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Processo nº 657/99
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1. - Nos autos de execução sumária a correr termos no Tribunal Judicial da comarca de Castelo Branco, em que é exequente M..., S.A., com sede nessa comarca, e executada B..., Lda., com sede na Amadora, foi expedida à comarca de Lisboa carta precatória para penhora em bens identificados desta
última, nos termos do artigo 925º do Código de Processo Civil (CPC), conjugado com o artigo 1º, alínea a), do Decreto-Lei nº 274/97, de 8 de Outubro, seguindo-se a notificação da executada de acordo com o disposto no artigo 926º do mesmo Código.
Distribuída a deprecada ao 1º Juízo do Tribunal Cível da comarca de Lisboa, o Senhor Juiz, por despacho de 21 de Abril de 1999, indeferiu o pedido formulado pela exequente, com base na parte final do artigo 184º do CPC, após 'declarar inconstitucional o artigo 1º do Decreto-Lei nº 274/97, de 8 de Outubro, por violação dos artigos 18º, nºs. 1 e 2, e 62º, nºs. 1 e 2, da Constituição da República' (CR).
O magistrado do Ministério Público competente interpôs recurso para o Tribunal Constitucional do assim decidido, ao abrigo do disposto na alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.
Pretende a apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 1º do Decreto-Lei nº 274/97, diploma que, por alegado vício de inconstitucionalidade, o magistrado recorrido recusou aplicar.
Notificadas as partes para alegar, apenas o Ministério Público o fez.
E concluiu do seguinte modo:
'1º - O regime constante do artigo 1º do Decreto-Lei nº 274/97, de 8 de Outubro, ao mandar aplicar à execução para pagamento de quantia certa, de valor não superior à alçada dos tribunais de 1ªinstância, mesmo que fundada em título extra-judicial, e em que não sejam penhorados imóveis ou estabelecimento comercial, o regime estabelecido no Código de Processo Civil para a execução de sentença condenatória, não viola, em termos desproporcionados e constitucionalmente ilegítimos, o princípio do contraditório, ínsito no direito de acesso aos tribunais, afirmado pelo artigo 20º da Constituição da República Portuguesa.
2º - O diferimento do contraditório do executado para momento ulterior à realização da penhora – permanecendo esta como provisória até julgamento da oposição eventualmente deduzida na sequência da notificação pessoal do executado, nos termos do artigo 926º do Código de Processo Civil – ditado por prementes razões de celeridade e eficácia na efectivação prática e em tempo útil do direito do credor, não viola o referido princípio constitucional, atento o regime globalmente traçado para a tramitação de tal acção executiva.
3º - Na verdade – e para além de o próprio título executivo ser um documento que certifica ou indicia necessariamente, em termos julgados bastantes, a existência do débito - cumpre ao juiz, antes de ordenar a penhora, proferir despacho liminar, nos termos dos artigos 925º e 811º-A do Código de Processo Civil, devendo indeferir o requerimento executivo nos casos previstos nesta disposição legal, e sendo subsequentemente facultada ao executado, na sequência de notificação pessoal, nos termos do artigo 926º, o pleno contraditório, quanto à própria execução, ao despacho determinativo da penhora e à realização desta
(artigos 926º, nº 3, 863º-A e 815º do Código de Processo Civil).
4º - E podendo o credor, que haja instaurado de forma temerária ou negligente execução com base em crédito inexistente ou já extinto, ser responsabilizado por todos os danos que tenha causado ao executado em consequência do desapossamento dos bens penhorados, através da possível condenação como litigante de má fé, nos termos dos artigos 456º e 457º, nº 1 do Código de Processo Civil.
5º - Termos em que deverá proceder o presente recurso, em conformidade com um juízo de constitucionalidade da norma desaplicada na decisão recorrida.'
Cumpre decidir.
II
1. - O âmbito do presente recurso de constitucionalidade circunscreve-se à apreciação da conformidade constitucional da norma do artigo
1º do Decreto-Lei nº 274/97, de 8 de Outubro, que assim prescreve:
'Artigo 1º Execução para pagamento de quantia certa A execução para pagamento de quantia certa, baseada em título que não seja decisão judicial condenatória, segue, com as necessárias adaptações, os termos do processo sumário, desde que se verifiquem os seguintes requisitos: a) Ser a execução de valor não superior ao fixado para a alçada do tribunal de
1ª instância; b) Recair a penhora sobre bens móveis ou direitos que não tenham sido dados de penhor, com excepção do estabelecimento comercial.'
A tese sustentada pelo magistrado recorrido, se bem se entende, parte do reconhecimento do direito de propriedade a nível constitucional, tal como consagrado está no nº 1 do artigo 62º da CR, daí retirando que os titulares da propriedade de bens só podem ser privados destes, contra sua vontade, na sequência de uma decisão judicial, mediante contrapartida de natureza patrimonial, em casos de interesse ou utilidade pública. É, no entanto, em sede do contraditório que, afinal, radica o fundamento para a recusa de aplicação normativa: no caso da norma em questão, em que o executado não tem oportunidade de se defender das pretensões contra si deduzidas, como sucede nas acções executivas em que o título executivo é uma sentença judicial, o princípio do contraditório mostra-se violado, com natural implicação no direito de acesso aos tribunais que, assim, se veria contrariado, de forma desrazoável e intolerável.
2. - A medida decretada pelo Decreto-Lei nº 274/97 integra-se no propósito do legislador em simplificar e abreviar o processo de execução, dado o reconhecimento da necessidade de uma profunda revisão desse tipo de processo (cfr. a nota preambular ao diploma).
Nesta linha de actuação, a norma agora desaplicada veio dispor que se uma execução for de valor não superior ao da alçada do tribunal de
1ª instância e estiver baseada em título executivo representativo de uma obrigação, que não seja uma decisão judicial, segue a forma do processo sumário, desde que a penhora não recaia sobre bens imóveis ou estabelecimento comercial ou sobre bens móveis dados em penhor.
Ora, na forma sumária do processo executivo o direito de nomear bens à penhora pertence exclusivamente ao exequente que os nomeará logo no requerimento executivo e, só depois de feita a penhora, se cita o executado, sendo simultaneamente notificado do requerimento, do despacho determinativo da penhora e da realização desta para, querendo, deduzir, no prazo de 10 dias, embargos de executado ou oposição à penhora (cfr., os artigos 924º e 926º do CPC).
As formas do processo executivo para pagamento de quantia certa que já se determinavam, essencialmente, não pelo valor mas sim em função da natureza do título executivo – após as modificações operadas pelos Decretos-Lei nºs. 329-A/95, de 12 de Dezembro, e 180/96, de 25 de Setembro – sofreram, com o Decreto-Lei nº 274/97, a incidência da aplicação de um novo critério, que amplia o âmbito da execução sumária, nela incluindo certos casos de execução de títulos extrajudiciais que, perante a regra constante do artigo
465º do CPP, deveriam correr sob a forma ordinária (cfr., Carlos Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Coimbra, 1999, pág. 314).
No fundo, o que o novo diploma veio, nesta parte, introduzir, foi uma alteração na forma do processo de execução.
Sofrerá essa iniciativa, no tocante à norma em causa, da apontada inconstitucionalidade?
Entende-se que não.
3. - A Constituição, no nº 5 do seu artigo 32º, expressamente consagra o princípio do contraditório no âmbito do processo criminal. Sem embargo, é pacificamente entendido que a mesma dignidade constitucional assiste no processo civil: o Estado de direito democrático, acolhido pelo artigo 2º da Lei Fundamental, reclama a existência de um processo equitativo e leal em que as partes, como se observa no acórdão deste Tribunal, nº 249/97, inter alia, publicado no Diário da República, II Série, de 17 de Maio de 1997, possam expor oportunamente as suas razões, oferecer as suas provas e pronunciar-se sobre as da parte contrária, na sequência da lição de Manuel de Andrade (Noções Elementares de Processo Civil, I, Coimbra, 1976, pág. 377).
O contraditório, enquanto 'princípio reitor do processo civil' e, como tal, assumido pelo artigo 3º do respectivo Código, constitui, por sua vez, uma decorrência do direito de acesso aos tribunais, também constitucionalmente garantido (nº 1 do artigo 20º da CR), configurando-se esta como o direito a ver solucionados os conflitos segundo a lei, por um órgão que ofereça garantias de imparcialidade e independência. Nele as partes encontram-se em condições de plena igualdade no que toca à defesa dos respectivos pontos de vista (como, por sua vez, se escreveu no acórdão nº 346/92, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 23º vol., págs. 451 e segs.).
A norma questionada não atenta, no entanto, contra aquele princípio.
Na verdade, uma vez realizada a penhora, não se negam ao executado os meios que lhe permitam opor-se à execução ou à penhora, nos termos prescritos no artigo 926º do CPC, apenas se diferindo para momento ulterior à penhora o exercício do contraditório, como, de resto, já no anterior regime constava (artigo 927º) – cfr. Carlos Lopes do Rego, ob. cit., pág. 617).
A esta luz, o diferimento do contraditório pressupõe a provisoriedade da penhora até ao julgamento da oposição eventualmente deduzida, e justifica-se por razões de celeridade e eficácia na efectivação prática e em tempo útil do direito do credor, sem afectar, ao menos desproporcionadamente, o princípio do contraditório, em si mesmo considerado.
Como, aliás, destaca o Ministério Público, nas suas alegações, não só o procedimento previsto da dispensa de prévia citação do executado apenas funciona em relação a dívidas de pequeno valor – e em que a existência de um título executivo extra-judicial sempre funciona em termos de razoável probabilidade quanto à existência e à exigibilidade do débito exequendo
-, como não dispensa o mecanismo cautelar do indeferimento liminar pelo juiz, nos termos do artigo 811º-A do CPC, permitindo, sempre e de qualquer modo, a plena oportunidade de defesa pelo executado, pela oposição mediante embargos, onde pode questionar quer a execução, quer o próprio acto de penhora, quer a legalidade do despacho que a ordena (CPC, artigos 926º, 815º e 863º-A).
Não se entende, na verdade – para já não falar na observância do instituto da litigância de má fé – como se pode surpreender excesso, constitucionalmente censurável, no mecanismo acolhido pelo Decreto-Lei nº 274/97, no seu artigo 1º - exercendo-se o contraditório, se bem que diferidamente, obstando a oposição à execução ou a dedução de embargos, na sequência desse contraditório, a passagem à fase da venda, que, a ocorrer, configuraria, essa sim, a frustração dos direitos legítimos do executado.
4. - Não é, também, posto em causa o invocado direito de propriedade, que o despacho recorrido convoca para articular com a argumentação tecida em torno dos princípios do contraditório e do acesso ao direito e aos tribunais, do mesmo passo violando o princípio da proporcionalidade, contido no artigo 18º, nºs. 1 e 2, da CR.
Com efeito, a medida legislativa em referência não afecta intolerável e desproporcionadamente o direito do executado, na medida em que a penhora não implica privação do direito de propriedade sobre o bem penhorado. III
Em face do exposto, decide-se conceder provimento ao recurso e, em consequência, determinar a reforma da decisão recorrida, de acordo com o formulado juízo de constitucionalidade. Lisboa, 22 de Março de 2000 Alberto Tavares da Costa Messias Bento Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (vencida, nos termos da declaração de voto junta) José de Sousa e Brito (vencido, nos termos da declaração de voto junta) Luís Nunes de Almeida