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Proc. nº 467/99
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1. No Tribunal Judicial da Comarca de Oeiras, M..., apresentou, em 10 de Março de 1997, queixa-crime contra E... e C..., imputando-lhes factos que indiciariam a prática, em co-autoria, de um crime de burla qualificada, previsto e punível pelo artigo 218º do Código Penal, e pelo primeiro arguido ainda de um crime de emissão de cheque sem provisão, previsto e punível pelo artigo 11º, nº
1, alínea a), do Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro. A queixosa deduziu pedido de indemnização contra os arguidos, requerendo a sua condenação no pagamento de uma indemnização de 4.215.970$00, actualizada à data da sentença.
Considerando que as alterações introduzidas no Decreto-Lei nº
454/91, de 28 de Dezembro, pelo Decreto-Lei nº 316/97, de 19 de Novembro, operaram a 'despenalização dos cheques sem provisão pós-datados', entendidos como os que foram emitidos 'com data posterior à da sua entrega ao tomador', e tendo também em conta que a queixosa não praticou qualquer acto determinado pela emissão dos cheques e que o não pagamento dos cheques não esteve na origem de prejuízo patrimonial para a queixosa, o Ministério Público, em 15 de Abril de
1998, declarou encerrado o inquérito, procedendo ao respectivo arquivamento, nos termos do artigo 277º, nº 1, do Código de Processo Penal (fls. 109 e seguintes).
2. Em 24 de Junho de 1998, M... requereu a sua constituição como assistente, bem como a abertura de instrução, nos termos do artigo 287º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Penal (fls. 121 e seguintes).
Os autos foram remetidos ao Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa.
Em 20 de Abril de 1999, foi proferido despacho instrutório (fls. 171 e seguintes), que ordenou o arquivamento dos autos, não pronunciando os arguidos. A decisão fundamentou-se nas próprias declarações da ofendida, das quais se entendeu resultar que todos os cheques emitidos foram entregues na mesma altura, para data posterior; considerou-se que tal circunstância exclui o ilícito criminal, não o civil, que todavia terá de ser apreciado em tribunais cíveis.
Como consequência da decisão, o Juiz do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa ponderou que, nos termos do artigo 83º, nº 2, do Código das Custas Judiciais, deveria ser proferida condenação do assistente no pagamento de taxa de justiça. Todavia, considerando discriminatória a norma aplicável – já que, nos casos em que a abertura de instrução é requerida pelo arguido, e a decisão proferida é no sentido de pronunciar o arguido, este não é condenado no pagamento dessa taxa –, recusou a sua aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade.
3. É desta decisão que vem interposto recurso para o Tribunal Constitucional, pela representante do Ministério Público junto do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, ao abrigo do artigo 70º, nº 1, alínea a), da Lei nº 28/82, para apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 83º, nº 2, do Código das Custas Judiciais.
O recurso foi admitido por despacho de fls. 177.
4. No Tribunal Constitucional foi proferido despacho para a produção de alegações.
Só o representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional apresentou alegações, tendo formulado as seguintes conclusões:
'1º. Por força do princípio constitucional das garantias de defesa, não vigora no domínio do processo penal um princípio de estrita e formal parificação de todos os sujeitos processuais, que permita formular um juízo de inconstitucionalidade, com base na violação do princípio da igualdade, relativamente a todos os regimes adjectivos que comportem um tratamento diferenciado (e aparentemente mais favorável) para o arguido.
2º. Não viola os princípios da igualdade e da proporcionalidade a interpretação normativa do nº 2 do artigo 83º do Código das Custas Judiciais que se traduz em
– subsumindo a tal norma a dedução pelo assistente do requerimento de abertura da instrução – lhe cominar o pagamento da taxa de justiça devida por tal fase processual, sempre que o arguido não venha a ser pronunciado – e podendo o juiz adequar, em termos de proporcionalidade, o montante das custas por aquele devidas.'
Cumpre decidir.
II
5. O presente recurso tem por objecto a questão da constitucionalidade da norma constante do 83º, nº 2, do Código das Custas Judiciais, que o Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa julgou inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, e que, nos termos do artigo 204º da Constituição da República Portuguesa, se recusou a aplicar.
É o seguinte o teor da norma submetida à apreciação do Tribunal Constitucional:
'Artigo 83º Taxa de justiça devida pela instrução
[1. Pela abertura da instrução é devida taxa de justiça correspondente a 1 UC.]
2. Se o arguido não for pronunciado por todos ou alguns crimes constantes da acusação que haja deduzido ou com que se haja conformado, é devida taxa de justiça pelo assistente, fixada pelo juiz no final da instrução, entre 1 UC e 10 UC.'
Na perspectiva da decisão sob recurso, a norma do nº 2 do artigo 83º do Código das Custas Judiciais ofende o princípio da igualdade, ao impor a condenação do assistente no pagamento de taxa de justiça nos casos em que, tendo requerido a abertura de instrução, o arguido não seja pronunciado por todos ou alguns dos crimes por que haja sido acusado (pelo mesmo assistente ou pelo Ministério Público se o assistente se conformou com essa acusação), ao passo que, nos casos em que a abertura de instrução tenha sido requerida pelo arguido, e o arguido for pronunciado, este não é condenado no pagamento dessa taxa.
6. Segundo a jurisprudência uniforme e constante do Tribunal Constitucional, o princípio da igualdade reconduz-se a uma proibição de arbítrio, sendo inadmissíveis quer a diferenciação de tratamento sem qualquer justificação razoável, de acordo com critérios objectivos constitucionalmente relevantes, quer a identidade de tratamento para situações manifestamente diferentes.
A caracterização de uma medida legislativa como inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, depende, em última análise, da ausência de fundamento material suficiente, isto é, da falta de razoabilidade e da falta de coerência com o sistema jurídico.
Em contrapartida, as medidas de diferenciação hão-de ser materialmente fundadas, 'sob o ponto de vista da segurança jurídica, da praticabilidade, da justiça e da solidariedade' (acórdão do Tribunal Constitucional nº 750/95, Diário da República, II Série, nº 99, de 27 de Abril de 1996, p. 5677 ss).
7. À luz destas considerações, a solução consagrada pela norma questionada no presente recurso não se apresenta de todo injustificada nem desrazoável.
7.1. Como o Tribunal Constitucional também já decidiu, a taxa de justiça é uma prestação pecuniária que os particulares pagam ao Estado como contrapartida pelo serviço que este lhes presta – o serviço de administração da justiça
(acórdão nº 412/89, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 13º vol., tomo II, p.
1187 ss; acórdão nº 67/90, Acórdãos ..., 15º vol., p. 241 ss). Na verdade, a Constituição da República não impõe a gratuitidade da administração da justiça (acórdão nº 307/90, Diário da República, II Série, nº
52, de 4 de Março de 1991, p. 2486 ss), pelo que não é desconforme com a Lei Fundamental a exigência de uma contrapartida pela prestação dos serviços de administração da justiça. A Constituição apenas exige que essa contrapartida não impeça ou restrinja de modo intolerável o direito de acesso aos tribunais garantido pelo artigo 20º.
Justifica-se portanto que o legislador ordinário, no exercício da sua liberdade de conformação normativa, imponha ao assistente em processo penal o pagamento de uma actividade jurisdicional (a instrução) nos casos em que a entidade competente chegue à conclusão de que é infundada a pretensão do mesmo assistente em ver o arguido pronunciado pela prática de certo crime.
7.2. Por outro lado, a circunstância de não ser exigido o pagamento da taxa de justiça ao arguido que, tendo requerido a abertura de instrução, venha a ser pronunciado pelo crime não representa uma desigualdade arbitrária ou injustificada, quando comparada com a situação do assistente, aqui em apreciação.
Com efeito, o pedido de abertura de instrução formulado pelo próprio arguido configura um dos modos de exercício dos seus direitos de defesa. Seria manifestamente atentatório dos direitos de defesa em processo penal a exigência de pagamento de taxa de justiça nos casos em que a instrução conduzisse a uma decisão de pronúncia do arguido pelos factos que constavam da acusação. O receio de uma condenação na taxa de justiça correspondente à instrução poderia constituir uma inibição quanto ao exercício de tal direito.
Como sublinha o Ministério Público nas suas alegações, em processo penal, por força do princípio constitucional das garantias de defesa, não vigora um estrito princípio de 'igualdade de armas' entre todos os sujeitos processuais, sendo frequentes as situações em que a especificidade da situação do arguido implica que lhe seja atribuído um 'estatuto processual diferenciado'.
A diversidade de soluções consagradas na lei – impondo, num caso, o pagamento da taxa de justiça pelo assistente que requereu a instrução, se o arguido não for pronunciado, e não impondo, no outro caso, qualquer pagamento pelo arguido que, tendo requerido a instrução, venha a ser pronunciado – não se apresenta portanto como desprovida de fundamento razoável.
7.3. Acresce que a norma em análise, pelo seu teor, permite ao juiz adequar o montante da condenação no pagamento da taxa de justiça em função da actividade desencadeada pelo assistente no processo.
Efectivamente, estabelecendo o artigo 83º, nº 2, do Código das Custas Judiciais que a taxa de justiça devida pelo assistente será fixada pelo juiz, no final da instrução, entre 1 UC e 10 UC, não pode ser imputada à norma questionada no presente recurso a violação do princípio da proporcionalidade.
III
8. Tendo em conta o exposto, o Tribunal Constitucional decide:
a) não julgar inconstitucional a norma constante do artigo
83º, nº 2, do Código das Custas Judiciais;
b) consequentemente conceder provimento ao recurso, devendo a decisão recorrida ser reformada em conformidade com o julgamento quanto à questão de constitucionalidade.
Lisboa, 5 de Abril de 2000 Maria Helena Brito Vítor Nunes de Almeida Artur Maurício Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa