer-se de que todos eles praticaram os factos que deu como provados. Mas a fundamentação não tem que ser distinta para cada um dos arguidos. Nem tão-pouco tem que ser uma espécie de assentada, em que o tribunal reproduza os depoimentos das testemunhas ouvidas, ainda que de forma sintética. O que a fundamentação tem que deixar claro é o porquê da decisão relativamente a cada um deles. Como sublinha o Ministério Público, “a fundamentação tem, pela natureza das coisas, de estar reportada e conexionada com a própria matéria de facto que constitui objecto do recurso - ou seja, a fundamentação tem de aparecer estruturada em função da própria descrição daqueles factos, e não da responsabilidade, subjectiva e pessoal, de cada um dos arguidos”.
Em contrário da conclusão a que acaba de chegar-se, não se argumente, dizendo que uma fundamentação assim não permite saber que prova, em concreto, serviu para formar a convicção do tribunal em relação a cada um dos arguidos.
É que, sendo imputados a cada um dos arguidos factos determinados, a fundamentação aduzida pelo tribunal, para julgar provados os factos que considerar tais, é bastante para que cada arguido possa saber que provas suportam a sua condenação.
Repete-se: a interpretação do artigo 374º, n.º 2, do Código de Processo Penal, feita pelo acórdão recorrido, no ponto aqui considerado, não é inconstitucional.
Há, por isso, que negar provimento ao recurso interposto por M.G.L. T..
5.2. Os artigos 21º, 24º e 28º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, e o artigo 30º do Código Penal:
Os recorrentes S.P.R.G. e A.J.A.F. questionam a constitucionalidade destes artigos (o artigo 24º só o indica o recorrente Almeida Ferreira), interpretados
“com o sentido de que é possível concurso real entre o crime de tráfico de estupefacientes, [designadamente] agravado, e o de associação criminosa”. Em seu entender, nessa interpretação, o referido bloco normativo permite que “alguém seja julgado e condenado [...] duas vezes pela prática do mesmo facto” (são palavras da alegação da recorrente S.P.R.G.) - o que viola o princípio ne bis in idem (e, assim, o artigo 29º, n.º 5, da Constituição).
O 21º, no seu n.º 1 - que é o que, nos autos, está verdadeiramente em causa -, prevê e pune, entre outros, o crime de tráfico de estupefacientes. O artigo 24º prevê uma agravação, designadamente, do crime de tráfico de estupefacientes. No artigo 28º (a Lei n.º 45/96, de 3 de Setembro, deu nova redacção aos seus nºs
1 e 3), prevê-se e pune-se o crime de associação criminosa em matéria de tráfico de estupefacientes e actividades ilícitas conexas. O artigo 30º do Código Penal, no seu n.º 1 - que é o que está em causa nos autos
-, dispõe que “o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente”.
Vejamos, então:
O artigo 29º, n.º 5, da Constituição dispõe que “ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”. Segundo J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, Coimbra, 1993, página 194), este preceito constitucional “proíbe rigorosamente o duplo julgamento e não a dupla penalização, mas é óbvio que a proibição do duplo julgamento pretende evitar tanto a condenação de alguém que já tenha sido definitivamente absolvido pela prática da infracção, como a aplicação renovada de sanções jurídico-penais pela prática do mesmo crime” [Sobre uma aplicação do princípio ne bis in idem e a sua conjugação com o direito à revisão de sentenças condenatórias - n.º 6 do artigo
29º -, cf. o acórdão n.º 158 da Comissão Constitucional (publicado no Apêndice ao Diário da República, de 31 de Dezembro de 1979, página 68 a 71)].
Verdadeiramente, pois, o que importa é saber se se está perante a “prática do mesmo crime” ou perante um concurso efectivo de infracções, quer este concurso seja real, quer seja ideal (Sobre todos estes conceitos, cf. EDUARDO CORREIA, Unidade e Pluralidade de Infracções, Coimbra, ).
