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Processo n.º 109/98 ACÓRDÃo Nº 104/99 Conselheiro Messias Bento
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. M... recorre para o Tribunal Constitucional do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (1ª Secção), de 16 de Outubro de 1997, que concedeu provimento ao recurso interposto pelos ora recorridos da sentença do Juiz do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, que tinha julgado procedente a acção para o reconhecimento de direitos por ela proposta contra o CONSELHO DIRECTIVO DO INSTITUTO NACIONAL DE ENGENHARIA E TECNOLOGIA INDUSTRIAL (INETI), o MINISTRO DA INDÚSTRIA E ENERGIA e o MINISTRO DAS FINANÇAS.
O recurso vem interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional e visa a apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 69º, n.º 2, da Lei do Processo dos Tribunais Administrativos (LPTA), 'na interpretação que lhe foi dada pelo Supremo Tribunal Administrativo', segundo a qual 'as acções para o reconhecimento dum direito ou interesse legalmente protegido só podem ser propostas quando os restantes meios contenciosos, incluindo os relativos à execução de sentença, não asseguram a efectiva tutela jurisdicional do direito ou interesse em causa, pelo que têm uma função complementar dos instrumentos processuais comuns postos à disposição do particular'.
Na referida acção para o reconhecimento de direitos, a ora recorrente alegou ser investigadora principal do INETI - cargo para que fora nomeada por despacho publicado no Diário da República, II série, de 19 de Maio de 1987 - e pediu a condenação dos réus a reconhecerem o seu direito ao posicionamento nos escalões na categoria de investigador principal a partir de 1 de Julho de 1990, de acordo com a regra de que a integração deve ser feita em escalão da categoria a que foram promovidos a que corresponda um índice não inferior a dez pontos relativamente àquele a que teriam direito pela progressão na categoria anterior. Subsidiariamente pediu o reconhecimento do seu direito ao reposicionamento de acordo com a regra de que a remuneração dos promovidos primeiro a investigadores principais seja feita pelo escalão da categoria para a qual se verificou a promoção, a que corresponda o índice superior mais aproximado daquele que caberia em caso de progressão na categoria inferior de investigador auxiliar. Pediu ainda, em qualquer das situações, a condenação no pagamento das diferenças entre os vencimentos processados e aqueles a que teria direito pelo correcto posicionamento.
A recorrente concluiu as alegações que apresentou neste Tribunal do modo que segue: a). Embora o elemento histórico inculque uma interpretação declarativa do artigo
69º, nº 2, da LPTA, o elemento sistemático impõe um entendimento restritivo da limitação consagrada naquele preceito relativamente ao âmbito de aplicação da acção para reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido; b). Essa interpretação restritiva manifesta-se no tocante à irrelevância do indeferimento tácito como facto impeditivo e à relevância a atribuir ao critério da efectividade da tutela em termos de esta, no tocante a actos positivos expressos, se aferir pela suficiência da impugnação de um único desses actos para tutelar o direito ou interesse legalmente protegido em causa; c). O pendor restritivo da interpretação do artigo 69º, nº 2, daquele diploma esbarra, porém, no sentido claramente limitativo nele intencionado e, bem assim, na chamada «teoria da alusão»; d). No acórdão recorrido foi adoptada uma interpretação mais próxima do teor literal do artigo 69º, nº 2, da LPTA, logo mais próxima da interpretação declarativa, ao entender-se que, nos termos do preceito em causa, a acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido só pode ser utilizada quando não se possa recorrer a nenhum dos restantes meios contenciosos; e). Nomeadamente, foi entendido que havendo acto administrativo expresso lesivo dos interesses de um particular - o que in casu se verificaria em relação aos sucessivos actos de processamento dos vencimentos - este só se poderia defender pela via jurisdicional interpondo um recurso contencioso do mesmo, e isto porque o artigo 69º, nº 2, da LPTA seria impeditivo da propositura duma acção para reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido; f). Entre 1982 (1ª revisão constitucional) e 1989 (2ª revisão constitucional) o artigo 69º, nº 2, da LPTA tinha de ser objecto de uma interpretação (restritiva) conforme à Constituição no sentido de a expressão 'restantes meios contenciosos' se reportar apenas ao recurso contencioso, com fundamento em ilegalidade, de actos administrativos definitivos e executórios (não abrangendo, portanto, as acções sobre contratos e responsabilidade civil extracontratual); g). Porém, a partir de 1989 verifica-se uma incompatibilidade com o artigo 268º, nº 5, da CRP, independentemente do carácter mais ou menos restritivo daquele preceito; h). Essa inconstitucionalidade ainda é mais patente face à nova redacção dada pela 4ª revisão constitucional ao artigo 268º, nº 4, da CRP, ou seja, o artigo
69º, nº 2, da LPTA é hoje inconstitucional por violar o mencionado preceito constitucional; i). A interposição de recurso contencioso, à luz do artigo 268º, nº 5, da CRP
(na redacção dada pela 2ª revisão constitucional) ou do artigo 268º, nº 4, do mesmo normativo (na redacção dada pela 4ª revisão constitucional), só é condição necessária para a tutela dos direitos ou interesses legítimos dos administrados no caso de a Administração ter praticado um acto administrativo lesivo dos mesmos direitos ou interesses, uma vez que a respectiva não impugnação contenciosa pelos interessados pode permitir a formação de caso decidido com eficácia extintiva ou restritiva da posição jurídica subjectiva activa que os administrados pretendem ver tutelada por via jurisdicional; j). Com efeito, mantendo-se o poder da Administração de praticar actos dotados de imperatividade, ou seja, com o poder de produzir efeitos jurídicos na esfera jurídica de terceiros independentemente da vontade destes, mantém-se igualmente o ónus de os lesados por actos com essa eficácia os impugnarem contenciosamente sob pena de verem a sua esfera jurídica conformada nos termos definidos pelos actos em causa; l). Assim, a necessidade de utilização do meio processual recurso contencioso decorre hoje, à luz do previsto no artigo 268º da CRP, exclusivamente da circunstância de um reconhecimento dum direito ou interesse legítimo poder exigir a prévia eliminação dum acto administrativo expresso; m). E, mesmo perante actos administrativos expressos, não se pode excluir de plano que a propositura de uma acção para reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido seja condição suficiente para impedir a formação do caso decidido - desde que a mesma ocorra dentro do prazo de dois meses; n). O artigo 69º, nº 2, da LPTA afirma o princípio inverso: a interposição de recurso contencioso só não é necessária para a tutela dos direitos ou interesses legítimos dos administrados no caso das omissões da Administração ou caso a interposição do recurso contencioso excepcionalmente não assegure a efectiva tutela jurisdicional à posição jurídica subjectiva em causa; o). Na verdade, as alterações introduzidas na CRP na 2ª revisão constitucional respeitantes ao posicionamento constitucional da Administração Pública - e que não se circunscrevem ao artigo 268º, nºs 4 e 5, pois devem igualmente ser salientadas quer a constitucionalização formal dos tribunais administrativos
(arts. 211º, nº 1, alínea b), e 214º), quer a definição da função jurídico-constitucional da jurisdição administrativa (artigo 214º, nº 3), e, bem assim, o reforço da tutela dos administrados através da consagração expressis verbis do direito de acção popular de defesa de determinados bens colectivos
(artigo 52º, nº 3) - representaram uma profundíssima alteração do sistema administrativo português: este deixou de se centrar no Poder Administrativo e na sua manifestação mais importante, o acto administrativo, para se afirmar, cada vez mais, como um ordenamento vinculativo de sujeitos titulares de direitos e vinculações; p). Em primeiro plano está agora o cidadão titular de direitos e interesses legalmente protegidos - sujeito de uma relação jurídico-administrativa - e não já o destinatário do Poder Administrativo; inversamente, a Administração, sem deixar de ser poder, revela-se igualmente como sujeito de relações jurídicas; q). A esta luz perde todo o sentido a preferência pelos meios impugnatórios; aliás, sempre que esteja em causa directamente a relação jurídica administrativa
é natural que a preferência do particular vá para a acção (já não apenas a acção para reconhecimento de direitos ou interesses legítimos, mas também as demais acções - daí a formulação abrangente do artigo 268º da CRP), pois, se ao nível constitucional é sempre garantido o acesso à justiça administrativa aos administrados que pretendam a tutela directa das suas posições jurídicas subjectivas, para mais nos mesmos termos e com idêntica força normativa em que é garantido o recurso contencioso, então o legislador ordinário não pode subordinar o campo de aplicação de uns meios processuais a outros, substituindo-se, desse modo, aos administrados na escolha da tutela mais adequada aos respectivos interesses; r). Ora, é precisamente esse o significado objectivo do artigo 69º, nº 2, da LPTA: limitar o campo de aplicação da acção para reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido às situações em que os restantes meios não assegurem uma tutela jurisdicional efectiva, ou seja, o legislador ordinário faz nesse preceito uma opção em favor dos meios próprios do contencioso de anulação e do tradicional contencioso por atribuição, opção essa que o legislador constituinte expressamente quis reservar aos particulares; s). Interpretar a 2ª revisão constitucional relativamente ao artigo 268º, nº 5, da CRP como um mero aperfeiçoamento técnico legislativo é historicamente errado, inadequado do ponto de vista da análise gramatical, mas, sobretudo, insustentável nos planos da sistemática e da teleologia constitucional; t). Por outro lado, também não procede a tentativa de ver no artigo 69º, nº 2, da LPTA a consagração do pressuposto processual do interesse em agir por referência à dependência do prévio exercício de quaisquer outros meios impugnatórios para efeitos de acesso à justiça administrativa, porquanto tal mais não é do que a definição de uma relação de subsidiariedade ou de complementaridade entre meios processuais autónomos aí onde a Constituição expressamente consagra uma equivalência funcional entre todos os meios; u). Na verdade, o legislador ordinário pode regular o acesso à justiça administrativa, quer pela via do recurso, quer pela via da acção; o que não pode
é introduzir um esquema de precedência de uma via sobre a outra aí onde o legislador constituinte afirmou uma igualdade fundamental - e é precisamente isso que o artigo 69º, nº 2, da LPTA consagra, pelo que não pode deixar de se ter como inconstitucionalizado; v). Por outro lado, há que ter em conta que o caso decidido pode sempre relevar num quadro de admissibilidade do acesso à via jurisdicional alternativamente através do recurso contencioso ou da acção, mas a título de condição da acção - ou seja, tal efeito pode relevar quanto ao fundo da causa, não tem de relevar como pressuposto processual; x). Também não se pode salvar a previsão do artigo 69º, nº 2, da LPTA com a invocação de que a mesma não é contraditória com o objectivo de colmatar as insuficiências e limitações do contencioso de mera anulação e de abrir as vias para a introdução de verdadeiros writs, porquanto não impede o desencadeamento imediato deste meio processual quando se verifiquem tais insuficiências e limites do recurso contencioso; z). Com efeito, teoricamente a efectiva tutela jurisdicional das posições jurídico-administrativas dos particulares é sempre possível através da interposição de sucessivos recursos - nem que para se obter uma decisão final seja necessário passar uma vida a interpor recursos referentes ao mesmo poder; aa). Por todas as razões expostas, o artigo 69º, nº 2, da LPTA é inconstitucional supervenientemente por incompatível com o artigo 268º da CRP.
O Secretário de Estado do Orçamento também alegou, sustentando que, 'no que toca
à interpretação a dar ao n.º 2 do artigo 69º da LPTA, inexiste qualquer indício de inconstitucionalidade superveniente ou outra que possa bulir com a CRP, designadamente com o seu artigo 268º', pelo que se deve negar provimento ao recurso.
O Conselho Directivo do INETI também alegou, tendo formulado as seguintes conclusões:
1ª. O actual nº 5 do artº 268º da Constituição, com o consequente reforço do princípio 'pro actione' ou da accionabilidade, não teve o propósito de subverter a normalidade legal e tradicional da necessidade de interposição de recurso contencioso imediato contra actos lesivos expressos ou simplesmente presumidos
(fictos) feridos de ilegalidade;
2ª. Aquela norma constitucional visa, sim, assegurar um princípio de plenitude de garantia jurisdicional administrativa que se destina a evitar que o particular fique desprovido de um meio processual adequado perante lesões de direitos ou interesses legítimos;
3ª. Face às duas conclusões precedentes, a natureza constitucional do art. 69º, nº 2, da LPTA não está em causa, nem mesmo com a última revisão constitucional que alterou, mais uma vez, a redacção do art. 268º, nº 4, da CRP (Lei Constitucional nº 1/97, de 20/9);
4ª. A Jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, de longe predominante desde 1990, vem concluindo como na conclusão anterior se concluíu;
5ª. A tese sustentada pela recorrente de que, após a revisão constitucional de
1989, já não subsiste a regra da subsidariedade ou residualidade da 'acção para reconhecimento de direito ou interesse legítimo' está fragilizada pelo absurdo de pretender um sentido não consentido nem pela letra nem pela ratio e sistemática dos nºs 4 e 5 do artº. 268º da CRP: o de subverter a função-regra legalmente fixada e tradicionalmente consolidada do recurso contencioso de anulação, designadamente quando exista acto administrativo definitivo e executório, como existiu no caso em apreço;
6ª. O facto de as acções para tutela dos direitos ou interesses dos particulares poderem ser intentadas a todo o tempo, existindo outros meios idóneos para a sua defesa, especificamente o recurso, geraria a instabilidade e insegurança na ordem jurídica, impossibilitando a normalização da actividade administrativa;
7ª. A tutela jurisdicional dos direitos ou interesses que com a acção a recorrente visou alcançar, poderia ter sido por ela conseguida (se outras razões legais não obstassem ao reconhecimento da pretensão que deduziu) pela impugnação contenciosa e atempada dos actos administrativos de processamento dos seus vencimentos e da lista de progressão de escalões, publicada a 22.05.92, nos termos do nº 4 do artº 20º do DL 353-A/89, de 10 de Outubro;
8ª. Não o tendo sido, tais actos administrativos consolidaram-se na ordem jurídica, como casos decididos ou resolvidos, sendo insindicáveis para o futuro;
9ª. Por tudo quanto exposto, o artº 69º, nº 2, da LPTA é constitucional e, em consequência, perfeitamente compatível com o determinado no art 268º da CRP.
2. Corridos os vistos, cumpre decidir. II. Fundamentos:
3. O objecto do recurso:
Já se referiu que a recorrente pretende ver apreciada sub specie constitutionis a norma do n.º 2 do artigo 69º da Lei de Processo dos Tribunais Administrativos, interpretada por forma a que 'as acções para o reconhecimento dum direito ou interesse legalmente protegido só podem ser propostas quando os restantes meios contenciosos, incluindo os relativos à execução de sentença, não asseguram a efectiva tutela jurisdicional do direito ou interesse em causa, pelo que têm uma função complementar dos instrumentos processuais comuns postos à disposição do particular'.
E este foi o sentido com que a norma constante do n.º 2 do citado artigo 69º - que dispõe que as acções para obter o reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido 'só podem ser propostas quando os restantes meios contenciosos, incluindo os relativos à execução de sentença, não assegurem a efectiva tutela jurisdicional do direito ou interesse em causa' - foi aplicada pelo acórdão recorrido. Na verdade, depois de citar alguns arestos no sentido de que, após a revisão constitucional de 1989, o mencionado n.º 2 do artigo 69º se deve considerar revogado, 'não encontrando, hoje, o direito de acção para reconhecimento de direitos e interesses legítimos qualquer obstáculo processual, fundado em erro na forma de processo, ou excepção dilatória', o dito acórdão ponderou que o entendimento mais corrente do Supremo Tribunal Administrativo é, no entanto, o de que tais acções 'só podem ser propostas quando os restantes meios contenciosos, incluindo os relativos à execução de sentença, não asseguram a efectiva tutela jurisdicional do direito ou interesse em causa', por isso que elas desempenham 'uma função complementar, não residual, dos instrumentos processuais comuns, postos à disposição do particular'. E, como a ora recorrente
'não interpôs recursos tutelares necessários, nem contenciosos de anulação dos sucessivos [actos?] de reclassificação e de processamento de vencimentos que foram definindo a sua situação profissional, designadamente nos aspectos retributivos, permitiu que a sua situação se tenha consolidado na ordem jurídica como caso decidido ou resolvido, não podendo, agora, [..] usar a acção jurisdicional para obter o efeito pretendido, por tal lhe estar vedado pelo n.º
2 do artigo 69º da LPTA'.
4. A questão de constitucionalidade:
4.1. A revisão constitucional de 1989 - para além de continuar a garantir aos interessados 'recurso contencioso, com fundamento em ilegalidade, contra quaisquer actos administrativos, independentemente da sua forma, que lesem os seus direitos ou interesses legalmente protegidos' (cf. artigo 268º, n.º 4) - aditou um n.º 5 a este artigo 268º, assim redigido:
5. É igualmente sempre garantido aos administrados o acesso à justiça administrativa para tutela dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos.
Na expressão de J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, 1993, página 942), o texto constitucional reconhece aos administrados 'uma protecção jurisdicional administrativa sem lacunas'. No que concerne à questão de saber quando é que o administrado pode lançar mão da acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido, têm sido defendidas, essencialmente, três posições. Para uma delas, designada por teoria do alcance mínimo, a acção constitui um meio puramente residual, que o particular só pode utilizar quando, no ordenamento jurídico processual administrativo, não exista, em abstracto, outro meio de que ele possa lançar mão para uma tutela eficaz da sua posição jurídica.
Para outra, colocada no polo oposto - e, por isso mesmo, conhecida como teoria do alcance máximo - a acção é um instrumento de que o particular pode lançar mão, sempre que o recurso contencioso de anulação ou os outros meios processuais não forneçam, em concreto, uma tutela plena, é dizer, uma protecção máxima, como sucede, por exemplo, em matéria de direitos, liberdades e garantias, em que a condenação da Administração é seguramente mais eficaz do que a declaração de nulidade do acto administrativo. Para este entendimento, a acção em causa assume um carácter funcional. Para uma terceira posição, intermédia - conhecida como teoria do alcance médio - a acção deve ser entendida como um meio complementar, mas não residual, dos outros meios processuais, em especial do contencioso de anulação: ela seria, desde logo - nos dizeres de JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE (A Justiça Administrativa, lições, Coimbra, 1998, página 108) - 'o meio próprio e adequado para os casos em que não existisse (e não tivesse que existir) um acto administrativo (por exemplo, situações de incumprimento de deveres relativos a direitos subjectivos dos particulares, de prática ou omissão de actos materiais lesivos de direitos, ou de dúvida, de incerteza ou de receio fundado de mau entendimento pela Administração relativamente à existência ou ao alcance de um direito)'; e seria também o meio a utilizar 'nos casos em que, embora existindo ou havendo lugar à prática de um acto, o recurso de anulação se revelasse, no caso, manifestamente inapto para assegurar uma tutela efectiva dos direitos do particular (por exemplo, no caso de ser decisiva a prova testemunhal, que não é legalmente admitida nos processos de recurso contra actos da Administração estadual) ou implicasse comportamentos que não fossem exigíveis a um particular normalmente diligente'.
Como a teoria do alcance mínimo nem sempre é capaz de assegurar uma tutela efectiva dos direitos e interesses legalmente protegidos dos administrados; e como a teoria do alcance máximo pode implicar uma subsersão do sistema de justiça administrativa; o acórdão recorrido, seguindo na esteira de alguma doutrina que cita [além de VIEIRA DE ANDRADE (ob. cit., página 88), SOUSA FÁBRICA (Boletim do Ministério da Justiça, n.º 365, página 60 e seguintes) e JOSÉ EDUARDO O. F. DIAS (Tutela Ambiental e Contencioso Administrativo, página
295)], optou, justamente, como decorre do que se disse atrás, pela teoria do alcance médio e concluiu que a norma do artigo 69º, n.º 2, da Lei de Processo dos Tribunais Administrativos não é inconstitucional, antes, é perfeitamente compatível com o artigo 268º, n.º 5, da Constituição (hoje, artigo 268º, n.º 4).
Este Tribunal também já teve oportunidade de abordar esta questão. Fê-lo no acórdão n.º 452/95 (publicado no Diário da República, II série, de 21 de Novembro de 1995).
Nesse aresto, o Tribunal, depois de ponderar que 'o recurso contencioso de anulação possibilita [...] aos tribunais administrativos o controlo da observância, em todos os 'momentos estruturais' do acto administrativo (sujeito, objecto, procedimento, conteúdo, forma e fim) e dos princípios gerais de direito administrativo'; e de sublinhar que, na execução das sentenças que anulam ou declaram a nulidade de actos administrativos, os poderes dos tribunais administrativos são de plena jurisdição, pois que o tribunal 'não se limita a reafirmar o que já tinha decidido no processo de recurso, antes redefine a situação jurídica em função da situação, em grande medida nova, que resulta da intervenção administrativa intermédia'; disse: No ordenamento jurídico positivo, existe um instrumento de protecção jurisdicional dos cidadãos, que, apesar de ter surgido ainda no domínio da vigência do artigo 268º, nº3, da Constituição, na versão de 1982, constitui uma concretização da garantia consagrada no nº 5 do artigo 268º da Lei Fundamental:
é a acção para reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido, prevista nos artigos 69º e 70º da LPTA. Mas a força irradiante e conformadora deste preceito constitucional exige que o nº 2 do artigo 69º da LPTA - norma que estabelece o âmbito de aplicação daquelas acções, estatuindo que elas 'só podem ser propostas quando os restantes meios contenciosos, incluindo os relativos à execução de sentenças, não assegurem a efectiva tutela jurisdicional do direito ou interesse em causa' - seja interpretado, em termos de consentir ao particular, mesmo na hipótese de existir um acto administrativo, a propositura de uma acção de reconhecimento de um direito ou de um interesse legítimo, desde que demonstre que o recurso contencioso não é susceptível de assegurar, num determinado caso concreto, uma adequada e efectiva tutela jurisdicional dos direitos ou interesses legítimos afectados. De facto, a doutrina administrativa mais representativa vem defendendo que a acção para reconhecimento de um direito ou interesse legítimo pode ser utilizada não apenas nos casos em que não exista ou não tenha de existir um acto administrativo (por exemplo, situações de incumprimento de deveres relativos a certos direitos subjectivos dos particulares - direitos ao pagamento de uma quantia em dinheiro, à entrega de uma quantia certa ou a uma prestação de facto determinada -, de prática ou omissão de actos materiais lesivos de direitos, ou de dúvidas, de incerteza ou de receio fundado de mau entendimento pela Administração relativamente à existência ou ao alcance de um direito ou interesse legítimo), mas também nos casos em que, embora existindo ou havendo lugar à prática de um acto administrativo, o recurso contencioso se revele manifestamente inadequado para assegurar uma tutela efectiva dos direitos do particular [cfr., sobre este ponto, embora nem sempre com posições idênticas às expostas, Rui Machete, A Garantia Contenciosa para Obter o Reconhecimento de um Direito ou Interesse Legalmente Protegido, in Estudos de Direito Público e Ciência Política, Lisboa, Fundação Oliveira Martins, 1991, p. 423 ss.; Rui Medeiros, Estrutura e Âmbito da Acção para o Reconhecimento de um Direito ou Interesse Legalmente Protegido, in Revista de Direito e de Estudos Sociais, Ano XXXI (1989), Nºs 1/2, p.60 ss.; L.M. Sousa Fábrica, A Acção para o Reconhecimento de Direitos e Interesses Legalmente Protegidos, in Boletim do Ministério da Justiça, 365 (1987), p. 21 ss.; e D. Freitas do Amaral, Direito Administrativo, Vol.IV, cit., p. 288-297. Cfr. também A. Barbosa de Melo, Direito Administrativo II, cit., p. 94]. A interpretação que vem de ser exposta do artigo 69º, nº 2, da LPTA corresponde
à denominada teoria do alcance médio da acção para o reconhecimento de um direito ou de um interesse legítimo, nos termos da qual este meio processual assume um carácter complementar dos outros meios processuais - e não um carácter puramente residual, como pretende a teoria do alcance mínimo, utilizável apenas quando não existisse, em abstracto, no ordenamento processual outro meio à disposição do particular para obter uma tutela eficaz da sua posição jurídica, nem um carácter funcional, como defende a teoria do alcance máximo, que admite a utilização do referido instrumento processual sempre que o contencioso de anulação ou os outros meios não fornecessem em concreto ao particular uma protecção máxima. J. C. Vieira de Andrade, depois de referir que uma interpretação do artigo 69º, nº 2, da LPTA em conformidade com o princípio da tutela jurisdicional efectiva, consagrado no artigo 268º, nº 5, da Constituição, apontará, pelo menos, para a teoria do alcance médio e de considerar excessivas as soluções dos Acórdãos da 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo de 4 de Maio de 1993, 13 de Julho de 1993 e 19 de Abril de 1994, proferidos nos Recursos nºs. 31976, 31754 e 33191, nos quais aquele Tribunal entendeu que, após a revisão constitucional de 1989, o nº 2 do artigo 69º da LPTA deve ter-se por revogado, com a consequência de o direito de acção jurisdicional perante os tribunais administrativos para reconhecimento de direito e interesse legítimo perante (contra) a Administração não encontrar hoje obstáculos de natureza processual, fundados em erro na forma de processo, ilegitimidade ou excepção dilatória inominada que se pretendiam consagradas naquele preceito, justifica do seguinte modo a interpretação acima avançada do âmbito de aplicação da 'acção de reconhecimento de um direito ou interesse legítimo':
'A posição a adoptar deve, quanto a nós, ser uma de equilíbrio, aproveitando todas as potencialidades do recurso contencioso e respeitando a estrutura do sistema de administração executiva, quando exista ou haja lugar à prática de um verdadeiro acto administrativo (tese estrutural), mas não hesitando em preconizar o uso de outros meios, quando se prove que eles sejam necessários a uma protecção judicial efectiva do particular (tese funcional) - em suma, destruído o dogma da impossibilidade de os tribunais condenarem a Administração, devem alargar-se ao máximo os poderes de fiscalização jurisdicional, mas, em contrapartida, tem de respeitar-se o núcleo essencial da autonomia do poder administrativo, isto é, a estabilidade do caso decidido e a discricionaridade quanto ao mérito das decisões' (cfr. ob. cit., p. 99,100). Significa isto que, nesse aresto, conquanto se não tivesse que decidir a questão de constitucionalidade que constitui objecto do presente recurso - a saber: a questão da constitucionalidade da norma que se contém no n.º 2 do artigo 69º da Lei de Processo dos Tribunais Administrativos, interpretada em termos de que, estando em causa um acto administrativo, o particular pode lançar mão da acção para o reconhecimento de um direito ou de um interesse legítimo, mas apenas desde que demonstre que, no caso concreto, o recurso contencioso não é susceptível de assegurar uma adequada e efectiva tutela jurisdicional dos direitos ou interesses legítimos afectados - o Tribunal acabou por se pronunciar no sentido de que uma tal interpretação era compatível com o artigo 268º, n.º 5, da Constituição.
É essa interpretação que aqui se reitera. E, justamente, pelas razões já aduzidas [cf., neste sentido, o acórdão nº 435/98 (Diário da República, II série, de 10 de Dezembro de 1998)].
4.2. Claro é que, na revisão constitucional de 1997, esta matéria foi reformulada, achando-se, hoje, o n.º 4 do artigo 268º assim redigido:
4. É garantido aos administrados tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, incluindo, nomeadamente, o reconhecimento desses direitos ou interesses, a impugnação de quaisquer actos administrativos que os lesem, independentemente da sua forma, a determinação da prática de actos administrativos legalmente devidos e a adopção de medidas cautelares adequadas. Não se vê, porém, que, no que diz respeito às acções para o reconhecimento de um direito ou um interesse legalmente protegidos, se deva hoje concluir diferentemente. O que o preceito constitucional fez foi deixar claro que o princípio da plenitude da garantia jurisdicional administrativa - a mais do que obrigar o legislador a manter um meio processual, visando a impugnação de actos administrativos, que pode bem ser o clássico recurso contencioso, e a manter, bem assim, um meio processual de acesso à justiça administrativa para tutela dos direitos ou interesses legalmente protegidos (nomeadamente, as acções para o reconhecimento desses direitos ou interesses) - obriga-o a prever meios processuais que permitam ao administrado exigir da Administração a prática de actos administrativos legalmente devidos (acções cominatórias) e, quando for o caso, poder lançar mão de medidas cautelares adequadas.
É que tudo são manifestações (concretizações) do direito de acesso aos tribunais para defesa, por banda dos administrados, dos 'seus direitos e interesses legalmente protegidos', como dispõe o n.º 1 do artigo 20º da Constituição. As formas processuais de que os particulares se hão-de socorrer relevam, obviamente, das opções do legislador, pois que o texto constitucional não as impõe. A este propósito, é significativa a intervenção do deputado BARBOSA DE MELO, que o Diário da Assembleia da República (VII legislatura, 2ª sessão legislativa, reunião plenária de 30 de Julho de 1997) regista na página 3955. Disse ele: O sistema de tutela jurisdicional que hoje pretendemos constitucionalizar nestes dois números assenta na ideia de que a providência jurisdicional garantida aos cidadãos é que é aqui consagrada e não, como, de algum modo, vem sendo tradicional desde 1971, a forma processual através da qual essa providência há-de ser concretizada. Assim, o texto constitucional garante aos cidadãos a possibilidade de obterem dos juízes da Administração cinco providências que se traduzem no seguinte: a primeira, no reconhecimento dos seus direitos; a segunda, na eliminação de actos administrativos em sentido técnico e próprio, portanto individuais e concretos; a terceira, a determinação ou a imposição da prática de actos administrativos legalmente devidos - é um passo fundamental; a quarta, a tomada de medidas cautelares; e a quinta, a eliminação de normas regulamentares. Agora, as formas processuais ou tipos de acção através dos quais estas providências hão-de ser pedidas e, sendo caso disso, decretadas, não fazem parte da previsão constitucional, tudo isso é devolvido para o legislador ordinário. Assim se compreende que o texto constitucional abandone a referência ao recurso contencioso, que a Constituição de 1933, após a revisão de 1971, já continha e se mantém no texto vigente. Aliás, nada impede e tudo aconselha que a lei ordinária conserve o recurso contencioso, que, na configuração histórica que entre nós assumiu, é o meio processual através do qual podem ser implementadas várias das providências jurisdicionais que passam a estar previstas nos nºs 4 e 5 agora em discussão.
E concluiu, afirmando: Termino com uma reflexão geral. Essas alterações, em si mesmo, pouco mudam no direito ordinário vigente, o que lembram é ao legislador o seu dever de melhorar continuamente as garantias jurisdicionais dos administrados e o seu dever - é um outro dever também - de racionalizar, tornando cada vez mais compreensível para todos o sistema destas garantias.
4.3. Conclusão: conclui-se, assim, que o n.º 2 do artigo 69º da Lei de Processo dos Tribunais Administrativos, interpretado como foi pelo acórdão recorrido, não
é inconstitucional. De facto, foi oportunamente publicada a lista de progressão de escalão, que a recorrente podia ter impugnado, não o tendo feito. III. Decisão: Pelos fundamentos expostos, decide-se:
(a). negar provimento ao recurso e confirmar o acórdão recorrido quanto ao julgamento da questão de constitucionalidade;
(b). condenar a recorrente em custas, com imposto de justiça que se fixa em 15 unidades de conta.
Lisboa, 10 de Fevereiro de 1999 Messias Bento José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida