Imprimir acórdão
Procº nº 1006/98
2ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
I
1. Por despacho do Juiz do 3º Juízo Criminal do Tribunal de comarca de Almada, e porque foi entendido manterem-se os pressupostos de facto e de direito que conduziram à imposição da medida de coacção de prisão preventiva ao arguido F..., foi determinado que o mesmo continuasse a aguardar os ulteriores termos dos autos sujeito àquela medida.
Nesse mesmo despacho considerou-se dispensável a audição do arguido, invocando-se, para tanto, a disposição constante do nº 2 do artº 213º do Código de Processo Penal (redacção anterior à conferida pela Lei nº 59/98, de 25 de Agosto) e o facto de o arguido, nestes autos, ter, entretanto, sido condenado na pena de seis anos e seis meses de prisão por acórdão, conquanto não transitado, proferido pelo tribunal colectivo do Círculo Judicial de Almada.
Não se conformando com o assim decidido, recorreu o arguido para o Tribunal da Relação de Lisboa, apresentando, na respectiva motivação, as seguintes «conclusões»:-
'1. O douto despacho recorrido, ao 'dispensar' a audição do arguido violou o disposto no art.º 213º nº 2 do CPP.
2. O douto despacho recorrido não procedeu a qualquer reexame da subsistência dos pressupostos da prisão, apenas decidiu mantê-la, pelo que não cumpriu (com o devido respeito) com rigor desejável, o constante do art.º 213º nº 1 do CPP, mas apenas a 2.ª parte (ao decidir manter a prisão do arguido).
3. O douto despacho recorrido deveria ouvir previamente o arguido, dado o conteúdo do douto acórdão da Relação de Lisboa transitado), onde, na sua parte final, se estipula a eventual restituição à liberdade provisória do arguido, em caso de condenação. (Recurso nº 3817/98, proferido em 27.05.1988, na 3ª Secção do Tribunal da Relação, apenso a estes autos).
4. O douto despacho recorrido viola o disposto no art.º 32º n.º 2 da Lei Fundamental ao afirmar que a condenação do recorrente reforça os pressupostos da prisão preventiva.
5. O art.º 213º n.º 2 do CPP é materialmente inconstitucional (por violação do art.º 32º n.º 1, 2 e 5 da CRP e do art.º 6 n.º 1, 2 e 3. Alínea b) da Convenção Europeia dos Direitos do Homem – ratificada por Portugal – quando interpretado no sentido de que não é necessário o arguido ser ouvido antes de ser decidida a manutenção da prisão preventiva sobretudo no caso 'sub judice' em que o próprio tribunal superior admite a possibilidade de o arguido, mesmo após eventual condenação, aguardar em liberdade provisória os ulteriores termos processuais.
6. No caso concreto do recorrente, não se encontra demonstrado que seja absolutamente necessária a medida de prisão preventiva para o recorrente. Não só isso não resulta dos autos (o arguido esteve em liberdade durante a maior parte do seu julgamento, vindo a ser detido por, alegadamente, não se considerar justificada uma falta dada há um ano atrás...), como ainda a prisão preventiva não deve ser mantida sempre que possa ser aplicada caução ou outra medida mais favorável prevista na lei.
7. Sendo esse, precisamente, o caso dos autos.
8. O douto despacho recorrido violou ainda o disposto no art.º 28º nº 2 da Constituição da República, pelo que deverá ser revogado e substituído por outro que, por mais douto e acertado, considere a possibilidade de o arguido, (conforme admite o douto Acórdão da Relação de Lisboa – aliás transitado – aguardar, em liberdade provisória se necessário agravada, os ulteriores termos processuais.'
Por acórdão de 29 de Setembro de 1998, a Relação de Lisboa negou provimento ao recurso e, no que concerne à parte do despacho impugnado que considerou desnecessária a audição do arguido, discreteou assim, no que ora releva:-
'................................................................................................................................................................
E quanto à necessidade da prévia audição do arguido?
É manifestamente evidente que, segundo a terminologia da lei, umas vezes o juiz pode ou deve entender necessária a audição prévia do Ministério Público e do arguido e outras vezes não. A expressão sempre que necessário pressupõe estoutra: sempre que não necessário, ou quando não necessário.
Mas quando é que o juiz deve considerar necessária a audição?
É claro que as coisas variam de caso para caso. A apreciação é casuística. Todavia, subjacente a tal necessidade tem de haver sempre uma qualquer alteração do circunstancionalismo que justificou a prisão preventiva.
Ora, in casu, essa alteração factualística, susceptível de colocar em causa a decisão que sujeitou o F... à prisão preventiva, é inexistente. Não ocorre nos autos qualquer das situações previstas no artº 212º do C.P. Penal, pois.
Por outro lado, também se não descortina qualquer atenuação das exigências cautelares que determinaram a prisão.
Por outro lado ainda, qualquer outra medida de coacção continua a revelar-se inadequada e insuficiente.
Para quê, então, a audição do arguido? Seria um acto inútil.
Argumentou ainda o Recorrente que o Tribunal da Relação de Lisboa, na parte final do acórdão que proferiu, em 27-05-98, se referiu à possibilidade de o arguido, mesmo que viesse a ser condenado, poder aguardar em liberdade provisória os ulteriores termos do processo.
Ora isso implicava a necessidade de o arguido ser ouvido antes de ser decidida a manutenção da prisão preventiva.
O artº 213º, nº 2, se interpretado no sentido de não ser necessária tal audição, seria inconstitucional.
Todavia, esta alegação, salvo o devido respeito, é inócua, parece-nos, visto que o douto acórdão referido não tem qualquer poder vinculativo relativamente ao caso sub judice. De todo o modo, ele alude a uma mera possibilidade que, mais tarde, não se concretizou.
..................................................................................................................................................................................................
De todo o modo, é nosso entendimento o de que, sendo embora sindicável a escolha perfilhada pelo Mmo Juiz, ela não tem que ser fundamentada. E é fácil de vêr porquê:- É que a necessidade se confunde com a própria audição e a desnecessidade com a própria ausência dela. Se o juiz ouve, é porque acha necessária a diligência; se não ouve, é porque a julga desnecessária.
................................................................................................................................................................................................'
É deste acórdão que, pelo arguido e ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, vem interposto o vertente recurso, por intermédio do qual se pretende a apreciação da norma constante do nº 2 do artº 213º do Código de Processo Penal, 'quando interpretada no sentido de que não é necessário o arguido ser ouvido antes de ser decidida a manutenção da prisão preventiva'.
2. Determinada a feitura de alegações, rematou o recorrente a por si apresentada com as seguintes «conclusões»:-
'1. O arguido foi condenado em primeira instância, como os autos documentam. Todavia, dada a interposição de recurso, o douto acórdão condenatório não transitou em julgado.
2. O douto acórdão recorrido fez interpretação inconstitucional do art.º 213º nº
2 e 61º nº 1 alínea a) do CPP ao considerar que o Meritíssimo Juiz da instância não tinha de ouvir o arguido, antes de se pronunciar, em concreto, sobre a natureza da medida de coacção a aplicar, na sequência da interposição de recurso da decisão condenatória para o Venerando Supremo Tribunal de Justiça.
3. O art.º 213º nº 2 do CPP encontra-se ferido de inconstitucionalidade material por violação do art.º 32º nº 2 da CRP e do princípio (de presunção de inocência) nele consignado, violando ainda o princípio subjacente ao art.º 6º nºs 1, 2 e 3 alínea b) da Convenção Europeia dos Direitos do Homem'.
De seu lado, o Representante do Ministério Público junto deste Tribunal finalizou a sua alegação dizendo:-
'1. A norma constante do artigo 213º, nº 2, do Código de Processo Penal, ao conceder ao juiz a possibilidade de, com fundamento em manifesta desnecessidade, dispensar a prévia audição do arguido aquando do reexame oficioso da subsistência dos pressupostos da prisão preventiva, já decretada - mantendo-se intocado o circunstancionalismo fáctico que a determinou e não havendo qualquer agravamento da medida de coacção imposta ao arguido - não viola a regra do contraditório, nem o princípio constitucional das garantias de defesa, suficientemente asseguradas pelo direito ao recurso da decisão proferida, que mantenha aquela medida de coacção.
2. Termos em que devera improceder o recurso'.
Cumpre decidir.
II
1. Rezam assim os números 1 e 2 do artº 213º do Código de Processo Penal:- ARTIGO 213.º
(Reexame dos pressupostos da prisão preventiva)
1 . Durante a execução da prisão preventiva o juiz procede oficiosamente, de três em três meses, ao reexame da subsistência dos pressupostos daquela, decidindo se ela é de manter ou deve ser substituída ou revogada.
2. Sempre que necessário, o juiz ouve o Ministério Público e o arguido.
3...............................................................................
A questão de constitucionalidade colocada nos autos prende-se com a questão de saber se é, ou não, conflituante com a Lei Fundamental a norma ínsita no transcrito nº 2.
De facto, não é, sequer, necessário, saber se a alegada inconstitucionalidade reside na interpretação referida pelo recorrente, já que o teor literal da norma em apreço aponta para que a audição do arguido (e do Ministério Público) não é algo que deva ser sempre imposto aquando do reexame dos pressupostos da prisão preventiva, mas sim, e só, se o juiz o considerar necessário, sendo que o que se questiona é a não obrigatoriedade da audição independentemente da necessidade aferida pelo juiz.
Por outro lado, e por isso não constituir objecto do vertente recurso, cujo âmbito foi delimitado pelo respectivo requerimento de interposição e que não pode ser alargado na alegação que foi apresentada pelo recorrente, não curará este Tribunal da norma constante da alínea b) do nº 1 do artº 61º do Código de Processo Penal.
2. Segundo o recorrente, o normativo sub iudicio viola o princípio da presunção de inocência do arguido consagrado no nº 2 do artigo 32º da Constituição.
Será assim?
Adianta-se desde já que não.
Na verdade, é necessário não olvidar que, no caso sub specie, aquele normativo foi aplicado numa situação em que, do ponto de vista do Juiz do tribunal de 1ª instância - e que foi acolhido pelo Tribunal da Relação de Lisboa
-, não havia qualquer alteração do condicionalismo fáctico que determinou a imposição da medida de coacção de prisão preventiva do arguido, ora recorrente. E, porque se tratava da reapreciação oficiosa dos pressupostos que ditaram aquela imposição, uma vez que tais pressupostos se mantinham, entendeu que dos autos se não retirava qualquer necessidade de audição do mesmo arguido para a manutenção da medida aplicada três meses antes.
Essa manutenção não constituiu, pois, qualquer agravamento da situação processual do arguido confrontadamente com a que detinha antes da prolação do despacho submetido à censura da Relação de Lisboa e por esta confirmado.
2.1. O princípio da presunção de inocência do arguido, proclamado pelo nº 2 do artigo 32º da Lei Fundamental (e que, nesse particular, em nada se diferencia do que se estatui no artº 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, designadamente o que se prescreve no seu nº 2), que não pode deixar de ser articulado com o princípio in dubio pro reo, não pode ser levado a um extremo tal que, face ao seu rigor verbal, viesse a proibir a própria formulação de juízos indiciários de culpabilidade do arguido e, no que ora releva, à imposição de medidas cautelares que visassem a própria investigação criminal.
Por isso mesmo, a medida de coacção da prisão preventiva não constitui algo proibido constitucionalmente, quer por isso vir expressamente consignado no Diploma Básico, quer por constituir decorrência daquele princípio. Antes, e pelo contrário, essa medida é expressamente prevista na Lei Fundamental
(cfr. artigos 27º e 28º), conquanto o legislador constitucional tenha, fundadamente, tendo em conta o princípio consagrado no nº 1 do artigo 27º e não olvidando o princípio da proporcionalidade extraível do nº 2 do artigo 18º, determinado que a prisão preventiva se não deva manter sempre que possa ser substituída por caução ou por outra medida mais favorável prevista na lei, determinação essa que, como assinalam Gomes Canotilho e Vital Moreira (in Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, 190), 'importa não apenas para o momento da validação ou confirmação da prisão preventiva mas também para toda a duração dela, devendo ser revogada ou suspensa quando se venha a revelar desnecessária'.
Daí que se não possa concluir, sem mais, que o princípio da presunção de inocência é incompatível com a imposição da medida de coacção de prisão preventiva.
A questão, porém, reside em saber se o circunstancionalismo fáctico extraível de um concreto processo criminal aponta, ou não, objectivamente, para a necessidade da imposição de uma tal medida ou para a sua manutenção, caso, anteriormente, ela tenha já sido decretada.
De onde ter a lei adjectiva criminal consagrado a necessidade de efectivação, oficiosa e temporalmente definida, de um reexame dos pressupostos que ditaram essa imposição.
2.2. Não se podendo afirmar, em vista do que se veio de dizer, que o princípio da presunção de inocência, por si só, leve a uma incompatibilidade com a adopção da falada medida de coacção ou com a sua manutenção, o problema em análise liga-se com a circunstância de saber se o preceito em apreço, ao colocar no juízo prudencial do juiz a necessidade de, no caso de reexame oficioso dos pressupostos da prisão preventiva e em que não houve alteração do circunstancionalismo anterior, ouvir ou não o arguido, fere (outras) normas ou princípios constitucionais, mormente os princípios de que o processo criminal assegurará todas as garantias de defesa e de que certos actos que a lei determinar estão subordinados ao contraditório (cfr. números 1 e 5 do artigo
32º).
Não se estando perante a ocorrência de factos ou circunstâncias diversas daquelas que já ocorriam aquando do decretamento da prisão preventiva
(ocasião em que o arguido, teve, querendo, oportunidade de expor ao juiz razões de facto ou de direito que, na sua óptica, apontavam para a não necessidade de imposição da medida em face daqueles factos ou circunstâncias, ou que contraditavam aqueloutras que levaram ao proferimento da decisão afectadora do seu direito à liberdade), não se descortina em que é que o princípio do contraditório esteja afectado pela não obrigatoriedade de audição do mesmo arguido.
É que, o direito que o arguido tem em se fazer ouvir e contraditar todos os elementos (aqui se incluindo os de prova) ou argumentos (incluindo-se os de ordem jurídica), designadamente os carreados pela acusação, foi já devidamente assegurado aquando da imposição da medida de coacção em causa, sendo que a norma em análise visa um momento de reexame oficioso dos pressupostos e, particularmente, num caso em que estes se não mostraram alterados.
Não há, pois, por assim dizer, «matéria» diferenciada sobre a qual
(e isso seria sempre exigido pelos princípios do asseguramento da plenitude das garantias de defesa e do contraditório) o arguido tivesse que se pronunciar, pelo que, como diz o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto na sua alegação, a audição do arguido, num caso como o presente, não pode destinar-se 'a facultar-lhe a reprodução de razões ou argumentos que já teve plena oportunidade de produzir no processo' e que, seguramente, foram ponderadas na precedente decisão determinadora da imposição da medida de coacção de prisão preventiva.
Aliás, nada obsta que, reexaminados oficiosamente os pressupostos da prisão preventiva nos termos do nº 1 do artº 213º do Código de Processo Penal sem que se afigure ao juiz necessário ouvir o arguido e o Ministério Público, e sendo mantida essa medida de coacção, o arguido, que venha a dispor de novos ou diferentes elementos, solicite, mesmo imediatamente a seguir, nova reapreciação, com base no circunstancionalismo de que agora dispõe, reapreciação que, forçosamente, terá de ser devidamente ponderada e que, eventualmente, pode conduzir a uma decisão diversa daquela resultante do reexame oficioso.
III
Em face do exposto, nega-se provimento ao recurso, condenando-se o recorrente nas custas processuais, fixando a taxa de justiça em 15 unidades de conta. Lisboa, 10 de Fevereiro de 1999 Bravo Serra Paulo Mota Pinto Guilherme da Fonseca Maria Fernanda Palma José Manuel Cardoso da Costa