É que, sendo o concurso de crimes efectivo, e não meramente aparente, a dupla penalização não viola o princípio constitucional do ne bis in idem. E isto, porque as sanções, que cada uma das normas penais que se encontram em concurso prevê, se destinam, cada uma delas, a punir a violação de um bem jurídico diferente; ou, então, porque o bem jurídico, que a mesma conduta viola por mais do que uma vez, é um bem jurídico eminentemente pessoal. Em ambos os casos, não se está em presença do mesmo crime, embora se esteja em presença do mesmo facto ou da mesma acção delituosa, o que vale por dizer de uma mesma conduta naturalística. Para decidir se existe um único crime ou um concurso efectivo de crimes, há que recorrer - recordam aqueles autores (ob. e loc. cit.) - “aos conceitos jurídico-processuais e jurídico-materiais desenvolvidos pela doutrina do direito e processo penais”.
Pois bem: o acórdão recorrido, ao apreciar o recurso do arguido A.J.A.F., tendo concluído que ele cometeu os crimes por que fora condenado na 1ª instância
(crime de tráfico de estupefacientes agravado e crime de participação em associação criminosa), disse, a propósito da questão de constitucionalidade, o seguinte: Se tivermos em conta o disposto no n.º 1 do artigo 21º e o n.º 1 do artigo 28º
(ou o n.º 2), do Decreto-Lei n.º 15/93, temos que concluir que cada uma das normas contempla, protege, diferentes bens jurídicos. Assim, o crime de tráfico de estupefacientes protege uma multiplicidade de bens jurídicos, designadamente de carácter pessoal, embora todos eles possam ser reconduzidos a um mais geral: a saúde pública - ver acórdão do Tribunal Constitucional, de 6.11.91, B. M. J.,
411, página 56. Já o crime de associação criminosa protege a paz pública. Como se lê em Moraes Rocha - Droga. Regime Jurídico, 1994, página 95, “o artigo 28º contempla um tipo de crime distinto do tráfico e com este entrará, sendo caso, numa relação de concurso efectivo”. Sendo assim, não existe qualquer violação a preceito legal, nomeadamente ao artigo 29º, n.º 5, da CRP.
O mesmo acórdão, quando se debruçou sobre o recurso da arguida S.P.R.G., voltou a dizer que se verificava “uma situação de concurso real de crimes”, pois ela havia praticado “dois crimes diferentes”(um crime de tráfico de estupefacientes agravado e outro de participação em associação criminosa).
Este Tribunal, no seu acórdão n.º 426/91 (publicado no Diário da República, II série, de 2 de Abril de 1992), a propósito do crime de tráfico de estupefacientes, disse que “o tráfico põe em causa uma pluralidade de bens jurídicos: a vida, a integridade física e a liberdade dos virtuais consumidores de estupefacientes; e, demais, afecta a vida em sociedade, na medida em que dificulta a inserção social dos consumidores e possui comprovados efeitos criminógenos”. E, mais adiante, acrescentou que se “protege uma multiplicidade de bens jurídicos, designadamente de carácter pessoal - embora todos eles possam ser reconduzidos a um mais geral: a saúde pública”. Quanto ao crime de associação criminosa, é manifesto que nele não está em causa a saúde pública. Em causa estará, isso sim, como se sustenta no acórdão recorrido, a paz pública.
Concluindo o acórdão recorrido, com o apoio da doutrina, que os artigos 21º, 24º e 28º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro - que prevêem o crime de tráfico ilícito de estupefacientes e o de associação criminosa - se encontram, entre si, numa relação de concurso real, pois são diferentes os bens jurídicos tutelados por cada um desses normativos, tais normas, nessa interpretação, não violam o princípio ne bis in idem - e, assim, o n.º 5 do artigo 29º da Constituição. Tem, por isso, que negar-se provimento aos recursos interpostos por S.P.R.G. e A.J.A.F.: ao interposto por este último, obviamente apenas na parte em que ele tem por objecto as normas legais que vêm sendo referidas.
5.3. A norma do artigo 433º do Código de Processo Penal:
O recorrente J.A.L. questiona a constitucionalidade da norma constante do artigo
433º do Código de Processo Penal, na seguinte interpretação: “se, tendo existido arguição dos vícios a que alude o artigo 410º, n.º 2, alíneas a), b) e c), do Código de Processo Penal, em sede de apreciação dos referidos vícios, não se especificar a matéria provada no que a ele concerne”. Só no requerimento de interposição do recurso para este Tribunal, ele suscitou esta questão de constitucionalidade, alegando, para o efeito, que “foi confrontado com uma interpretação [...] que não contava”.
O acórdão recorrido, a propósito dos vícios a que se referem as alíneas a), b) e c) do n.º 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal, disse o seguinte: Como é jurisprudência pacífica e constante deste Supremo, para que ocorram os vícios previstos nas alíneas do n.º 2 do artigo 410º, é necessário que os mesmos resultem do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugadamente com as regras da experiência comum, sem possibilidade de recurso a outros elementos, ainda que constantes dos autos. Os factos dados como provados e relacionados com o ora recorrente fundamentam, sem lugar para dúvidas, a decisão de direito proferida. Por outro lado, não há qualquer contradição insanável da fundamentação, pois nada há que impeça ou impossibilite a decisão proferida (ac. do STJ de 13.1.98, Proc. n.º 1.169/97). Sendo erro notório na apreciação da prova aquele que é de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, resulta da leitura do acórdão que tal vício não existe. Não se pode confundir este erro com a opinião que o recorrente formulou sobre a prova produzida, divergente da que veio a vingar.
O acórdão recorrido fez, pois, do artigo 410º, n.º 2, do Código de Processo Penal uma interpretação que, para além de ser a corrente na jurisprudência, este Tribunal, ainda recentemente, no citado acórdão n.º 573/98, concluiu ser compatível com a Constituição.
Não seria, por isso, excessivo dizer que a interpretação, feita pelo acórdão recorrido, do artigo 410º (conjugado com o artigo 433º) não é aquela que o recorrente reputa inconstitucional. E, então, poderia perfeitamente concluir-se que se não verificava, no caso, o pressuposto do recurso interposto; ou seja, que a decisão recorrida não tinha aplicado a norma que o recorrente pretende ver apreciada sub specie constitutionis. Acresce que, tendo o acórdão recorrido feito uma interpretação corrente daquele preceito legal, poderia também concluir-se que se não justificava dispensá-lo do
ónus da suscitação, durante o processo, da questão de constitucionalidade.
Admitindo, porém, que a interpretação do mencionado artigo 433º, cuja constitucionalidade o recorrente questiona, não é a que se apontou; e que a interpretação, que ele “lê” no acórdão recorrido, pode extrair-se do mesmo e referir-se àquele preceito legal; tem que concluir-se pela manifesta falta de fundamento da questão de constitucionalidade que coloca. De facto, o acórdão recorrido disse que os vícios referidos nas alíneas a), b), e c) do n.º 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal só serão relevantes, se resultarem “do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugadamente com as regras da experiência comum, sem possibilidade de recurso a outros elementos, ainda que constantes dos autos”. E, depois de transcrever toda a matéria de facto apurada pela 1ª instância (folhas 13.702 a 13.829); e de precisar em que consiste cada um desses vícios; acrescentou que nenhum deles se verifica no caso. Ora, não se vê como é que a interpretação adoptada pelo aresto aqui em recurso - cujos exactos contornos, na leitura que dela faz o recorrente, se não chegam a perceber com clareza - pode violar o princípio das garantias de defesa
(consagrado no artigo 32º, n.º 1, da Constituição). Na verdade, para que o princípio da defesa se possa dizer violado, em termos de se dever concluir pela inconstitucionalidade de uma determinada interpretação de certa norma legal, não basta que, “face à dimensão do processo”, ao recorrente se “levante a dúvida se a mesma [é dizer: a matéria de facto] terá sido apreciada de forma exacta ou adequada” (cf. conclusão 4º).
Há, pois, que julgar improcedente o recurso interposto pelo recorrente J.A. L.
III. Decisão:
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal decide:
(a). não conhecer dos recursos interpostos por J.L.T.M.M., M.A.T.M. e, na parte atrás apontada, por A.J.A. F.;
(b). julgar improcedentes os recursos interpostos por M.G.L.T., S.P.R.G., J.A L. e A.J.A.F. (o deste, apenas na parte em que se conheceu do respectivo objecto);
(c). condenar os recorrentes J.L.T.M.M., M.A.T.M., M.G.L.T., S.P. R. G., J.A.L. e A.J.A.F. em custas, fixando em oito unidades de conta a taxa de justiça, a pagar por cada um dos dois primeiros recorrentes; e em quinze unidades de conta a taxa de justiça, a pagar por cada um dos restantes recorrentes.
Lisboa, 10 de Fevereiro de 1999 Messias Bento José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida