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Proc. nº 96/96
1ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. A. e B., arguidos nos presentes autos, recorreram para o Tribunal da Relação de Coimbra do despacho do Juiz de Instrução Criminal de Aveiro que indeferiu a arguição de irregularidade da decisão instrutória que, tendo apenas valorado e apreciado a prova quanto aos factos pelos quais vinham acusados os arguidos que requereram a abertura da instrução, decidiu que '... o despacho de pronúncia incidirá sobre toda a matéria fáctica constante da acusação, limitando-se o juiz de instrução a verter para aquele despacho os factos sobre os quais não incidiu a sua actividade investigatória - factos imputados aos arguidos que não requereram a abertura da instrução - sem prejuízo, no entanto, do poder de fiscalização conferido ao juiz de julgamento pelo artigo 311º, nº 2, alínea a), do Código de Processo Penal'.
Os recorrentes sustentaram que, havendo instrução, é ao juiz respectivo e não ao juiz do julgamento que compete apreciar, em relação a todos os arguidos - e não só aos que requereram a instrução -, se foram recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança.
Na sua resposta, o Ministério Público sustentou que deveria ser negado provimento ao recurso por entender que a decisão instrutória deve versar apenas matéria relativamente à qual se requereu a abertura de instrução. E já no Tribunal da Relação de Coimbra, o Ministério Público suscitou ainda a questão do regime de subida do recurso, propugnando que lhe fosse atribuído o regime de subida diferida - e não imediata, como decidira o juiz a quo.
2. Por acórdão de 9 de Maio de 1990, o Tribunal da Relação de Coimbra concedeu provimento ao recurso, tendo, em consequência, julgado inválida a decisão instrutória em relação aos recorrentes, bem como os termos subsequentes do processo que a irregularidade pudesse afectar.
Neste acórdão, entendeu-se que '... quer haja um só arguido, quer haja vários, havendo instrução, o respectivo juiz proferirá despacho de pronúncia ou de não pronúncia que valerá como tal em relação a todos os arguidos. No caso de ter havido instrução e desde que a decisão instrutória seja no sentido de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, ao juiz de julgamento apenas lhe compete designar a data para a audiência, não podendo rejeitar a acusação por a considerar manifestamente infundada'. E, por conseguinte, concluiu-se que o juiz de instrução, '... ao proferir a decisão instrutória deveria ponderar, em relação a todos os acusados - e, consequentemente, também em relação aos arguidos A. e B. - se a acusação era fundada ou manifestamente infundada, devendo rejeitá-la neste último caso, sem relegar essa fiscalização para o juiz do julgamento.'
3. O Ministério Público interpôs recurso extraordinário de fixação de jurisprudência do acórdão de 9 de Maio de 1990, em virtude de existir oposição entre a decisão tomada no acórdão recorrido e a decisão constante do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 18 de Abril de 1990, pois no acórdão fundamento entendeu-se o seguinte: 'se houver mais de um arguido, o processo é remetido ao juiz de instrução para a realização das diligências que forem pedidas pelos requerentes da instrução e, oportunamente, ao juiz do julgamento para aceitação ou rejeição da acusação, quanto aos não requerentes. Depois, designar-se-á data para a audiência.'
Admitido o recurso para fixação de jurisprudência, por acórdão preliminar de 19 de Setembro de 1991, o Ministério Público apresentou alegações sustentando que a interpretação dada pelo acórdão recorrido aos artigos 286º, nº 1, 308º, nº 3, e 311º do Código de Processo Penal, no sentido de a instrução e a pronúncia abrangerem toda a acusação e todos os arguidos
(incluindo os não requerentes da abertura da instrução),
é violadora das garantias de defesa dos arguidos não requerentes (artigo 32º, nº
1, da Constituição).
4. O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 19 de Outubro de 1995, fixou a seguinte jurisprudência obrigatória:
'Requerida a instrução por um só ou por alguns dos arguidos abrangidos por uma acusação, os efeitos daquela estendem-se aos restantes que por ela possam ser afectados, mesmo que a não tenham requerido.
A final, a decisão instrutória que vier a ser proferida, deve abranger todos os arguidos constantes da referida acusação, por não haver lugar, neste caso, à aplicação posterior do nº 2 do artigo 311º do Código do Processo Penal'.
Em consequência, foi confirmado o acórdão recorrido.
5. O Ministério Público interpôs, ao abrigo do disposto nos artigos 280º, nº 1, alínea b), da Constituição e 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, recurso de constitucionalidade do acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória, para apreciação da conformidade à Constituição das normas contidas nos artigos 286º, nºs 1 e 2, 287º, nºs 1, alínea c), e 3, 288º, nº 4, 289º, 298º, 307º, nº 1, 308º, nº 1 e 311º, nº 2, do Código de Processo Penal, interpretadas de modo a concluir que, '... acusados vários arguidos, requerida a instrução para um ou alguns, tal requerimento afecta os não requerentes acusados de crimes autónomos, sendo-lhes aplicável a fase de instrução, 'maxime', sendo abrangidos pela decisão
instrutória, sem que lhes seja aplicável o regime do artigo 311º, nº 2, do Código de Processo Penal'.
Só o Ministério Público apresentou alegações, que concluiu do seguinte modo:
'As normas constantes dos artigos 286º, nºs 1 e 2, 287º, nºs
1, alínea c), e 3, 288º, nº 4, 289º, 298º, 307º, nº 1, 308º, nº 1, e 311º, nº 2, do Código de Processo Penal, interpretadas no sentido de que, acusados vários arguidos, e requerida a instrução para um ou alguns, tal requerimento afecta os não requerentes acusados de crimes autónomos, sendo abrangidos pela instrução e pela respectiva decisão instrutória, sem que lhes seja aplicável o regime do artigo 311º, nº 2, do Código de Processo Penal, enfermam de inconstitucionalidade material, por violação das garantias de defesa consagradas no artigo 32º da Constituição.'
6. Corridos os vistos, cumpre decidir. II Fundamentação
A O objecto do recurso
7. O presente recurso vem de um acórdão de fixação de jurisprudência emitido pelo Supremo Tribunal de Justiça, ao abrigo do disposto nos artigos 437º e seguintes do Código de Processo Penal. Tal acórdão não só tem eficácia no processo em que o recurso (para a fixação de jurisprudência) foi interposto, como constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais (artigo 445º, nº 1, do Código de Processo Penal).
Poderia colocar-se, desde logo, a questão de saber se a questão de constitucionalidade suscitada se não refere directamente ao próprio acórdão de fixação de jurisprudência - e não às normas legais por ele interpretadas e aplicadas - e se tal acórdão é passível de controlo de constitucionalidade (isto é, se constitui uma norma de acordo com o conceito funcional que tem vindo a ser adoptado pelo Tribunal Constitucional - cf., neste sentido, os Acórdãos 80/96, D.R., I Série, de 9 de Junho de 1986; 157/88, D.R., I Série, de 26 de Julho de 1988; 168/88, D.R., IB Série, de 11 de Outubro de
1988; 150/86, D.R., II Série, de 26 de Julho de 1986; 172/93, D.R., II Série, de
18 de Junho de 1993; 214/94, D.R., II Série, de 19 de Julho de 1994).
8. Contudo, esta questão não possui qualquer relevância, no caso sub judicio. Na verdade, o acórdão de fixação de jurisprudência proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 19 de Outubro de 1995 não foi utilizado, no caso vertente, como eventual 'fonte normativa'.
Assim, mesmo admitindo-se que o acórdão de fixação de jurisprudência constitui norma, numa perspectiva funcional, para efeito de fiscalização de constitucionalidade, não é ele que está em causa no presente processo (cf., em sentido idêntico, o Acórdão nº 279/95, D.R., II Série, de 28 de Julho de 1995).
Aquilo que constitui objecto deste recurso - e cuja constitucionalidade o Ministério Público questiona - é a interpretação intraprocessual dada numa decisão do Supremo Tribunal de Justiça a normas constantes do Código de Processo Penal: artigos 286º, nºs 1 e 2, 287º, nºs 1, alínea a), e 3, 288º, nº 4, 289º, 307º, nº 1, 308º, nº 1, e 311º, nº 2.
9. O Tribunal entendeu que a questão de constitucionalidade foi suscitada durante o processo, na medida em que foi invocada antes de proferida a decisão recorrida, sendo irrelevante a circunstância de se estar perante um recurso qualificado por lei como extraordinário. A maioria do Tribunal (sem a concordância da ora relatora) entendeu que o Supremo Tribunal de Justiça ao decidir o recurso podia e devia conhecer a questão de constitucionalidade.
B A questão de constitucionalidade suscitada
10. Pela interpretação que dá às normas em crise, o Supremo Tribunal de Justiça entende que os efeitos da instrução requerida por um só ou por vários arguidos se estendem a outro ou a outros e que a respectiva decisão instrutória a todos abrange. O Ministério Público reputa de inconstitucional esta interpretação por ela obstar à posterior aplicação da alínea a) do nº 2 do artigo 311º do Código de Processo Penal - rejeição de acusação manifestamente infundada pelo juiz do julgamento - e, por conseguinte, violar as garantias de defesa (artigo 32º, nº 1, da Constituição).
De acordo com o entendimento do Ministério Público, a instrução aberta a pedido da defesa jamais poderá abranger um arguido que a não haja requerido. A ausência de requerimento de abertura de instrução será interpretável como escolha de uma estratégia de defesa que aposta, precisamente, na possibilidade de a acusação ser rejeitada por se afigurar manifestamente infundada.
Assim, segundo a interpretação alegadamente conforme à Constituição, a decisão instrutória (de pronúncia ou mesmo, porventura, de não pronúncia) não poderia apreciar a acusação deduzida contra arguido diverso do que requereu a abertura da instrução. Tal apreciação estaria forçosamente reservada ao juiz do julgamento.
11. No sistema processual penal português, a instrução assume hoje - e após a entrada em vigor do Código de 1997 - um carácter puramente facultativo e não pode ter lugar nas formas de processo sumária e sumaríssima
(artigo 286º, nº 2): em processo comum, ela pode ser requerida pelo assistente como modo de reacção a um despacho de arquivamento do Ministério Público, nos casos de crime público e sempúblico [artigos 277º e 287º, nº 1, alínea a)]; pode ainda ser requerida pelo assistente que pretenda promover uma alteração substancial dos factos constantes da acusação do Ministério Público (artigos
284º, nº 1 e 287º, nº 1, alínea a)]; e pode, finalmente, ser requerida pelo arguido que pretenda obter um despacho de não pronúncia - total ou parcial
[artigo 287º, nº 1, alínea b)] - (cf. Germano Marques da Silva,
Do Processo Penal Preliminar, 1990, p. 258 e ss.).
O direito (potestativo) de o arguido requerer a abertura de instrução pressupõe, obviamente, um interesse juridicamente relevante na não realização do julgamento. Para além do efeito sociológico estigmatizante da audiência, que a proclamação da presunção de inocência não ilide, a continuação do processo implica a possibilidade de aplicação de medidas de coacção e de garantia patrimonial, que envolvem, pela sua natureza, restrições ou privações de direitos fundamentais do arguido.
Todavia, a não obrigatoriedade da instrução explica-se à luz de um desígnio de celeridade processual, que a Constituição associa à própria presunção de inocência (artigo 32º, nº 2). Apenas é exigível, na perspectiva das garantias de defesa do arguido, que este possa optar pela realização de instrução e que, mesmo não havendo instrução, os actos atinentes aos seus direitos fundamentais sejam da competência exclusiva de um juiz (artigo 32º, nº
4, da Constituição) - (cf. Figueiredo Dias, A Revisão Constitucional, o Processo Penal e os Tribunais, 1981, p. 83 e ss., e Acórdão do Tribunal Constitucional nº
7/87, D.R., I Série, de 9 de Fevereiro de 1987).
12. Neste sistema, descrito perfunctoriamente, o arguido que não requeira a instrução pode ser afectado pelo arguido que a requeira, na medida em que fica prejudicado, desde logo, um seu eventual desígnio de celeridade processual. A realização de
instrução atrasará, inexoravelmente, a marcha do processo, dilatando o período de aplicação de medidas de coacção e de garantia patrimonial. Porém, este prejuízo pode ser eliminado mediante a separação de processos, prevista, precisamente no interesse do arguido, nas alíneas a) e c) do nº 1 do artigo 30º do Código Penal. Ora, no caso vertente, o arguido não se quis prevalecer de tal faculdade.
Por outro lado o co-arguido que não requereu a instrução seria igualmente prejudicado se a instrução aberta por iniciativa de outro co-arguido pudesse determinar uma alteração substancial dos factos de que é acusado. Se assim fosse, estariam em causa as garantias de defesa e o princípio do contraditório, que a Constituição estende aos 'actos instrutórios que a lei determinar' (artigo 32º, nº 5) e o Código de Processo Penal contempla expressamente no âmbito do debate instrutório (artigo 298º). Contudo, esta possibilidade é arredada pelo regime de fixação do objecto do processo (e, na realidade, não se concretizou no caso sub judicio).
Com efeito, nos termos do nº 1 do artigo 309º do Código de Processo Penal, a decisão instrutória não pode, sob pena de nulidade, acarretar uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou no requerimento para abertura da instrução. Deste modo, se um arguido requerer a abertura de instrução, apenas se pode seguir a sua não pronúncia (total ou parcial) ou uma pronúncia que não exceda a acusação anteriormente formulada contra si pelo Ministério Público ou pelo assistente. Mas nunca poderá haver uma alteração substancial dos factos imputados a um outro arguido.
13. Colocada a questão nestes termos, subsiste apenas uma pergunta crucial: a decisão instrutória pode estender-se a um arguido que não requereu a abertura de instrução, sem promover uma alteração substancial dos factos que lhe foram imputados na acusação?
Uma resposta puramente negativa a esta pergunta seria incompatível com o princípio da economia processual e poderia prejudicar, sem qualquer justificação razoável, o próprio arguido que não requereu a instrução. Na verdade, se no decorrer da instrução se verificar, por exemplo, que nem sequer foi cometido o crime imputado a dois co-autores, nada justifica que se passe ao julgamento de um deles, a pretexto de ele não ter requerido a abertura da instrução. Um tal julgamento seria inexplicável ante os princípios constitucionais de processo penal.
Mas a questão que agora se coloca é diversa: pode o juiz de instrução fora daquela hipótese de não pronúncia, que seguramente não viola as garantias de defesa, antecipar-se ao juiz do julgamento no saneamento do processo e receber a acusação deduzida contra arguido que não requereu a abertura de instrução, não a rejeitando por não a considerar manifestamente infundada?
14. Em termos gerais a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (artigo 286º, nº 1, do Código de Processo Penal). É ao juiz de instrução
que o legislador ordinário atribui, em primeira linha, competência funcional para exercer as funções jurisdicionais relativas ao inquérito (artigo 18º).
Neste contexto, a competência atribuída ao juiz do julgamento para proceder ao saneamento do processo configura-se como meramente residual e encontra a sua justificação precípua no carácter facultativo da instrução (cf. o nº 2 do artigo 311º do Código de Processo Penal). O juiz do julgamento só tem competência para rejeitar a acusação na justa medida em que o órgão jurisdicional normalmente competente para o efeito não haja tido oportunidade de o fazer.
Desta sorte, não se vislumbra que alguma garantia de defesa seja postergada por o juiz de instrução apreciar o carácter manifestamente infundado ou não manifestamente infundado da acusação e, em consonância com a apreciação que fizer, pronunciar ou não pronunciar o arguido que não requereu a abertura da instrução. Existe, de todo o modo, um controlo jurisdicional da acusação, tendente a evitar que seja submetida a julgamento pessoa contra a qual foi deduzida acusação manifestamente infundada.
15. As garantias de defesa apenas seriam afectadas se o debate instrutório abrangesse, sem exercício de contraditório, um arguido que não requereu a abertura da instrução ou se esta acarretasse uma alteração substancial dos factos que lhe são imputados na acusação. Ora, nada disto se verificou no caso dos presentes autos, nem decorre da interpretação dada às normas em crise pelo acórdão impugnado. O aresto do Supremo Tribunal de Justiça limita-se a concluir que os efeitos da instrução requerida por um só ou por vários arguidos se estendem a outro arguidos e concretiza esses efeitos ao nível da decisão instrutória.
Também se poderia questionar a constitucionalidade de uma interpretação segundo a qual o juiz de instrução recebesse, passivamente, a acusação deduzida contra arguido que não requereu a abertura de instrução. A ser assim, tal arguido ver-se-ia privado de qualquer controlo judicial do inquérito e da acusação (que não poderia ser rejeitada no caso de ser manifestamente infundada). Porém, esta interpretação, que, como se viu, foi acolhida pelo tribunal de primeira instância, foi afastada pelo Tribunal da Relação de Coimbra, que concluiu que o juiz de instrução deveria ponderar se a acusação era fundada. E o Supremo Tribunal de Justiça sufragou esta última interpretação no acórdão de uniformização de jurisprudência ora recorrido.
Ao Tribunal Constitucional não compete, naturalmente, apreciar a correcção da interpretação normativa propugnada pelo Supremo Tribunal de Justiça ao nível infraconstitucional. Cabe-lhe, exclusivamente, ponderar se tal interpretação viola as garantias de defesa do arguido consagradas no artigo
32º, nº 1 da Constituição, ou quaisquer outros princípios ou normas constitucionais (cf. artigo 79º-C da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, aditado pela Lei nº 85/89, de 7 de Setembro). Ora, pelas razões anteriormente expendidas, conclui-se pela negativa. Consequentemente, deve negar-se provimento ao recurso e confirmar-se o acórdão recorrido na parte respeitante à questão de constitucionalidade suscitada.
III Decisão
15. Ante o exposto, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não julgar inconstitucionais as normas constantes dos artigos 286º, nºs 1 e 2, 287º, nºs 1, alínea a), e 3, 288º, nº 4, 289º, 307º. nº
1, e 311º, nº 2, do Código de Processo Penal, quando interpretadas de forma a concluir que os efeitos da instrução requerida apenas por um só ou por vários arguidos se estendem a outro ou a outros arguidos e que a respectiva decisão instrutória abrange todos eles;
b) Negar provimento ao recurso;
c) Confirmar o acórdão recorrido na parte respeitante à questão de constitucionalidade suscitada.
Lisboa, 12 de Março de 1997 Maria Fernanda Palma (com declaração de voto) Vítor Nunes de Almeida Armindo Ribeiro Mendes Alberto Tavares da Costa Maria da Assunção Esteves Antero Alves Monteiro Diniz (vencido, nos termos da declaração de voto junta).
Declaração de voto
Tendo sustentado a solução que obteve vencimento no presente acórdão quanto à questão de constitucionalidade suscitada - e não tendo, por isso, deixado de ser relatora do processo -, entendo que não se deveria ter tomado conhecimento do recurso pelas seguintes razões:
1ª. De acordo com a jurisprudência uniforme e reiterada do Tribunal Constitucional, o recurso previsto no artigo 280º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional tem como pressuposto a arguição da questão de constitucionalidade normativa de modo processualmente adequado. E tem-se entendido que a questão de constitucionalidade não é suscitada de modo processualmente adequado quando o tribunal que aplicou a norma sindicada não pôde pronunciar-se sobre aquela questão (cf. os Acórdãos nºs 337/94, D.R., II Série, de 4 de Novembro de 1994; e 155/95, D.R., II Série, de 20 de Junho de
1995).
Ora, no caso dos autos, o Tribunal da Relação de Coimbra, que, em sede de recurso, aplicou as normas sindicadas segundo uma interpretação alegadamente inconstitucional, não foi confrontado com a questão de constitucionalidade e não a pôde apreciar. Assim, falta o pressuposto do recurso de constitucionalidade precedentemente identificado.
2ª. É certo que o Tribunal Constitucional tem igualmente entendido que a questão de constitucionalidade pode vir a ser colocada já após a prolação da decisão judicial impugnada, quanto esta aplicou de forma inesperada e surpreendente - isto é, com que o recorrente não poderia razoavelmente contar
- a norma cuja inconstitucionalidade se invoca (cf. os Acórdãos nºs 136/85 e
94/88, D.R., II Série, de 28 de Janeiro de 1986 e 22 de Agosto de 1988, respectivamente).
Todavia, não foi isso que sucedeu no caso vertente. Na verdade, o Tribunal da Relação de Coimbra, antes de prolatar o acórdão de 9 de Maio de
1990, foi confrontado com duas possibilidades interpretativas, relativamente às normas agora impugnadas: a primeira, sufragada pelo juiz a quo, inclinava-se para uma visão restritiva do despacho de pronúncia, nos termos do qual este não poderia fiscalizar a acusação na parte referente a arguidos que não haviam requerido a instrução; a segunda, propugnada pelos recorrentes, considerava que o despacho de pronúncia deveria ponderar a existência de indícios suficientes para a dedução da acusação relativamente a todos os arguidos.
A última interpretação foi dada a conhecer ao Ministério Público, que teve oportunidade de se pronunciar sobre ela logo na resposta ao requerimento de interposição do recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra e, já perante este Tribunal, quando emitiu visto. Contudo, o Ministério Público não suscitou em nenhuma destas ocasiões qualquer questão de constitucionalidade.
Assim, o acórdão de 9 de Maio de 1990 do Tribunal da Relação de Coimbra não procedeu a nenhuma aplicação normativa inesperada ou surpreendente. Confrontado com duas possibilidades de interpretação, optou por uma delas - por aquele que o Ministério Público considerava incorrecta, mas cuja constitucionalidade não pôs em causa e não impugnou, mediante a interposição de recurso de constitucionalidade.
3ª. Só após o trânsito em julgado do acórdão de 9 de Maio de
1990 do Tribunal da Relação de Coimbra o Ministério Público interpôs recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, ao abrigo do artigo 438º do Código de Processo Penal. Ora, este recurso é classificado como extraordinário pelo próprio Código de Processo Penal (cf. epígrafe do Título II do Livro VIII), pressupõe o trânsito em julgado do acórdão impugnado (cf. artigo 438º, nº 1) e tem a finalidade declarada de resolver um conflito resultante de soluções jurídicas opostas, servindo de precedente para decisões judiciais futuras (cf. artigos 437º, nº 1, e 445º, nº 1; ver sobre a natureza deste recurso Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, 1994, p. 353 e ss.; Manuel Simas Santos e outros, Código de Processo Penal Anotado, 2º vol., 1996, p. 654 e ss.). Deste modo, deve concluir-se que o Ministério Público não suscitou a questão de constitucionalidade de modo processualmente adequado: só o fez após o trânsito em julgado do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra que procedeu à interpretação normativa reputada de inconstitucional e no âmbito das alegações do recurso extraordinário de fixação de jurisprudência. Por isso, não se deverá tomar conhecimento do objecto do presente recurso de constitucionalidade (cf., sobre situação análoga em que apenas se suscitou a questão de constitucionalidade no recurso por oposição de julgados interposto perante o Supremo Tribunal de Justiça, entre outros, o Acórdão nº 367/96, D.R., II Série, de 10 de Maio de 1996). Maria Fernanda Palma.
Declaração de Voto
1 - A linha argumentativa do acórdão, no essencial, desenvolveu-se a partir das proposições que podem assim ser sintetizadas:
'a) O direito (potestativo) de o arguido requerer a abertura de instrução pressupõe um interesse juridicamente relevante na não realização do julgamento;
b) Todavia, a não obrigatoriedade da instrução explica-se à luz de um desígnio de celeridade processual, que a Constituição associa à própria presunção de inocência;
c) Porém, o desígnio de celeridade processual do arguido que não requeira a instrução, não resulta afectado pelo facto de um outro arguido a haver requerido, porquanto se poderá então prevalecer da separação de processos, prevista nas alíneas a) e c) do artigo 30º do Código de Processo Penal;
d) Por outro lado, a circunstância de um arguido não ter requerido a instrução e um outro haver actuado em sentido contrário não acarreta para aquele, por expressa proibição decorrente do artigo 309º, nº 1, do Código de Processo Penal, o perigo de se verificar na decisão instrutória uma alteração substancial dos factos descritos na acusação, caso em que se geraria a sua nulidade.
E, dadas por adquiridas estas premissas, atingiu-se então o ponto crucial da questão a decidir, formulando-se a interrogativa seguinte:
'Pode o juiz de instrução fora daquela hipótese de não pronúncia, que seguramente não viola as garantias de defesa, antecipar-se ao juiz do julgamento no saneamento do processo e receber a acusação deduzida contra o arguido que não requereu a abertura de instrução, não a rejeitando por não a considerar manifestamente infundada?'
Respondeu-se assim:
'(...) a competência atribuída ao juiz do julgamento para proceder ao saneamento do processo configura-se como meramente residual e encontra a sua justificação precípua no carácter facultativo da instrução (cfr. o nº 2 do artigo 311º do Código de Processo Penal). O juiz do julgamento só tem competência para rejeitar a acusação na justa medida em que o órgão jurisdicional normalmente competente para o efeito não haja tido oportunidade de o fazer.
Desta sorte, não se vislumbra que alguma garantia de defesa seja postergada por o juiz de instrução apreciar o carácter manifestamente infundado ou não manifestamente infundado da acusação e, em consonância com a apreciação que fizer, pronunciar ou não pronunciar o arguido que não requereu a abertura da instrução. Existe, de todo o modo, um controlo jurisdicional da acusação, tendente a evitar que seja submetida a julgamento pessoa contra a qual foi deduzida acusação manifestamente infundada'.
E, culminando a defesa deste entendimento, acentuou-se por fim que 'as garantias de defesa apenas seriam afectadas se o debate instrutório abrangesse, sem exercício de contraditório, um arguido que não requereu a abertura da instrução ou se esta acarretasse uma alteração substancial dos factos que lhe são imputados na acusação'.
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2 - A construção estrutural em que assim se fundou o julgamento de não inconstitucionalidade das normas impugnadas pelo Ministério Público, desconsiderou um outro e específico enfoque jurídico-constitucional da questão que, no entendimento do signatário da presente declaração de voto, haveria de reclamar uma decisão de inconstitucionalidade daquelas normas.
Vejamos porquê.
Como resulta do texto da lei e é por demais consabido, a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento, tem carácter facultativo, há-de ser requerida pelo arguido ou pelo assistente (no caso deste último apenas quando se mostrem verificados certos pressupostos), é dirigida por um juiz de instrução assistido pelos órgãos de polícia criminal, sendo o seu conteúdo formado pelo conjunto dos actos de instrução que o juiz entenda dever levar a cabo e, obrigatoriamente, por um debate instrutório, oral e contraditório, no qual podem participar o Ministério Público, o arguido, o defensor, o assistente e o seu advogado, mas não as partes civis.
Encerrado o debate instrutório o juiz, no caso de terem sido recolhidos indícios suficientes sobre a verificação dos pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, profere despacho de pronúncia, sendo que, no caso contrário, haverá de emitir um julgado de não pronúncia (Cfr. os artigos 286º a 289º e 307º e 308º do Código de Processo Penal).
Contrariamente, se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente do tribunal despacha no sentido (a) de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;
(b) de não aceitar a acusação do assistente na parte em que ela representa uma alteração substancial da acusação do Ministério Público, nos termos do artigo
284º, nº 1 (Cfr. artigo 311º do Código de Processo Penal).
Ora, e aqui se situa o verdadeiro punctum saliens da questão de constitucionalidade proposta à sindicância deste Tribunal, será que pode afirmar-se, no plano dos direitos do arguido e das suas garantias de defesa, a existência de uma qualquer distinção (seja de grau, de dimensão ou de natureza) entre o despacho de pronúncia proferido nos termos do artigo 308º pelo juiz de instrução e o despacho que, recebendo a acusação, designa dia e hora para julgamento, proferido pelo juiz de julgamento nos termos dos artigos 311º a
313º, todos do Código de Processo Penal?
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3 - Tem-se por seguro que o grau de indiciação requerido pelo despacho de pronúncia se apresenta, por decorrência do próprio quadro normativo que rege a instrução, como mais exigente do que a indiciação dos pressupostos da punibilidade susceptíveis de conduzir à rejeição da acusação, quando considerada manifestamente infundada.
A este mesmo respeito, Germano Marques da Silva, Do Processo Penal Preliminar, Lisboa, 1990, (pp. 359 a 361) teve ensejo de escrever assim:
'O art. 331º/2/a) dispõe, com efeito, que se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada.
A expressão manifestamente infundada, usada no artº 311º, respeita à indiciação dos pressupostos da punibilidade, como resulta da comparação entre o nº 1 e o nº 2 do artº 311º.
Da comparação entre as normas dos artºs 311/2 e 308º/1 resulta que enquanto para a não-pronúncia bastará que a indiciação não seja suficiente, no sentido de que dela não resulte uma possibilidade razoável, isto é, mais positiva do que negativa, quanto à eventual condenação do arguido, o artº 311º exige que seja manifesta a improcedência da acusação, que dos autos resulte evidente a falta de fundamento da acusação.
Mas tem-se vindo já a entender que o artº 311º/2/a) impede mesmo um juízo de indiciação, um juízo crítico sobre os indícios de responsabilidade recolhidos nos autos. Não é defensável esta interpretação.
Não é defensável tal opinião face mesmo é letra do artº 311º/2/a). Algum juízo de apreciação sobre os indícios há-de existir sempre para que o juiz possa considerar ou não manifestamente infundada a acusação deduzida. Nem sequer o preceito limita os fundamentos da rejeição, como sucedia no artº 389º do CP/29, na redacção que lhe foi dada pelo DL 605/75.
Cremos que a distinção reside nos meios de convicção de que dispõe o juiz. Enquanto na instrução ele próprio pode ordenar diligências de investigação para seu melhor esclarecimento, no âmbito do artº 311º terá de formar a sua convicção apenas com o material probatório recolhido no inquérito, não podendo, por isso, tentar esclarecer as dúvidas que os autos lhe suscitem'.
E logo a seguir:
'Há um grande grau de ilogismo na solução encontrada para o artº
311º.
Parece que o legislador quis fugir à crítica frequente entre nós, no domínio da legislação anterior, de o despacho de pronúncia ou equivalente ser proferido pelo juiz competente para o julgamento, mas não cuidou que o despacho de pronúncia ou de recebimento da acusação não tem no novo Código a importância que assumia na legislação revogada e que o despacho de não-pronúncia não tem também os mesmos efeitos que tinha naquela legislação, nomeadamente os decorrentes dos artºs 148º e 149º.
Vai suceder agora que não se podendo recusar a acusação com fundamento em indiciação insuficiente, quando não tenha havido instrução, muito provavelmente crescerão as absolvições por insuficiência de prova para a condenação, absolvições que terão o efeito de caso julgado material, enquanto os despachos de não-pronúncia, com o fundamento em indiciação insuficiente, não terão o mesmo efeito. Será como que um prémio para o arguido por não requerer a fase da instrução.' (Sublinhados acrescentados).
Mas, e paradoxalmente, a exigência de um qualificado grau de indiciação no despacho de pronúncia, traduzindo-se embora num acréscimo de garantias de defesa do arguido que requereu a instrução, poderá militar em desfavor daquele outro, cuja estratégia de defesa - por não acalentar, porventura, grandes expectativas em relação a um possível despacho de não pronúncia - passa por uma imediata sujeição a julgamento.
E por duas ordens de razões:
Primeiramente, porque a prova a produzir em sua defesa, não passando pela intermediação do juiz de instrução pode ser apresentada na audiência de julgamento como prova inicial, não submetida anteriormente a juízos de avaliação que, de um modo ou de outro, lhe retiram ou podem retirar o sentido de impacto e de surpresa que através dela se pretenda alcançar no julgamento.
Em segundo lugar, porque o despacho de pronúncia proferido pelo juiz de instrução traduz-se, indubitavelmente, em relação ao juízo de indiciação constante da acusação do Ministério Público, numa acrescida onerosidade para o arguido,
que poderá, eventualmente, funcionar a seu desfavor no decurso do julgamento.
Com efeito, o juízo de indiciação que suportou o despacho de pronúncia contém, em relação à acusação do Ministério Público, não só por ser proferido por um juiz, mas também pelas próprias garantias processuais de que se revestem os actos de instrução e o debate instrutório, um outro e qualificado significado.
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4 - A Constituição, no artigo 32º, nº 1, consagra que o processo criminal assegurará todas as garantias de defesa, tendo-se entendido que neste preceito se contém uma claúsula geral englobadora de todas as garantias que hajam de decorrer do princípio da protecção global e completa dos direitos de defesa do arguido em processo criminal.
No ensino de Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, p. 202, a locução 'todas as garantias de defesa' 'engloba indubitavelmente todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação. Dada a radical desigualdade material de partida entre a acusação
(normalmente apoiada no poder institucional do Estado) e a defesa, só a compensação desta, mediante específicas garantias, pode atenuar essa desigualdade de armas. Este preceito pode portanto ser fonte autónoma de garantias de defesa. Em suma, a 'orientação para a defesa' do processo penal revela que ele não pode ser neutro em relação aos direitos fundamentais (um processo em si, alheio aos direitos do arguido), antes tem neles um limite infrangível.'
Ora, tendo em atenção o carácter facultativo da instrução e admitida sem reservas nem derivativos processuais o direito de o arguido orientar em plenitude a sua defesa (e toda a estratégia que lhe subjaz), considera-se que a sua sujeição a uma instrução por ele indesejada (por não requerida) e ao consequente juízo de indiciação (juízo de pronúncia) por parte do juiz de instrução, se traduz na ofensa a um direito constitucionalmente tutelado e inscrito no elenco das garantias de defesa consagrado no artigo 32º da Constituição.
Se o arguido, depois de acusado pelo Ministério Público, pretende logo ser presente ao juiz de julgamento não pode, contra sua vontade, e por decorrência da garantia constitucional que lhe assiste, ser levado à presença do juiz de instrução!
Refira-se, como remate das sumárias considerações deixadas expostas, que, uma das proposições invocadas pelo acórdão - a separação dos processos - da qual resultaria, além do mais, o afastamento da perda de celeridade processual, não se revela probante (ao menos totalmente) pois que, como bem se
extrai do artigo 30º do Código de Processo Penal o seu quadro aplicativo não cobre a generalidade das situações, contemplando apenas hipóteses bem específicas e contadas.
Lisboa, 12 de Março de 1997 Antero Alves Monteiro Diniz