Imprimir acórdão
Proc. nº 675/95
1ª Secção
Rel: Cons. Ribeiro Mendes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A., com os sinais dos autos, veio deduzir, em 16 de Dezembro de 1994, incidente de suspeição relativamente ao Senhor Juiz relator no Tribunal Superior de Justiça de Macau, Conselheiro B.. Fê-lo através de requerimento endereçado ao Conselheiro Presidente desse Tribunal, ao abrigo dos arts. 112º e seguintes do Código de Processo Penal de 1929, vigente no território de Macau, para tanto alegando que, fora notificado, em 7 de Dezembro do mesmo ano, da interposição de recurso para aquele Tribunal e que, embora não conhecendo o relator a quem fora sorteado o recurso, sabia que entre o advogado do requerente e subscritor do pedido de recurso, Dr. C., e esse Magistrado existiam 'graves motivos de inimizade, razão pelas quais se poder[ia], em relação ao julgamento do presente recurso, em Plenário do S.T.J.M., suspeitar da imparcialidade deste
último' (a fls. 2 dos autos). Referiu, assim, que o seu mandatário deduzira participação disciplinar relativamente a esse Magistrado, por discordar dos termos em que havia proferido declarações de voto em certos processos que identificou, considerando que tais termos violavam o 'dever de estrita objectividade legalmente imposto aos juízes pelo Código de Processo Penal' e o dever de respeito e de tratamento com decoro e urbanidade de todos os intervenientes processuais. Concluiu igualmente que deveria fazer-se uma interpretação extensiva do art. 112º do mencionado Código de Processo Penal, 'no sentido de que os factos supra alegados estão abrangidos pelo seu nº 7, nomeadamente por se traduzirem numa circunstância ponderosa
(art. 126º, nº 1, do C.P.C.), sob pena de o resultado de uma interpretação restritiva (taxativa) do preceito conduzir, como consequência, à sua inconstitucionalidade material, por violação do disposto nos nºs. 1 e 7 [do] art. 32º da C.R.P.' (a fls. 2 vº).
O Presidente do Tribunal Superior de Justiça de Macau mandou ouvir o Magistrado recusado, tendo indeferido o pedido de imediata suspensão do processo.
O Magistrado visado respondeu no sentido de que o incidente de suspeição era um mero expediente dilatório, não contemplando o nº 7 do art.
112.º do Código de Processo Penal a situação de inimizade entre o Juiz e o mandatário da parte, sendo certo que os motivos de inimizade teriam sido ardilosamente criados por tal mandatário. Sustentou que o Tribunal devia condenar o requerente como litigante de má fé, devendo ainda fazer-se, quanto ao mandatário, a comunicação prevista no art. 459.º do Código de Processo Civil. Dos autos resulta que, no mesmo processo, já havia sido deduzido incidente de suspeição relativamente a um outro Juiz do mesmo Tribunal, o Desembargador D., incidente esse julgado improcedente.
Através de acórdão de 29 de Março de 1995, foi julgado improcedente o pedido de suspeição, mas não foi condenado o requerente como litigante da má fé.
O Ministério Público veio interpor recurso para o Plenário do Tribunal Superior de Justiça de Macau, por não se conformar com o acórdão proferido, na parte em que não condenou por litigância de má fé o requerente e não ordenou a passagem e remessa da competente certidão à Associação dos Advogados de Macau para efeitos disciplinares quanto ao mandatário. O recurso foi admitido por despacho de fls. 36.
Nas alegações, o Ministério Público sustentou que o requerente havia agido de má fé, bem como o respectivo mandatário judicial. Nas contra-alegações, o recorrido continuou a sustentar que a interpretação restritiva do nº 7 do art.
112º do Código de Processo Penal estava inquinada pelo vício de inconstitucionalidade, mostrando-se violados os nºs. 3 e 7 do art. 32º da Constituição. Juntou aos autos um parecer da autoria do Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias de sustentação da posição por aquele avançada.
Através de acórdão de 11 de Outubro de 1995, tirado com dois votos de vencido, o recorrido A. veio a ser condenado na multa de $1.500,00 patacas por litigar de má fé, ordenando-se a comunicação à Associação de Advogados de Macau da conduta do seu mandatário, nos termos e para os efeitos dos arts. 456º e 459º do Código de Processo Civil. Pode ler-se nessa decisão acerca do objecto do recurso:
' O recorrente limitou o objecto do recurso à litigância de má-fé, conformando-se com o mais decidido que, assim, logrou transitar em julgado.
É o que resulta do disposto nos artigos 690º, nº 1 e 684º, nº 3 do Código de Processo Civil aplicáveis «ex vi» dos artigos 749º daquele diploma e 649º do Código de Processo Penal.
Daí que, por não impugnada nas conclusões da alegação, não se conheça da bondade da decisão principal, «maxime» da interpretação do nº 7 do artigo 112º do Código de Processo Penal.
E irreleva o facto de o recorrido a ter questionado na contra-alegação, mesmo acenando com a sua inconstitucionalidade uma vez que não impugnou a decisão principal ou subordinadamente (ainda que, e por mero exercício de raciocínio, se aceitasse a figura do recurso subordinado em processo penal)' (a fls. 107).
Conhecendo da questão da má fé, o mesmo acórdão considerou que o recorrido havia litigado com má fé instrumental, por ter usado de meios incidentais cuja falta de fundamento não podia razoavelmente desconhecer e com má fé substancial, por ter articulado factos que sabia não corresponderem à verdade, uma vez que participara de um juiz ao seu órgão de gestão pela forma como redigira uma peça processual, o que não bastava para caracterizar grave inimizade. Considerou ainda que, quando a actuação processual 'ocorre num plano de busca de soluções puramente técnicas, o Mandatário tem responsabilidade pessoal e directa' (a fls. 110 dos autos).
Inconformado com esta decisão, dela veio interpor recurso para o Tribunal Constitucional o recorrido, invocando que o acórdão havia feito aplicação implícita do art. 112º, nº 7, do Código de Processo Penal de 1929, cuja inconstitucionalidade material fora alegada durante o processo.
O recurso foi admitido por despacho de fls. 117.
2. Subiram os autos ao Tribunal Constitucional.
Nas respectivas alegações, o recorrente propugnou pela revogação do acórdão recorrido, formulando as seguintes conclusões:
'1- Entende o recorrente que a questão da litigância de má fé em que veio a ser condenado e a interpretação do art. 112º do C.P.P. não podem ser analisadas em separado.
2- O recurso interposto pelo Sr. Procurador da República está intimamente ligado
à decisão de fundo do incidente: a interpretação taxativa ou restritiva do art.
112º do C.P.P..
3- O recurso ora interposto incide sobre uma decisão judicial que aplicou expressamente norma cuja inconstitucionalidade foi suscitada durante o processo
- a do art. 112º do C.P.P. - violando, consequentemente, as normas e princípios constitucionais dos nºs. 1, 3 e 7 do art. 32º e 206º da C.R.P..
Na verdade,
4- Entre as garantias de defesa do arguido asseguradas pelo nº 1 do art. 32º da C.R.P. conta-se a garantia decorrente do princípio da independência e da imparcialidade do tribunal, imprescindível à realização daquele outro princípio decorrente das garantias de defesa - o princípio da igualdade de armas.
5- O direito a um tribunal independente e imparcial faz parte do núcleo de direitos fundamentais reconhecidos a todos os indivíduos pela CRP (art. 32º nº 1 e 206º), pelo art. 11º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, pelos arts. 14º e 15º do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e pelos arts. 6º e 7º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
6- O art. 112º do CPP de 1929, ao consagrar o incidente da suspeição, tem como escopo e fundamento dar expressão concreta ao princípio da imparcialidade do tribunal, colocando à disposição do arguido, através do pedido de afastamento do processo do juiz suspeito, o fazer valer aquele princípio quando a imparcialidade do juiz seja posta em causa por qualquer motivo grave e sério.
7- Considera-se estar em causa um motivo grave e sério de suspeição sempre que este se mostra apto a criar junto do arguido e da comunidade desconfianças e suspeitas acerca da objectividade e neutralidade do juiz em relação ao processo, assim se colocando em destaque a dimensão objectiva da imparcialidade.
8- Só uma interpretação do art. 112º do CPP de 1929 em termos de compreender como causa de suspeição qualquer motivo grave e sério a imparcialidade do juiz será conforme com garantias de defesa do arguido asseguradas pelo art. 32º da CRP, nomeadamente pelo seu nº 1.
9- A existência de uma inimizade grave do juiz para com o defensor do arguido pode constituir - como, no caso sub judice, constitui - um motivo sério e grave de suspeitas, por parte do arguido e da comunidade, acerca da neutralidade do juiz em relação ao arguido e à sua defesa.
10- A interpretação da norma do art. 112º do CPP de 1929, maxime do seu nº 7, num sentido taxativo e estrito, ao determinar a não inclusão da inimizade grave entre o juiz e o defensor do arguido entre as causas de suspeição, encontra-se ferida de inconstitucionalidade, por negar ao arguido a possibilidade de afastamento do juiz considerado suspeito e, assim, violar as suas garantias de defesa em processo criminal, consagradas no art. 32º nº 1 da CRP.
11- Tal interpretação - e a aplicação da lei que dela resulta - viola, desde logo, o princípio da imparcialidade do tribunal, porquanto conduz à submissão do arguido a um julgamento por juiz de cuja neutralidade a comunidade pode fundadamente suspeitar.
12- O princípio da imparcialidade do tribunal, além de apontar para a
«independência vocacional» do juiz, exige um quadro legal que promova e facilite essa mesma independência, por forma a garantir a imparcialidade real do julgamento e a assegurar a confiança geral na objectividade da jurisdicção.
13- A interpretação restrita do art. 112º do CPP de 1929 viola igualmente o princípio da igualdade de armas entre a acusação e a defesa, o qual se conta entre as garantias de defesa do art. 32º nº 1 da CRP, uma vez que, posta em causa a neutralidade do juiz perante o arguido, a sua defesa se fragiliza processualmente em relação à acusação, assim se dando lugar a uma desigualdade material daquelas posições em prejuízo do arguido.
14- A interpretação do art. 112º do CPP de 1929 no sentido da sua taxatividade e de forma restrita, em termos de excluir das causas de suspeição as relações de grave inimizade entre o juiz e o defensor, viola igualmente o direito à escolha de defensor, consagrado no nº 3 do art. 32º da CRP, na medida em que o receio do arguido de ver repercutida na sua pessoa a perda da objectividade do juiz, pelas relações de tensão entre este e o seu defensor, pode determiná-lo a procurar um outro defensor em relação ao qual se não verifique a inimizade do juiz, mas que não corresponde ao defensor que na realidade ele quis (e tinha o direito de) livremente escolher.
15- A norma do art. 112º do CPP de 1929, se interpretada nos termos descritos, viola ainda o princípio do juiz legal, consagrado no nº 7 do art. 32 da CRP, porquanto, tendo este como escopo e fundamento principal a fixação prévia e abstracta do tribunal que o há-de julgar, pretende garantir uma justiça material assegurada pela neutralidade e independência do juiz, bem como o seu distanciamento em relação à causa.
16- A garantia da neutralidade e imparcialidade prosseguida com o princípio do juiz legal fica imediata e igualmente prejudicada pela não inclusão, entre os motivos de suspeição, de qualquer motivo grave e sério que possa determinar no arguido e na comunidade a perda de confiança na objectividade do julgamento.
17- A norma do art. 112º do CPP de 1929, se interpretada no sentido descrito, viola as disposições constitucionais dos arts. 32º, nº 1, 3 e 7 e 206º, pelo que a decisão que nesses termos a aplicou deve ser revogada por aplicação de norma inconstitucional'. (a fls. 139 vº a 141 vº)
O Ministério Público ofereceu igualmente alegações, concluindo do seguinte modo essa peça processual:
'
1º
A norma constante do artigo 112º, nº 7, do Código de Processo Penal de 1929, na interpretação do acórdão recorrido, segundo o qual não se incluem nos fundamentos da suspeição as relações de grave inimizade entre o juiz e o defensor do arguido é materialmente inconstitucional, por violação dos nºs. 1 e
3 do artigo 32º da Constituição.
2º
Termos em que deve conceder-se provimento ao recurso, determinando-se a reforma da decisão recorrida na parte impugnada'. (a fls. 159 dos autos)
3. Foram corridos os vistos legais.
Impõe-se, assim, passar à apreciação do recurso, analisando em primeiro lugar se se verificam os respectivos pressupostos de admissibilidade.
II
4. Constitui objecto do recurso, tal como é indicado pelo recorrente, a questão da inconstitucionalidade da norma do nº 7º do art. 112º do Código de Processo Penal de 1929, quando interpretada de forma restritiva
(taxativa) de modo a considerar, para efeitos de condenação do arguido como litigante de má fé e de exercício pelo Tribunal da faculdade prevista no art.
459º do Código de Processo Civil, irrelevante como fundamento de recusa do juiz por suspeição a existência de grave inimizade entre este e o mandatário forense do arguido. Segundo o recorrente, a norma, na interpretação indicada, viola os nºs. 1, 3 e 7 do art. 32º da Constituição.
5. Importará preliminarmente notar que, tendo sido suscitada a questão de constitucionalidade perante o Tribunal Superior de Justiça de Macau, num recurso interposto de decisão proferida pelo Tribunal de Competência Genérica do mesmo território em processo crime aí pendente, o parâmetro constitucional invocado pelo ora recorrente, a Constituição da República Portuguesa, há-de ser considerado por força da remissão feita pelo art. 2º do Estatuto Orgânico de Macau, na versão em vigor introduzida pela Lei nº 13/90, de
10 de Maio. De facto, o Estatuto Orgânico de Macau constitui o texto constitucional directamente aplicável ao território, só sendo aplicável a Constituição portuguesa nos termos previstos naquele Estatuto (sobre este ponto e com referências à doutrina e à jurisprudência do próprio Tribunal Constitucional, veja-se o acórdão nº 659/95, ainda inédito).
6. Resta averiguar se a norma identificada pelo recorrente, na dimensão interpretativa indicada, foi ou não aplicada pelo acórdão recorrido.
O recorrente alega que o acórdão recorrido fez uma aplicação implícita da norma. No próprio acórdão recorrido não se faz qualquer referência explícita
à interpretação da norma, considerando-se mesmo que tal questão está arrumada por decisão transitada em julgado.
Importa averiguar se assim aconteceu de facto.
O primeiro acórdão do Tribunal Superior de Justiça de Macau não condenou o ora recorrente como litigante de má fé, nem, claro, determinou a participação prevista no art. 459º do Código de Processo Civil, por considerar que não se podia dizer 'que a parte (e o advogado) não esteja de boa fé quando pretende que tem de fazer-se uma interpretação extensiva do art. 112º, nº 7º, do Código de Processo Penal sob pena de inconstitucionalidade material por violação do disposto no art. 32º da Constituição da República, uma vez que o nº 3 do citado preceito constitucional atribui ao arguido o direito de escolher o seu defensor [...]'. E, logo de seguida, afirmava-se que a lide poderia ser temerária por ir contra a jurisprudência, mas seria 'perigoso considerar abusivo o que não é conforme à jurisprudência', tanto mais que boa parte da doutrina não sufragava 'a taxatividade dos arts. 104º a 112º do Código de Processo Penal'
(casos de Figueiredo Dias e Maia Gonçalves). Daí a conclusão de que - mesmo sem acolher a tese da inconstitucionalidade propugnada pelo recorrente - não resultava dos autos 'provado que a parte (e o seu advogado) [agira] com dolo, ou seja, com a consciência de não ter razão' (a fls. 24 vº e 25 dos autos). No voto de vencido, discordou-se da tese maioritária, afirmando-se que a inconstitucionalidade do preceito suscitada pelo recorrente era carecida de fundamento, não podendo falar-se de 'questão delicada', como admitira a posição maioritária, mas de 'problema líquido e inquestionável «jure condito»'. Por isso, se considerava que o recorrente havia litigado conscientemente contra lei expressa, sendo o 'recurso a meios processuais', isto é, ao incidente de suspeição, feito 'por forma manifestamente reprovável só para lograr o afastamento de juízes e demorar o exercício da justiça', o que caracterizaria o dolo adjectivo, responsabilizando a parte e o seu advogado.
O segundo acórdão, tirado pelo plenário do Tribunal Superior de Justiça de Macau, acolheu a argumentação do voto de vencido atrás referido, tendo considerado que tinha havido litigância consciente contra lei expressa não inconstitucional, o que só podia ser contra o disposto no nº 7º do art. 112º do Código de Processo Penal, uma vez que a invocação de grave inimizade entre o juiz e o mandatário do arguido não preenchia a previsão constante daquela norma. Teria, pois, havido uso de meios incidentais cuja falta de fundamento o recorrente e o seu mandatário não poderiam razoavelmente deixar de conhecer, a que acrescia que a parte tinha articulado factos que sabia não corresponderem à verdade (existência de grave inimizade entre magistrado e mandatário forense), uma vez que 'participar de um juiz ao seu órgão de gestão pela forma como redigiu uma peça processual não [bastava] para caracterizar grave inimizade' (a fls. 109 vº). No voto de vencido do primitivo relator manteve-se a tese que triunfara na decisão recorrida, continuando a sustentar-se que não era líquida a questão da interpretação taxativa ou não taxativa da referida norma (a fls. 111 e 112).
7. Dado o exposto, é claro que o acórdão recorrido aplicou conjugadamente as normas dos arts. 117º do Código de Processo Penal de 1929,
456º e 459º do Código de Processo Civil, bem como a norma do art. 112º, nº 7º, do primeiro daqueles diplomas numa dada interpretação, impugnada quanto à constitucionalidade pelo recorrente. Embora não se aluda a essa norma e se diga mesmo que ficou assente, por falta de recurso do arguido, que era improcedente a recusa por suspeição, a verdade é que o acórdão recorrido aplicou implicitamente tal norma, ao considerar que o recorrente havia litigado conscientemente contra lei expressa, ou seja, contra o disposto naquele nº 7º do art. 112º, na sua interpretação literal, e que o seu advogado devia sujeitar-se a eventual responsabilidade pelas consequências da litigância de má fé, razão por que se determinara a comunicação prevista no art. 459º do Código de Processo Civil.
Estão, assim, reunidos os pressupostos do recurso de constitucionalidade previsto na alínea b) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional, porque o recorrente impugnou durante o processo - nomeadamente na contra-alegação do recurso interposto para o plenário do Tribunal Superior de Justiça de Macau (a fls. 44 vº e seguintes) - a constitucionalidade do nº 7º do art. 112º do Código de Processo Penal, na sua interpretação restritiva, e a norma foi aplicada, embora implicitamente, com essa interpretação no acórdão recorrido para efeitos de aplicação dos arts. 456º e 459º do Código de Processo Civil e 117º do Código de Processo Penal.
8. Pode, assim, passar a conhecer-se do objecto do recurso.
9. O Código de Processo Penal de 1929, ainda vigente no território de Macau, regula nos seus arts. 104º a 117º os 'impedimentos e suspeições' dos juízes e ainda de outros sujeitos processuais ou de intervenientes no processo (jurados, escrivães, peritos e intérpretes), além de incompatibilidades de juízes e advogados.
Quando ocorre um impedimento, o juiz não pode 'funcionar em processo penal' (art. 104º). Igualmente, a verificação de incompatibilidades impede os magistrados afectados de 'fazer parte de qualquer tribunal colectivo de comarca' ou de intervir em qualquer decisão a proferir pelos tribunais superiores (art.
108º).
Diferentemente, no caso de suspeição, o juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas o Ministério Público, a parte acusadora ou o arguido, logo que seja admitido a intervir, pode recusá-lo como suspeito invocando algum dos fundamentos previstos na lei (art. 112º).
Como referia Luís Osório, no seu Comentário ao Código de Processo Penal, 'quando às pessoas, que intervêm no processo, se exige um comportamento imparcial e independente, a capacidade em concreto pode faltar pela presença duma circunstância especial da causa que ameaça aquela imparcialidade e independência [...]. Chegamos assim aos impedimentos e suspeições' (2º volume, Coimbra, 1932, pág. 225). Ainda segundo o mesmo comentador, nas causas de impedimento 'classificou o legislador aquelas circunstâncias que entendeu afectarem sempre a imparcialidade ou a independência dos funcionários; e nas causas de suspeição classificou aquelas que podem afectar essa imparcialidade ou independência'. Daí que os impedimentos devessem 'ser denunciados pelos impedidos - art. 104º § 2 - ao passo que as suspeições só pelas partes podem ser alegadas - 112º; pois só elas são juízes para determinar se aquela possibilidade se pode tornar ou não em realidade' (ob cit, pág. 227).
Relativamente ao elenco de impedimentos e de suspeições consagrado no Código de Processo Penal, desde cedo se considerou haver aí uma enumeração de causas 'taxativas' (Luís Osório, ob. e vol. citados, pág. 227). Este comentador, a propósito dessa solução, contrapunha-a ao sistema germânico, em que se consagrou tradicionalmente uma 'regra' ou 'cláusula' geral, confiando-se a determinação dos casos de suspeição ao próprio tribunal. Os sistemas latinos - com excepção porventura, da lei processual penal italiana - caracterizavam-se antes pela enumeração de 'cada uma das causas de suspeição' (ob. e vol. citados, pág. 291).
A jurisprudência passou a aceitar maioritariamente que havia uma enumeração taxativa no art. 112º do Código de Processo Penal, mas tal entendimento veio a ser criticado no ensino de Figueiredo Dias, em especial após a publicação do seu Direito Processual Penal, I, em 1974, ainda no domínio da Constituição Política de 1933. Este penalista interrogava-se sobre se os arts.
104º e 112º do Código de Processo Penal não poderiam revelar lacunas que devessem ser preenchidas, nomeadamente por recurso às disposições correspondentes do Código de Processo Civil, de âmbito mais lato. E afirmava que lhe parecia, em matéria de impedimentos, 'que uma razão tão premente como a de boa administração da justiça penal vivamente [aconselhava] a que se integre, nesta parte, o CPP pela regulamentação contida no CPC e que se mostre em concreto aplicável [...], como aconselha ainda a que se interpretem o mais latamente possível os fundamentos referidos pelo art. 104º do CPP [...]' (ob cit, págs. 317-318). Relativamente às suspeições punha o mesmo autor igualmente em dúvida a bondade de se acolher uma enumeração taxativa das causas de suspeição: 'melhor seria, sem dúvida, ter utilizado - à semelhança, v. g., do §
24 II do CPP alemão ocidental - uma cláusula geral que dissesse poder ser recusado o iudex suspectus «quando exista qualquer fundamento capaz de gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade»' (ob cit, pág. 319).
A orientação de Figueiredo Dias veio a ser acolhida por Maia Gonçalves, o qual acentuou que aquele autor demonstrara que a enumeração dos casos de impedimentos e de suspeições comportava lacunas que deviam ser preenchidas através da analogia, sendo essa 'a doutrina mais defensável' por estar 'escudada em argumentos convincentes' (Código de Processo Penal Anotado e Comentado, 4ª ed., Coimbra, 1980, págs. 185 e 192).
10. Não pode, por isso, causar admiração que o novo Código de Processo Penal de 1987 tenha abandonado o sistema de enumeração casuística do diploma antecedente, caracterizador do chamado 'sistema latino', consagrando um sistema de cláusula geral na matéria de suspeições, mas mantendo uma enumeração taxativa dos casos de impedimento. Assim, o art. 43º, nº 1, estabelece que pode ser recusada a intervenção de um juiz no processo 'quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade' (sobre este artigo, veja-se Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, I, 2ª ed., 1994, págs. 198-199).
O novo Código de Processo Penal acolhe, assim, como 'verdadeiro princípio geral de direito, actuante no domínio da política judiciária, que se esconde atrás de toda a matéria respeitante aos impedimentos e suspeições do juiz, o de que é tarefa da lei velar por que, em qualquer tribunal e relativamente a todos os participantes processuais, reine uma atmosfera de pura objectividade e de incondicional juridicidade. Pertence, pois, a cada juiz evitar, a todo o preço, quaisquer circunstâncias que possam perturbar aquela atmosfera, não - uma vez mais o acentuamos - enquanto tais circunstâncias possam fazê-lo perder a imparcialidade, mas logo enquanto possa criar nos outros a convicção de que ele a perdeu [...]' (Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 320).
Deve notar-se que, não estando tipificadas taxativamente as causas de suspeição no novo Código de Processo Penal, pode o arguido recusar por suspeição ou o próprio juiz pedir escusa ao tribunal competente se existir uma situação de grave inimizade com o arguido ou o seu mandatário (art. 43º, nº 1).
11. É altura de regressar à questão de constitucionalidade que constitui objecto de recurso.
A Constituição vigente veio acentuar as garantias de independência dos tribunais, começando, naturalmente, por estatuir que eles apenas estão sujeitos
à lei (art. 206º). A independência dos tribunais é especialmente garantida pela independência dos próprios juízes, exigindo este princípio de independência 'não apenas a sua inamovibilidade e irresponsabilidade (art. 218º) mas também a sua liberdade perante quaisquer ordens ou instruções das demais autoridades, além de um regime adequado de designação, com garantias de isenção e imparcialidade que evitem o preenchimento dos quadros da magistratura de acordo com os interesses dos demais poderes do Estado, sobretudo do Governo e da Administração (cfr. arts. 219º e 220º) '(Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, pág. 794).
A Constituição portuguesa impõe aos próprios órgãos e agentes administrativos que actuem, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade
(art. 266º, nº 2). Se esta imposição se aplica a órgãos e agentes administrativos, fácil é de compreender que os juízes, titulares dos órgãos de soberania que são os tribunais, hão-de necessariamente agir subordinados ao dever de imparcialidade, visto que as suas funções de 'dizer o direito' implicam naturalmente a sua independência e a sua imparcialidade (art. 205º, nºs. 1 e 2). Só assim se poderá assegurar o princípio de igualdade dos cidadãos perante a lei
(art. 13º da Constituição).
12. A jurisprudência do Tribunal Constitucional tem acentuado as garantias de imparcialidade dos juízes e, portanto, dos tribunais.
Assim, no acórdão nº 135/88, este Tribunal julgou inconstitucional a norma constante do art. 116º do Código de Processo Penal de 1929, na parte em que proíbe que o juiz se declarasse impedido em acções penais por virtude de ofensas que lhe tivessem sido feitas na sua presença e no exercício das suas funções e na medida também em que impedia que se lhe pudesse opor impedimento. Escreveu-se nesse acórdão:
' A independência dos juízes é, acima de tudo, um dever - um dever ético-social. A «independência vocacional», ou seja, a decisão de cada juiz de, «ao dizer o direito», o fazer sempre esforçando-se por se manter alheio - e acima - da influências exteriores, é, assim, o seu punctum saliens. A independência, nesta perspectiva, é sobretudo, uma responsabilidade que terá a «dimensão» ou a
«densidade» da fortaleza de ânimo do carácter e da personalidade moral de cada juiz.
Com sublinhar estes pontos, não pode, porém, esquecer-se a necessidade de existir um quadro legal que «promova» e facilite aquela «independência» vocacional.
Assim, necessário é, inter alia, que o desempenho do cargo de juiz seja rodeado de cautelas legais destinadas a garantir a sua imparcialidade e a assegurar a confiança geral na objectividade da jurisdição.
É que, quando a imparcialidade do juiz ou a confiança do público nessa imparcialidade é justificadamente posta em causa, o juiz não está em condições de «administrar justiça». Nesse caso, não deve poder intervir no processo, antes deve ser pela lei impedido de funcionar - deve, numa palavra, poder ser declarado iudex inhabilis' (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11º vol., pág. 951; esta doutrina foi reafirmada pelo acórdão nº 68/90, in Acórdãos, 15º vol., págs. 247 e seguintes).
E, no mesmo acórdão, reconheceu-se que 'o direito a um julgamento independente e imparcial e, mais do que isso, a garantia pública dessa independência não [eram], decerto, dimensões menores do princípio das garantias de defesa que o processo penal de um Estado de direito tem que assegurar', sob pena de se 'pôr em crise o princípio do due process of law, do fair process, do processo devido e leal' (vol. cit. , pág. 952).
As mesmas formulações foram ainda reafirmadas no acórdão nº 124/90 (in Acórdãos, 15º vol., págs. 417 e seguintes), fazendo-se aí apelo ao art. 6º, nº
1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem ('Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial [...]').
Mesmo relativamente a um tribunal arbitral necessário e a propósito do modo de designação dos seus árbitros, teve ocasião o Tribunal Constitucional de acentuar as exigências decorrentes da garantia constitucional da imparcialidade dos juízes, nomeadamente no plano orgânico, estatutário e da regulamentação da respectiva lei processual. No acórdão nº 52/92, tirado em processo de fiscalização abstracta, repetiu-se a distinção traçada no acórdão nº 135/88 entre imparcialidade subjectiva e objectiva, citando-se a propósito uma afirmação feita pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem no sentido de que tem de ser assegurada igualmente, antes e durante o julgamento, a imparcialidade objectiva do tribunal, visto que a confiança que os tribunais de uma sociedade democrática devem inspirar às partes justifica que se deva recusar 'qualquer juiz relativamente ao qual se possa legitimamente recear a existência de uma falta de imparcialidade ... O elemento determinante consiste em saber se as apreensões do interessado podem ter-se como objectivamente justificadas' (caso Hauschildt - 11/1987/134-188, p. 14, § 48 - remete-se para o citado acórdão nº
52/92, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 21º vol., pág. 62; sobre a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem na matéria, com especial referência ao adágio inglês 'justice must not only be done: it must also be seen to be done', vejam-se Jean Claude Soyer e Michel de Salvia, comentário ao art. 6º da Convenção Europeia, in La Convention Européenne des Droits de L'Homme, ob. colectiva sob a direcção de L. E. Pettiti, E. Decaux e P. H. Imbert, Paris, 1995, págs. 260-261; a sentença do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, de 22 de Abril de 1994, caso Saraiva de Carvalho contra Portugal, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 4, nº 3, 1994, págs.
405-414, com anotação de António Henriques Gaspar; e também o parecer do Prof. Doutor Figueiredo Dias junto aos autos, onde se relata que '... tanto a doutrina
[...] como a jurisprudência [...] europeias têm tomado em igual linha de consideração a dimensão objectiva e subjectiva da imparcialidade; sendo certo que, se alguma preponderância é dada a alguma destas dimensões, ela se refere à dimensão objectiva; não só porque a demonstração da imparcialidade ou da parcialidade subjectiva (íntima) do juiz é de difícil alcance e demonstração, como porque, acima de tudo, se pretende colocar os tribunais, na sua actividade julgadora, a salvo de suspeições ou desconfianças que desmereçam a sua função jurídico-social. Na frase, ainda aqui lapidar, de CAVALEIRO DE FERREIRA, «... não importa, aliás, que na realidade das coisas o juiz permaneça imparcial, interessa, sobretudo, considerar se em relação com o processo poderá ser reputado imparcial»' - fls. 71-72 dos presentes autos).
13. Nas contra-alegações do Ministério Público juntas aos autos, analisa-se o papel do advogado defensor no regime processual penal que ainda vigora em Macau, chamando a atenção para a sua qualificação como 'órgão de administração de justiça que actua exclusivamente em favor do arguido'
(Figueiredo Dias) ou como 'órgão de justiça' (Cavaleiro de Ferreira). Contrapondo o papel do advogado de defesa ao do Ministério Público, a doutrina portuguesa afirma que este último tem o dever de contribuir para o esclarecimento integral da verdade material, ao passo que o primeiro, estando embora vinculado aos ditames das exigências de justiça, só deve agir em favor, e não em desfavor, do arguido, sujeito processual que deve ser ouvido antes de proferida qualquer decisão que afecte os seus direitos, de modo a influenciar o processo e o seu resultado. Esta concepção é, de um modo geral, aceite nos países do nosso círculo cultural (cfr. K. H. Gossel, 'A posição do Defensor no Processo Penal de um Estado de Direito', in Boletim da Faculdade de Direito, vol. LIX, 1983, págs. 244 e seguintes; numa perspectiva comparatística sobre o papel do defensor nos direitos processuais penais da Alemanha, Bélgica, França, Inglaterra e País de Gales, e Itália veja-se a obra colectiva sob a direcção de Mireille Delmas-Marty, Procédures Pénales d'Europe, Paris, 1996, págs. 36 e segs., e o tratamento nacional da intervenção do defensor em cada um desses países).
O advogado de defesa é, assim, o jurista que pode argumentar contra o jurista que tem a seu cargo a tarefa de acusar o arguido, o representante do Ministério Público, cabendo-lhe zelar por que, durante o processo, seja assegurada, em todas as circunstâncias, a dignidade pessoal do arguido. Pode, assim, considerar-se que o defensor é ainda um sujeito processual.
A nossa Constituição, ao tratar das garantias do processo penal, estatui - depois de enunciar, como princípio geral, que 'o processo criminal assegurará todas as garantias de defesa' (nº 1 do art. 32º) - que a pessoa arguida tem 'o direito de escolher defensor e a ser por ele assistido em todos os actos do processo, especificando a lei os casos e as fases em que essa assistência é obrigatória' (nº 3 do mesmo artigo). Como escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira, a Constituição reconhece ao arguido, não apenas o direito à assitência de defensor, mas o direito à escolha deste, 'com base na ideia de que o arguido não é objecto de um acto estadual mas sujeito do processo, com direito a organizar a sua própria defesa' (Constituição cit., pág. 204). Os mesmos comentadores acentuam que a missão do defensor é, de um ponto de vista funcional. a de garantir e defender os direitos do arguido no processo, circunstância que acarreta, no plano institucional, que o advogado de defesa seja visto como 'uma parte no processo e um «órgão independente de justiça», o que aponta para uma posição jurídica materialmente independente quer perante o tribunal, quer perante o constituinte' (ibdem).
14. Face a esta concepção constitucional do papel do defensor em processo penal, afirma o Exmº. Procurador-Geral Adjunto nas suas contra-alegações:
' Surge, assim, inteiramente justificada a alegação do recorrente de que o defensor está de tal forma próximo e indissociável do arguido que facilmente se compreenderá como as relações de inimizade grave entre juiz e defensor podem afectar a posição daquele. Extraindo todas as consequências do que acaba de ser dito, poderia até dizer-se que, aparecendo o defensor como representante dos interesses processuais do arguido, sendo a sua voz, deixa de ter sentido afirmar que aquele não está incluído no nº 7 do artigo 112º do Código de Processo Penal, irrelevando, por consequência, a querela sobre a enumeração taxativa ou não taxativa das causas da suspeição. Mas o que, no mínimo, poderemos seguramente concluir é que a grave animosidade do juiz para com o defensor pode repercutir-se negativamente no arguido ou pode gerar na comunidade a suspeita de que tal possa vir a acontecer, assim legitimando a suscitação do incidente.' (a fls. 157 dos autos)
15. No parecer junto aos autos, o Prof. Doutor Figueiredo Dias opera uma distinção na mesma linha do passo que se acaba de transcrever. Segundo este penalista, a mera inimizade entre o juiz e o advogado do arguido não pode, no comum dos casos, servir de causa de suspeição, para efeitos de aplicação do nº 7º do art. 112º do Código de Processo Penal, não podendo 'relevar concretamente nos mesmos termos em que releva a inimizade entre o juiz e o arguido'. E afirma em seguida:
' De modo diferente, diríamos que nestes casos se encontram consideravelmente acrescidas as exigências de gravidade das relações entre aqueles dois sujeitos processuais [entenda-se, o juiz e o defensor]; de tal forma que deve afirmar-se que tais relações só podem em princípio constituir causa legítima de suspeição quando e se, dada a gravidade das mesmas, estas possam abranger ou afectar o arguido; quando, numa palavra, a tensão nas relações seja de molde a, num efeito de ricochete, reflectir-se na atitude (objectividade) do juiz perante o arguido ou na suspeita comunitária de que tal possa suceder. Pois que, quando isso suceda, são de novo os direitos do arguido - maxime, o direito à imparcialidade do tribunal - que são postos em causa, devendo em consequência ser accionados os mecanismos de defesa das suas garantias processuais (no caso, o incidente de suspeição).' (a fls. 87 dos autos)
E, mais à frente, o mesmo penalista acrescentava:
' Cremos, por último, que o sentido e função da norma do artigo 112º não se coaduna com interpretações conceitualistas do seu conteúdo; isto é, o facto de o
§ 7 falar de relações de inimizade entre o juiz e «o arguido» não obriga a que se entenda tal pressuposto de uma forma tão restrita que não se possa incluir nessas relações o defensor do arguido - afinal, conforme se referiu, aquela pessoa incumbida por lei de assumir a sua defesa, nos mesmos termos em que o arguido o faria se tivesse preparação jurídica bastante para compreender e manejar o processo penal.' (a fls. 90 dos autos)
Dentro destes apertados termos, o Prof. Figueiredo Dias conclui que a interpretação adoptada da norma do nº 7º do art. 112º do Código de Processo Penal viola os nºs. 1 e 3 do art. 32º da Constituição da República.
16. Na consideração do presente recurso, importa inclusivamente perguntar-se se a consagração, como causa de suspeição, da inimizade grave entre o juiz e o arguido, sob pena de inconstitucionalidade se não ocorrer tal consagração, poderá pôr em causa o princípio do juiz natural ou juiz legal.
De facto, a par do direito de o arguido escolher o seu defensor (nº 3 do art. 32º da Constituição), constitui importante garantia para qualquer arguido a regra de que 'nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior' (nº 7 do mesmo artigo), na medida em que fica proibida a criação de tribunais ad hoc ou a atribuição de competência a um tribunal diferente daquele que detinha competência ex lege para julgar o acusado de qualquer crime, à data da prática do mesmo.
Poderia, assim, admitir-se que a aceitação de uma causa de suspeição decorrente da inimizade grave entre o juiz e o advogado possa facilitar uma actuação do arguido, através da escolha do advogado, tendente a levar ao afastamento do juiz que deveria julgar a causa, com o que se estaria, de algum modo, a pôr em causa o princípio do juiz legal.
Talvez que seja essa a razão por que tal hipótese não releva em regra, nos diferentes direitos do nosso círculo cultural, como causa de suspeição. De facto, ainda que exista inimizade entre o juiz e o defensor, tal situação, em regra, não leva a pôr automaticamente em causa a imparcialidade do juiz face ao próprio arguido. Ao menos no comum dos casos, a inimizade existente dificilmente implicará a ruptura das relações funcionais entre dois profissionais juristas, em termos de a comunidade recear que o juiz viole o dever de imparcialidade movido pela sua animosidade contra o defensor.
17. Dado o objecto do litígio que atrás se fixou, não se impõe dilucidar definitivamente as complexas questões de concordância prática entre o disposto nos nºs. 3 e 7 do art. 32º da Constituição, para determinar, em todos os casos, se a norma a que se refere o objecto do recurso é ou não inconstitucional.
Uma vez que está apenas em causa, no presente recurso, o entendimento perfilhado pelo Tribunal recorrido do nº 7º do art. 112º do Código de Processo Penal, para efeitos de responsabilização por litigância de má fé do arguido e, eventualmente, do seu defensor - arts. 117º do Código de Processo Penal, 456º e
459º do Código de Processo Civil - pode concluir-se que, na medida em que se pretendeu responsabilizar pessoalmente o mandatário defensor do arguido pela circunstância de este ter, alegadamente, agido com dolo substancial ao interpretar aquela primeira norma supostamente contra legem, o Tribunal recorrido interpretou o nº 7º do mesmo art. 112º de forma inconstitucional.
De facto, a responsabilização pessoal do advogado defensor pela invocação da inimizade grave entre ele e o juiz recusado implica que se desconsidera, na decisão recorrida, a sua qualidade de verdadeira parte ou de arguido neste incidente, dadas as consequências pessoais que para ele podem resultar do decaimento no mesmo. O defensor aparece aqui como verdadeira voz do arguido e, mais do que isso, como sujeito processual que pode incorrer em responsabilidade pecuniária pelo decaimento no incidente, ex vi do art. 459º do Código de Processo Civil.
Nestes termos, conclui-se que a norma do nº 7 do art. 112º do Código de Processo Penal de 1929, na interpretação perfilhada no acórdão recorrido, para efeitos de aplicação das normas conjugadas dos arts. 117º do mesmo diploma e
456º e 459º do Código de Processo Penal, é inconstitucional, por violação dos nºs. 1 e 3 do art. 32º da Constituição da República, normas aplicáveis por força do art. 2º do Estatuto Orgânico de Macau.
III
18. Nestes termos e pelas razões expostas, decide o Tribunal Constitucional:
a) conceder provimento ao recurso, julgando inconstitucional a norma do nº 7º do art. 112º do Código de Processo Penal, quando interpretada de forma restritiva ou taxativa, de modo a considerar, apenas para efeito de condenação do arguido como litigante de má fé e de exercício pelo Tribunal da faculdade prevista no art. 459º do Código de Processo Civil, irrelevante como fundamento de recusa do juiz por suspeição a invocada existência de grave inimizade entre este e o mandatário forense do arguido, por violação dos nºs. 1 e 3 do art. 32º da Constituição da República Portuguesa, aplicáveis por força do art. 2º do Estatuto Orgânico de Macau;
b) revogar, em consequência, o acórdão recorrido, o qual deverá ser reformado em consonância com o julgamento sobre a questão de constitucionalidade em causa.
Lisboa, 12 de Março de 1997 Armindo Ribeiro Mendes Alberto Tavares da Costa Antero Alves Monteiro Diniz Maria da Assunção Esteves Maria Fernanda Palma Vitor Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa