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Procº nº 153/96 Rel. Cons. Alves Correia
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório.
1. M..., condenada na pena de 4 anos de prisão pela prática do crime previsto e punido no nº 1 do artigo 21º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, por Acórdão de 22 de Janeiro de 1995 da 7ª Vara Criminal do Círculo de Lisboa, interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, em cujas alegações suscitou a questão da incons- titucionalidade do artigo 127º do Código de Processo Penal, nos seguintes termos:
'Não indica a decisão quais os elementos de que se socorreu para se chegar à convicção que a droga fosse destinada à venda, sendo que só confessou a detenção conforme vem provado.
Assim sendo existe erro notório na apreciação da prova.
Não se está a impugnar a livre apreciação da prova, preceito previsto no artigo 127º do C.P.P., mas tão somente a
ausência da mesma, porquanto nenhuma prova foi trazida ao tribunal que permita concluir que o julgador dispôs de elementos suficientes para considerar que a droga se destinava a venda.
A livre convicção da prova ou apreciação poderá nunca confundir-se com a apreciação arbitrária da prova produzida nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova (Prof. Figueiredo Dias in Direito Processual Penal, pg. 199).
Por isso se exige a correcta fundamentação fáctica de molde a permitir um efectivo controle da motivação, artigo 97º, nº 4, 374º e 379º do C.P.P..
Ora o descrito na enunciação de provas que serviram para formar a convicção do tribunal apenas permite concluir que a arguida detinha o produto estupefaciente e demais objectos mas já não que se dedicasse à venda ou quisesse vender os produtos que detinha.
Este vício que se invoca determina o reenvio do processo para o novo julgamento face ao disposto no artigo 426º do C.P.P..
Aliás, se assim não fosse, então suscitar-se-ia, como se suscita, a inconstitucionalidade do artigo 127º do C.P.P. na medida em que se dão como provados factos descritos na acusação que não correspondem à enunciação de provas que serviram para formar a convicção do tribunal, por violação do artigo
32º nº 1 da C.R.P..
Atento este fundamento ou balizando-o como a recorrente o faz, deverá o S.T.J. declarar a inconstitucionalidade desta norma'.
2. Por Acórdão de 9 de Novembro de 1995, o Supremo Tribunal de Justiça negou provimento ao recurso e confirmou o acórdão impugnado. Inconformada, trouxe a recorrente recurso para este Tribunal, ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (Lei nº 28/82, de 15 de Novembro), concluindo assim as suas alegações:
'1º- A recorrente veio arguir a inconstitucionalidade do artgº 127º do C.P.P. quando interpretado no sentido de que é permitido dar como provado um determinado facto, sem que na fundamentação do Acórdão seja perceptível, qual o suporte probatório que leva o julgador, a dá-lo como provado, por violação do disposto no artgº 32º, nº 1 da C.R.P..
2º- Concretamente o caso que nos traz em desacordo, refere-se ao facto de se ter dado como provado que a ora recorrente destinava a droga que detinha a venda, não se nos afigurando que dos motivos de facto e direito que fundamentam a decisão, tal juízo pudesse ser alcançado.
3º- O controle da decisão só se faz em obediência e pelo disposto no artgº 374º, nº 2 do C.P.P. e pela leitura dessa mesma fundamentação de acordo com o artgº atrás citado, não se verifica nenhum dado que vá além da posse do estupefaciente que aliás não é contestada.
4º- Como se refere nessa mesma fundamentação, a prova baseou-se no depoimento da recorrente (confissão dos pontos 5 e 7) e nos depoimentos dos agentes que apenas procederam à detenção da recorrente, essencialmente.
5º- O dizer-se que a mesma destinava o estupefaciente a venda quando a fundamentação nada mais indica que a posse, é algo mais do que o estatuído no artgº 127º do C.P.P. e que escapa ao controle da prova regulamentado no artgº
374º, nº 2 do mesmo diploma.
Assim ficaria prejudicado o princípio de que o processo criminal assegurará todas as garantias de defesa, prescrito no artigo 32º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa, pois sob a 'capa' da livre apreciação da prova, deixar-se-ia sem controle efectivo, o dever de enunciar os motivos que levam o julgador a pronunciar-se num ou noutro sentido'.
Por sua vez, o Exmº Procurador-Geral Adjunto em funções neste Tribunal concluiu assim as suas alegações:
'1º- A norma constante do artigo 127º do Código de Processo Penal, ao mandar valorar a generalidade dos meios de prova produzidos em processo penal segundo as regras da experiência e a prudente convicção do tribunal não ofende qualquer preceito ou princípio constitucional.
2º- Termos em que improcede manifestamente o presente recurso'.
3. Corridos os vistos legais, cumpre, então, apreciar e decidir.
II- Fundamentos.
4. Resulta dos autos que se questiona a inconstitucionalidade da norma do artigo 127º do Código de Processo Penal - norma segundo a qual 'salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente' -, com o sentido 'de que
é possível dar-se como provado um determinado facto, sem que da fundamentação de um acórdão resulte a indicação do juízo probatório que levou a essa conclusão'.
Sucede, porém, que a norma impugnada não foi aplicada com esse sentido - o que, só por si, determina a falta de um dos requisitos do recurso de constitucionalidade (a existência de uma possível interpretação inconstitucional de uma norma não pode fundar o recurso, quando essa interpretação não tiver sido a adoptada na decisão recorrida). E não foi aplicada com o referido sentido, desde logo por que o sentido que lhe é atribuído só poderia ser imputado a outra norma: a do nº 2 do artigo 374º do Código Processo Penal (naturalmente com o entendimento de que o que nela se impõe é insuficiente para consubstanciar as garantias constitucionais de defesa do arguido - e não com o sentido de o acórdão recorrido ter violado o disposto naquela norma, já que isso não competiria a este Tribunal apreciar).
A não aplicação pelo acórdão recorrido da norma do artigo 127º do Código de Processo Penal com o sentido que lhe foi atribuído pela recorrente ressalta claramente do seguinte trecho do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Novembro de 1995:
'Chegados a este ponto, cabe dizer (porque a recorrente alega a inconstitucionalidade do artº 127º C.P.P.) que essa inconstitucionalidade só pode existir na mente de quem advogar a existência de juízes amorfos, desprovidos de cultura, inteligência e probidade, incapazes de descobrir no facto directamente perceptível o seu significado oculto ou capazes de,
por mero jogo arbitrário dos dados lançados ou das impressões difusas geradas no seu espírito, extrair uma conclusão não contida nas premissas.
O juiz que o legislador pressupõe não é esse, nem no artigo 32º, nº
1 da C.R.P., nem no artigo 127º C.P.P., mas sim o juiz responsável, livre, capaz de pôr o melhor da sua inteligência e do conhecimento das realidades da vida e da sua cultura na apreciação do material probatório que lhe é fornecido.
Sendo essa uma garantia da defesa de qualquer acusado (artº 32º, nº1 C.R.P.), ela só entrará em crise quando seja manifesto que o juízo do tribunal contrariou as regras da experiência ou atropelou a lógica intrínseca dos fenómenos da vida.
Não é esse, claramente, o caso dos autos, sendo descabido afirmar-se que a interpretação que o tribunal recorrido fez do art. 127º C.P.P. viola o art. 32º, nº 1 C.R.P.'.
5. Assim, uma vez que a norma indicada como objecto do presente recurso de constitucionalidade não foi aplicada com o sentido que lhe atribui a recorrente, não pode o Tribunal Constitucional dele conhecer. E não pode também conhecer da questão de constitucionalidade da norma do nº 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal - norma à qual poderia ter sido imputado o sentido referido a propósito da norma do artigo 127º do Código de Processo Penal -, porque, para além de não ter sido suscitada 'durante o processo', não foi indicada no requerimento de interposição do recurso como fazendo parte do seu objecto.
Com efeito, como tem acentuado o Tribunal Constitucional, as indicações exigidas pelo artigo 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional aos recorrentes (entre as quais se inclui a da norma cuja inconstitucionalidade se quer ver apreciada por este) não impõem 'um simples dever de colaboração com o Tribunal', mas sim 'um requisito formal de conhecimento do recurso' (cfr.o Acórdão nº 462/94, publicado no Diário da República, II Série, de 21 de Novembro de 1994).
Há, assim, que concluir pelo não conhecimento do presente recurso de constitucionalidade.
III - Decisão.
6. Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se não tomar conhecimento do recurso, condenando-se a recorrente em custas, fixando-se a taxa de justiça em Unidades de Conta.
Lisboa, 11 de Março de 1997 Fernando Alves Correia Guilherme da Fonseca Bravo Serra José de Sousa e Brito Messias Bento Luis Nunes de Almeida