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Proc. nº 139/00 TC – 1ª Secção Relator: Consº. Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
1 – No recurso interposto para este Tribunal por S... Lda foi proferida a seguinte decisão sumária:
'1 - Em processo de execução movido por S... Lda, identificada nos autos, contra D... Lda, foi proferido despacho que determinou a remessa dos autos à conta nos termos do artigo 51 do CCJ.
Desse despacho reclamou a exequente, por requerimento entrado em 29/10/97, sustentando que a remessa à conta supõe a negligência da parte no impulso processual, o que no caso se não verificaria, considerando as sucessivas diligências por ela requeridas – a paragem do processo dever-se-ia ao próprio tribunal, mas não a facto imputável à exequente.
Sobre a reclamação foi proferido, em 4/2/98, despacho de indeferimento, com fundamento em que a expressão 'facto imputável às partes' não é confundível com negligência das partes, podendo tratar-se tão só de inércia ou omissão de impulso processual por quem tem o ónus de o promover; era o que no caso ocorria, não se devendo a paragem a 'facto imputável a outrém v.g. ao Tribunal'.
A exequente interpôs recurso deste despacho em 18/2/98.
Na mesma data, em requerimento autónomo, pediu que se accionasse 'o direito de reversão contra os sócios gerentes da firma executada, nos termos em que o Estado procede contra as firmas que lhe são devedoras'.
Solicitada a prestar esclarecimentos sobre o fundamento deste pedido, a exequente veio invocar os artigos 13º nº 1 e 239º nº 2 alínea a) do Código de Processo Tributário, alegando que 'se o Estado credor adopta este procedimento, não é compreensível que os exequentes particulares não possam servir-se do mesmo meio processual para conseguirem o pagamento dos seus créditos' e concluindo que
'os meios processuais creditícios ao dispor do Estado e do cidadão não podem estar desiquilibrados em termos desproporcionados e arbitrários, mas devem equivaler-se no regime de Estado de Direito Democrático / artº 13º da Constituição'.
A pretensão da exequente foi indeferida por despacho de 27/3/98.
Entretanto, no supra citado recurso, a recorrente apresentou alegações concluindo nos seguintes termos:
'1 – O artº 31º/2/b do CCJ impõe a negligência da parte na prossecução dos termos processuais para que a acção seja remetida à conta.
2 – Ora, no caso dos autos, a parte exequente demonstrou no processo que envidou todos os esforços possíveis para que o Tribunal efective a execução, não devendo, por isso, ser incomodada com a conta resultante da malfadada norma inconstitucional, violadora do artº 18º da Constituição.
3 – O Tribunal dispõe de todas as informações relativamente à executada/sócios e aos bens possuídos, pelo que agora compete única e simplesmente ao Tribunal executar e se não executa é porque não quer ou não pode, mas não tem qualquer motivo para se desculpar com o exequente
4 – O Tribunal poderá servir-se da figura do executado/sócio gerente por reversão na qualidade de subsidiário responsável da dívida exequenda, nos termos do nº 1 do artº 13º e alínea a) nº 2 do artº 239º do Código de Processo Tributário, aplicado por evidente lacuna da lei processual civil.
5 – Não havendo solução no Cód. Proc. Civil para a execução por reversão, então ter-se-á que ter em conta o disposto no artº 10º/3 do Cód. Civil, sobre a integração das lacunas da lei, evitando-se, assim, dissonâncias no sistema jurídico executivo estadual e privado.
6 – A recusa de aplicação da referida norma de execução por reversão viola a norma do artº 13º da Constituição, pela desigualdade e superioridade em que o Estado credor é colocado face ao cidadão exequente.
Por acórdão de fls. 32 e segs., a Relação de Lisboa negou provimento ao recurso.
Fê-lo, desde logo, no estrito plano do direito infra-constitucional, reiterando a interpretação do artigo 51º do CCJ feita no despacho recorrido.
A propósito, ali se escreveu:
'Sem o impulso processual da parte não pode haver processo civil de jurisdição não voluntária. Trata-se de um princípio basilar. Se a sua falta não corresponder a um justo impedimento, apesar de não haver negligência da parte, é esta que deve arcar com as respectivas. Que, entre outras, são a necessidade do processo ter um desfecho.'
Acrescentou-se depois:
'Nem se diga que tal entendimento restringe os direitos processuais dos cidadãos, sendo, por isso, inconstitucional segundo o artº 18º da Constituição. Esses direitos têm de ser processualmente exercidos, ou seja, com regras e não de forma absoluta. O artº 51º em questão limita-se a impor um ónus económico ao seu exercício – a contagem dos autos – em casos – a ausência de iniciativa das partes – em que é manifesta a necessidade de sublinhar que a actividade processual deve ser relançada. Mas há aqui que relembrar outra regra do processo civil, a do artº 449º do CPC, segundo a qual as custas, não estando fixada a responsabilidade pelo litígio, são por quem age, ou devia agir, portanto o autor'.
E, por fim, sobre a alegada aplicação analógica do CPT:
'Salvo o devido respeito, a questão está posta ao contrário. Se existe uma norma de processo tributário que confere ao Estado um privilégio que se entende inconstitucional, então a inconstitucionalidade está nessa norma e não nas regras de processo civil que não aplicam a mesma norma. Não é que a reversão deva existir para o vulgar cidadão, mas sim que não deve ser permitida ao Estado. Não devendo, pois, ter cabimento nestes autos'.
É deste acórdão que vem interposto o presente recurso
De acordo com o respectivo requerimento, o recurso é interposto ao abrigo das alíneas a), b), c), f) e g) do nº 1 do artigo 70º da LTC.
As normas cuja constitucionalidade a recorrente pretende ver apreciada pelo Tribunal são:
A do artigo 51º nº 2 alínea b) do CCJ A 'aplicação ilegal do artº 449º do CPC para efeitos de reforçar o entendimento Inconstitucional do artº 51º do CCJ'. A 'recusa de aplicação analógica do nº 1 do artº 13º e alínea a) do nº 2 do artº
239º do Cód. Proc. Tributário/CPT – norma de execução por reversão'.
Cumpre, agora, verificar se se mostram preenchidos os requisitos de admissibilidade do recurso.
2 – É, desde logo, patente a inadmissibilidade do recurso ao abrigo das alíneas a), c), f) e g) do nº 1 do artigo 70º da LTC.
Com efeito, não houve no acórdão recorrido qualquer recusa de aplicação de norma com fundamento em inconstitucionalidade (citada alínea a)), ou de norma constante de acto legislativo com fundamento na sua ilegalidade por violação de lei com valor reforçado (citada alínea c) ou aplicação de norma cuja ilegalidade haja sido suscitada com qualquer dos fundamentos referidos nas alíneas c), d) e e) do nº 1 do artigo 70º da LTC (citada alínea f)) ou de norma já anteriormente julgada inconstitucional ou ilegal pelo Tribunal Constitucional (citada alínea g)).
Resta, pois, o recurso interposto ao abrigo do artigo 70º nº 1 alínea b) da LTC.
Ora, no que concerne ao artigo 52º nº 1 alínea b) do CCJ, o que a recorrente disse em alegações de recurso para a Relação de Lisboa, sobre matéria de constitucionalidade foi, em rigor, apenas que:
- A decisão recorrida era ilegal 'e aplicadora de uma filosofia inconstitucional
(...) pois o Estado não pode lançar sobre o cidadão o exercício da função executiva'
o '(...) a parte exequente demonstrou no processo que envidou todos os esforços para que o Tribunal efective a execução, não devendo, por isso ser incomodada com a conta resultante da malfadada norma inconstitucional violadora do artº 18º da Constituição' (conclusão 3ª).
O que a recorrente, a este respeito, fez, foi desenvolver uma tese inédita no sentido de que, declarado judicialmente o direito, compete aos tribunais tomar a iniciativa das diligências para o 'assegurar' ou 'concretizar', sem o que se mostraria violado o artigo 18º da Constituição.
Não se vê aqui suscitada de forma idónea e adequada uma questão de constitucionalidade.
Na verdade, mesmo que reportada à norma do artigo 51º nº 2 alínea b) do CCJ no sentido de que a inércia da parte no impulso processual, justificativa da remessa dos autos à conta, não pressupõe a negligência dessa parte, bastando que ela se não deva a outrém, designadamente ao próprio tribunal, certo é que a mera referência ao artigo 18º da Constituição é manifestamente insuficiente para se dizer suscitada de forma processualmente adequada a referida questão de constitucionalidade.
Note-se que, na suscitação de uma tal questão, o citado artigo 18º, que rege sobre a força jurídica dos direitos liberdades e garantias, não vale por si, exigindo-se que se invoque o direito, liberdade ou garantia que o recorrente entende restringido.
Nada a este respeito a recorrente disse nas aludidas alegações limitando-se, como se referiu, e depois de considerações gerais sobre o papel do Estado (Tribunais) na acção executiva, a invocar a violação dos direitos do cidadão 'que não pode ser, nem deve ser, o polícia e o oficial de diligências ao serviço da função executiva, pois não está investido dessas funções e não ganha para isso'.
Não se tem, pois, como adequadamente suscitada a questão de constitucionalidade, reportada ao artigo 51º nº 2 alínea b) do CCJ.
No que respeita à norma do artigo 449º do CPC, não suscitou a recorrente qualquer questão de constitucionalidade, perante o tribunal 'a quo'; as alegações de recurso são silentes quanto a uma hipotética inconstitucionalidade de tal norma, não podendo, por outro lado, considerar-se imprevista a sua convocação no acórdão impugnado.
Não se mostra, pois, preenchido o requisito da suscitação da questão de constitucionalidade durante o processo.
Por último e quanto à alegada 'recusa de aplicação analógica do nº 1 do artº 13º e alínea a) do nº 2 do artº 239º do CPT', importa salientar que o despacho de que a recorrente interpôs recurso para a relação não ponderou – nem tinha que o fazer - a aplicação das normas contidas naqueles preceitos legais.
Com efeito, esse despacho indeferira a reclamação que a exequente deduzira contra a conta de custas, sem que na impugnação tivesse invocado aquelas normas, nem, até então, requerido a penhora de bens de sócio da empresa executada. Este requerimento só vem a ser apresentado, autonomamente, na mesma data (18/2/98) em que é interposto o recurso do despacho de indeferimento da dita reclamação.
Ora, neste contexto, a apreciação – aliás sumária – feita no acórdão recorrido da tese que a recorrente aproveitara para expor nas alegações do recurso – mas que (repete-se) já nada tinha ver com o despacho impugnado – não é mais do que uma resposta a essa tese, sem constituir ratio decidendi do aresto.
Com efeito, tendo apenas que decidir se a conduta processual da exequente constituía a inércia da parte que, nos termos do artigo 51º nº 2 alínea b) do CCJ, determina a remessa dos autos à conta, era completamente alheia a esta decisão a eventual aplicação das normas citadas do CPT (por manifesto lapso de escrita escreveu-se 'CCJ'), pois não tinha sido sequer requerida a penhora nos bens do sócio da empresa executada.
Isto desde logo se comprova pelo facto de o eventual acolhimento da tese da recorrente – aplicação das referidas normas relativas à execução dos créditos do Estado constantes do CPT – nunca contender com a falta de impulso processual, durante três meses, por parte da exequente; tal só aconteceria se, nesse lapso de tempo, a exequente tivesse requerido a penhora dos bens do sócio da executada, o que não ocorreu.
Aliás, a matéria pertinente a essa tese foi expressamente tratada pelo despacho, de 27/3/98, documentado a fls. 82, de que – tanto quanto os autos o revelam – a exequente igualmente recorreu para a relação (cfr. fls. 28).
Em suma, pois, as normas dos artigos 13º nº 1 239º nº 2 alínea a) do CPT não integram a razão do decidido no acórdão impugnado.
3 – Pelo exposto, porque se não verificam os pressupostos de admissibilidade do recurso, decide-se não conhecer do seu objecto.
Custas pela recorrente fixando-se a taxa de justiça em 5 Ucs.'
É desta decisão sumária que a recorrente vem reclamar, nos termos do artigo 78-A nº 3 da LTC.
A sua discordância, na parte útil da reclamação deduzida, centra-se nos seguintes pontos:
- A exigência de o recorrente suscitar a questão de constitucionalidade 'de modo processualmente adequado', prevista no artigo 72º nº 2 da LTC, ofende o disposto no artigo 20º da CRP, pois os tribunais não estão dispensados da obrigação que o artigo 204º da CRP lhes impõe.
- A recorrente suscitou de modo processualmente adequado a inconstitucionalidade do artigo 51º nº 2 alínea b) do CCJ.
- A aplicação do artigo 449º do CPC foi inesperada, pelo que a recorrente estaria exonerada do ónus de suscitação prévia da questão da inconstitucionalidade da norma contida naquele preceito legal.
- A recusa de aplicação analógica do nº 1 do artigo 13º e alínea a) do nº 2 do artigo 239º do CPT sucedeu depois de o exequente ter requerido a penhora dos bens do sócio e de ter sido proferido despacho de indeferimento sobre o requerimento.
Sobre a reclamação pronunciou-se o Ministério Público no sentido do seu indeferimento.
Cumpre decidir.
2 – Não aduz a reclamante quaisquer fundamentos suficientemente consistentes para abalar o decidido.
No que concerne à suposta inconstitucionalidade da norma do artigo
72º nº 2 da LTC, é claro que ela não viola o direito de acesso aos tribunais, que não postula a inexistência de ónus processuais.
E o ónus que aquela norma impõe aos recorrentes para que o recurso de constitucionalidade seja admissível é razoável e adequado, tendo em conta que o Tribunal Constitucional é um órgão de controle de constitucionalidade normativa e que, em fiscalização concreta, se pronuncia sobre a aplicação (ou recusa de aplicação) de normas pelos tribunais.
Compreende-se, assim, que os tribunais de que se recorre para o Tribunal Constitucional se apercebam que as partes suscitam uma questão de constitucionalidade de determinada norma, devendo sobre ela emitir pronúncia.
E não se vislumbra qualquer incompatibilidade entre uma tal imposição e o dever oficioso que impende sobre os tribunais de recusarem a aplicação de normas inconstitucionais.
Sobre o modo como a recorrente suscitou a inconstitucionalidade do artigo 51º nº 2 alínea b) do CCJ, disse-se o suficiente na decisão reclamada para demonstrar que ele não foi processualmente adequado, havendo aqui, apenas, que o reiterar.
No que concerne à norma do artigo 449º do CPC deve salientar-se que, no contexto da decisão recorrida, ela é evocada ('relembrar', diz-se no aresto), para referir que, devendo ser 'relançada' a actividade processual, esta é imposta, com custos, 'para quem talvez não tenha a responsabilidade', sendo, porém, certo que a norma faz, em termos gerais, recair as custas, não estando fixada a responsabilidade pelo litígio, sobre quem age ou devia agir; o apelo a esta norma surge, assim, em bom rigor, como um complemento argumentativo, e não como uma razão de decidir.
De todo modo, mesmo a não se entender assim, a verdade é que, tendo o acórdão impugnado que decidir a matéria da responsabilidade pelas custas, por falta de impulso processual da parte, não pode considerar-se como imprevista a aplicação de uma norma que expressa, em termos gerais, a responsabilidade do autor pelas custas.
Finalmente, quanto às normas dos artigos 13º nº 1 e 239º nº 2 alínea a) do CPT, e não obstante os documentos ora juntos, certo é que sobre o requerido em 20/5/96 recaiu despacho de 23/5/96, despacho este que não foi abrangido pelo recurso interposto pela exequente para a relação; só em 18/2/98, a exequente requer o prosseguimento dos autos 'com o accionamento do direito de reversão contra o sócios gerentes da executada', o que veio a ser indeferido por despacho de 27/3/98 (fls. 82) e que também não é o impugnado no recurso em que foi proferido o acórdão recorrido para o Tribunal Constitucional.
De todo o modo, estando em causa a remessa à conta de um processo sem impulso processual pela exequente há mais de três meses, nada por ela foi requerido em matéria de 'accionamento do direito de reversão' naquele lapso de tempo
3 – Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se indeferir a reclamação.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 15 Ucs.
Lisboa, 5 de Abril de 2000 Artur Maurício Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa