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Proc. nº 993/98
3ª Secção Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório.
1. Por decisão do 1º Tribunal Militar Territorial do Porto foram os ora recorridos J. C. e J. F., condenados, pela prática de um crime de abuso de autoridade, previsto e punido pelo artigo 95º, com referência ao art. 94º, al. e), do Código de Justiça Militar, a, respectivamente, 8 e 6 meses de presídio militar. Naquela decisão deu-se como provado que 'na noite de 26/27 de Abril de 1993, antes da meia noite, no interior do posto da GNR de B..., quando submetiam o queixoso, F. S., a um teste de alcoolémia, o réu C. desferiu-lhe duas bastonadas nas nádegas e o F., também com o mesmo fim, puxou-lhe pela orelha esquerda'. Provou-se ainda que «daquelas agressões não resultou qualquer dia de doença ou incapacidade para o trabalho, nem qualquer deformidade'.
2. Inconformados com o assim decidido os arguidos recorreram para o Supremo Tribunal Militar. Nas alegações que então apresentaram defenderam, nomeadamente, que o crime se encontrava amnistiado, nos termos do disposto no nº 1, al. a) da Lei nº 15/94, de 11 de Maio, ou, pelo menos, sempre estariam as penas aplicadas perdoadas, nos termos do disposto no nº 2 do art. 8º, com referência ao nº 1, alínea d), do mesmo art. 8º, da Lei nº 15/94.
3. Na sua promoção, o Promotor de Justiça entendeu que a pretensão dos recorrentes devia ser julgada improcedente, por lhes ser aplicável a exclusão prevista no art. 9º, nº 2, al. b), da Lei nº 15/94. E suscitou desde logo a inconstitucionalidade dessa norma «caso se entenda que os réus devem beneficiar da amnistia ou perdão, por não lhes ser aplicável disposto no art. 9º, nº 2, al. b), da Lei nº 15/94, de 11 de Maio (...), interpretada no sentido de não abranger os elementos da GNR que, no exercício de funções, praticam crimes
(dolosos ou negligentes), violadores de direitos, liberdades e garantias pessoais dos cidadãos, previstos no Título II, Capítulo I, da Constituição da República, por violação do art. 25º, nº 1, da CRP'. Para tanto, considerou, nomeadamente, que a expressão contida na al. b) do nº 2 do art. 9º da Lei nº
15/94, de 11 de Maio, 'só pode ter querido significar que são excluídos do benefício das amnistias e do perdão os membros da GNR que, no exercício das suas funções, pratiquem crime (doloso ou negligente) violador de direitos, liberdades ou garantias pessoais constantes da Constituição', e que, 'no presente caso, provou-se que o queixoso (...) foi agredido pelos réus no corpo, tendo sido violado o seu direito à integridade pessoas, consagrado no art. 25º da CRP'.
4. O Supremo Tribunal Militar, por acórdão de 2 de Outubro de 1997, sustentando embora que 'os militares da GNR são membros de um corpo especial de tropas, que
é também uma força policial e de segurança, pelo que a exclusão prevista na al. b) mencionada lhes é aplicável relativamente aos crimes que constituam violações de direitos, liberdades e garantias pessoais dos cidadãos', entendeu, contudo, que 'não é aplicável aos recorrentes a exclusão prevista no art. 9º, nº 2, al. b) da aludida Lei nº 15/94, pelo que estes beneficiam do perdão previsto no art.
8º, nºs 1, al. d) e 2 da mesma Lei'. Consequentemente, concedeu provimento parcial ao recurso, declarando perdoada a totalidade da pena aplicada aos recorrentes. Para tanto, considerou aquele Tribunal:
'Ora, sendo que dos direitos pessoais apenas podem ser violados pelo crime de abuso de autoridade, por rigor ilegítimo, cometido através de violência física, o direito à vida e o direito à integridade física (a este último se refere o Ex.mo Promotor de Justiça), o certo é que nenhum deles foi efectivamente violado pela conduta dos recorrentes. De facto, nem a vida nem a integridade física do ofendido foram lesadas, pois dos actos praticados pelos recorrentes não resultaram quaisquer lesões na pessoa do ofendido'.
5. Desta decisão pretendeu o Promotor de Justiça interpor recurso para o Tribunal Constitucional, para apreciação da inconstitucionalidade da norma constante do art. 9º, nº 2, al. b), da Lei nº 15/94, de 11 de Maio, 'na interpretação que lhe foi dada, quanto a não abranger os recorrentes, elementos da GNR, que no exercício das suas funções praticaram o crime constante do CJM, violador do direito à integridade pessoal, previsto no Título II, Capítulo I, da CRP (direitos, liberdades e garantias pessoais dos cidadãos)'.
6. O recurso, porém, não foi admitido, por despacho do relator de 13 de Outubro de 1997, com base nos seguintes fundamentos:
'(...) O acórdão deste supremo Tribunal deu à norma em causa a mesma interpretação do Ex.mo Promotor de justiça e não a aplicou com a interpretação por ele tida por inconstitucional.
É certo que o mencionado acórdão veio a aplicar o perdão previsto na Lei nº
15/94 aos réus, mas fê-lo por ter decidido que o crime por eles cometido não violava direitos ou garantias pessoais dos cidadãos. E esta decisão, embora dela discorde o ilustre Promotor, nada tem a ver com a matéria de inconstitucionalidade suscitada, maxime com a questão posta de os elementos da GNR estarem ou não abrangidos pela previsão do art. 9º, nº 2. Al. b) da Lei nº 15/94, única suscitada pelo requerente e na qual coincide o entendimento deste com o do Tribunal'.
7. Desta decisão, que não admitiu o recurso de constitucionalidade, foi interposta reclamação para o Tribunal Constitucional, a qual veio a obter provimento através do acórdão deste Tribunal nº 553/98 (fls. 288 a 297).
8. Admitido o recurso foi o Ministério Público (recorrente) notificado para alegar, o que fez, tendo concluído nos seguintes termos:
'A norma do art. 9º, nº 2, al. b), da lei nº 15/94, aplicada com o sentido de que beneficiam do perdão decretado naquela lei os membros das forças policiais e de segurança relativamente à prática, no exercício das suas funções, de delitos que constituam violação de direitos ou garantias pessoais dos cidadãos, quando dos actos de agressão praticados não resultem quaisquer lesões na pessoa do ofendido, é inconstitucional, por violação do art. 25º da Constituição da República portuguesa. Termos em que deverá conceder-se provimento ao recurso'.
9. Notificados para responder, querendo, às alegações do recorrente, os recorridos vieram aos autos para sustentar a improcedência do recurso. Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. II – Fundamentação.
10. É o seguinte o teor do artigo 9º, nº 2, al. b) da Lei nº 15/94, de 11 de Maio, em que se insere a norma cuja constitucionalidade vem questionada pelo recorrente:
'Artigo 9º
1. (...)
2. Não beneficiam da amnistia nem do perdão decretados na presente lei: a. (...); b. Os membros das forças policiais e de segurança ou funcionários e guardas dos serviços prisionais relativamente à prática, no exercício das suas funções, de delitos que constituam violação de direitos, liberdades ou garantias pessoais dos cidadãos, independentemente da pena; c. (...)'
Na decisão sob recurso o Supremo Tribunal Militar entendeu que não se subsumia à previsão daquela alínea b) do nº 2 do art. 9º da Lei nº 15/94, por não dever considerar-se que tivesse existido uma violação de direitos, liberdades ou garantias pessoais dos cidadãos, uma agressão voluntária e consciente por parte de dois agentes da GNR a outra pessoa, consubstanciada em duas bastonadas e um puxão de orelhas, da qual não resultou qualquer lesão. A questão de constitucionalidade que agora vem posta à consideração deste Tribunal, pode, pois, enunciar-se nos seguintes termos:
'É inconstitucional, designadamente por violação do disposto no art. 25º da Constituição, o art. 9º, nº 2, al. b) da Lei nº 15/94, de 11 de Maio, quando interpretado em termos de não considerar uma violação de direitos, liberdades ou garantias pessoais dos cidadãos uma agressão voluntária e consciente, consubstanciada em actos de violência física, quando daí não resulte qualquer lesão?'.
11. Deve, antes de mais, esclarecer-se que a questão que se coloca a este Tribunal não consiste em determinar se, de entre as várias interpretações de que
é susceptível o artigo 9º, nº 2, al. b), da Lei nº 15/94, de 11 de Maio, a decisão recorrida optou pela mais adequada, mas antes em saber se a interpretação normativa por que efectivamente optou a decisão recorrida, e que supra já identificámos, implica ou não uma violação da Constituição, designadamente do seu artigo 25º. Para a possibilidade da colocação do problema neste termos, únicos em que se coloca uma verdadeira questão de constitucionalidade susceptível de ser controlada por este Tribunal, contribui decisivamente a lógica argumentativa subjacente à decisão recorrida, que não consiste em procurar demonstrar que o legislador pretendeu excluir do âmbito de aplicação do art. 9º, nº 2, al. b) da Lei nº 15/94, de 11 de Maio, certas ofensas a direitos, liberdades e garantias pessoais dos cidadãos (por exemplo, as traduzidas em ofensas corporais simples, das quais não resulte qualquer lesão ou incapacidade para o trabalho), mas em procurar demonstrar que não constitui sequer uma ofensa à integridade pessoal, enquanto direito, liberdade e garantia constitucionalmente protegido pelo art.
25º da CRP, uma agressão voluntária e consciente, consubstanciada em actos de violência física, quando daí não resulte qualquer lesão. O artigo 9º, nº 2, al. b) da Lei nº 15/94, de 11 de Maio, utiliza um conceito – direitos, liberdades e garantias pessoais dos cidadãos – que é um conceito constitucional, pelo que a concretização do seu conteúdo implica necessariamente a convocação, ainda que implícita, das normas constitucionais que se lhe referem, que assim são igualmente chamadas como bases normativas da decisão. Ora, in casu, a decisão recorrida leva a cabo, para se sustentar normativamente, uma interpretação, restritiva, do «direito à integridade pessoal», enquanto direito, liberdade e garantia pessoal dos cidadãos, constitucionalmente protegido pelo art. 25º da CRP. Concretamente, considerou-se na decisão recorrida que uma agressão voluntária e consciente, consubstanciada em actos de violência física, da qual não resulte qualquer lesão, não constitui uma ofensa à integridade pessoal, enquanto direito, liberdade e garantia.
É esta dimensão normativa do artigo 9º, nº 2, al. b) da Lei nº 15/94, de 11 de Maio, assente numa interpretação restritiva do direito à integridade pessoal, que vai contra a Constituição, na medida em que nada legitima uma interpretação do conteúdo constitucional do direito à integridade pessoal, concretamente na sua componente de direito à integridade física, em termos de apenas abranger a protecção contra um determinado grau de ofensas corporais, designadamente as que tenham por efeito a provocação de uma lesão ou de incapacidade para o trabalho.
III - Decisão Em face do exposto, decide-se: a) julgar inconstitucional a norma constante do 9º, nº 2, al. b) da Lei nº
15/94, de 11 de Maio, por violação do artigo 25º da Constituição, quando interpretada em termos de considerar que uma agressão voluntária e consciente, consubstanciada em actos de violência física, não traduz uma violação de direitos, liberdades ou garantias pessoais dos cidadãos quando daí não resulte qualquer lesão; b) conceder provimento ao recurso, e ordenar a reforma da decisão recorrida em conformidade com o julgamento quanto à questão de constitucionalidade. Custas pelo recorridos, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta para cada um deles. Lisboa, 5 de Abril de 2000 José de Sousa e Brito Messias Bento Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida