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Processo nº 22/2000
3ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Pela decisão sumária de fls. 147, foi decidido
'a) Não tomar conhecimento do recurso no que se refere à alegada ilegalidade da norma constante do artigo 1048º do Código Civil, na interpretação impugnada; b) Julgar manifestamente improcedente a alegada inconstitucionalidade orgânica da mesma norma; c) Não tomar conhecimento do recurso no que se refere à alegada inconstitucionalidade material da mesma norma.' Pretendia o recorrente, AM..., no recurso que interpôs para este Tribunal, ao abrigo do disposto na al. b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, a 'apreciação da inconstitucionalidade e ilegalidade do disposto no artigo 1.048 do Código Civil e da interpretação que do seu conteúdo foi feita pelo douto acórdão recorrido.' Em seu entender, existiu 'no caso agora em recurso, violação do disposto no artigo 20 da Constituição e do princípio constitucional nele consagrado do acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, bem como da concretização prática consagrada expressamente no artigo 3 do Código de Processo Civil e no artigo 4 do mesmo diploma, através da reforma desse Código, operada pelo D.L. 329-A/95 de 12-12, no uso da autorização legislativa, constante da Lei nº 33/95 de 18-8, dada ao Governo nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo 201 da Constituição.
(...) Existiu, também, neste caso em recurso, violação do artigo 165, alínea h) da Constituição e do princípio constitucional que é da competência exclusiva da Assembleia da República legislar sobre o regime geral do arrendamento urbano.
É que, nos termos do citado artigo 165 alínea h) da Constituição, a Assembleia da República conferiu, por meio da autorização legislativa nº 42/90 de 10-8, poderes ao Governo para reformular o regime do arrendamento urbano, conforme às directrizes estabelecidas nessa Lei. O que o Governo veio a fazer com a publicação do novo Regime do Arrendamento Urbano, constante do D.L. nº 321-B/90 de 15-10, dele passando a constar um regime para as rendas vencidas na pendência da acção de despejo, bem diverso do anterior, constante do artigo 964 e seguintes do Código de Processo Civil então vigente e do artigo 1048 do Código Civil. Regime esse actual que torna inconstitucional, também por esse motivo, o artigo
1048 do Código Civil e a interpretação que dele fez o acórdão recorrido, por violação do disposto na Lei de autorização legislativa nº 42/90 e do artigo 165 alínea altura) da Constituição.'
2. Inconformado, reclamou para a conferência, pelo requerimento de fls. 155. Abandonando as questões da ilegalidade e da inconstitucionalidade orgânica, AM... pretende que o Tribunal Constitucional se pronuncie sobre a alegada inconstitucionalidade material da norma do artigo 1048º do Código Civil, não conhecida na decisão reclamada. Em síntese, o recorrente sustenta que invocou 'expressa e textualmente a inconstitucionalidade do disposto no artigo 1048 do Código Civil e da interpretação que do seu conteúdo foi feita pela acórdão recorrido', como aliás resulta do relatório da decisão referida, não sendo exacto que tenha antes questionado a falta de audição, nos termos apontados na decisão sumária para justificar o não conhecimento: 'No que toca à alegada inconstitucionalidade material, resulta claramente do requerimento de interposição de recurso que o recorrente não está a questionar a constitucionalidade da interpretação adoptada para o artigo 1048º mas o que considera uma omissão do julgador, que o não ouviu, nos termos pretendidos, antes de julgar a causa, violando com esta actuação, em seu entender, os preceitos legais e constitucionais que indica. Não pode, assim, o Tribunal Constitucional conhecer do recurso nesta parte, por não ter sido questionada a constitucionalidade de qualquer norma que haja sido aplicada na decisão recorrida.' Ora, segundo o reclamante, o que sustentou no recurso foi que 'o julgador proferiu a sua decisão com fundamento numa interpretação inconstitucional do artigo 1048 que o leva a considerar como incluídas no seu teor somas – ou seja factos, causas de pedir não alegadas pela outra parte e, por isso mesmo, não constantes dos autos e da acção, sendo por essa razão inexistentes.
É, pois, princípio constitucional, consagrado no artigo 20 da Constituição a todos ser assegurado o acesso ao direito e aos Tribunais, o direito a uma tutela jurisdicional efectiva, de forma que uma pessoa só pode ser condenada por factos ou causas de pedir alegadas pela outra parte e constantes do processo judicial para que foi chamado a defender-se, como por crimes e factos constantes da acusação contra ela formulada'. A parte contrária veio sustentar a improcedência da reclamação.
3. É no requerimento de interposição de recurso que se define o objecto do recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade de normas, como se sabe; e esse objecto apenas pode consistir, justamente, numa norma, ou numa sua dimensão interpretativa, que, no caso do recurso interposto ao abrigo do disposto na al. b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, haja sido aplicada na decisão recorrida, não obstante o recorrente ter invocado, durante o processo, a sua inconstitucionalidade. Ora a verdade é que o recorrente, afirmando pretender que o Tribunal Constitucional aprecie 'a inconstitucionalidade e a ilegalidade do disposto no artigo 1048 do Código Civil e da interpretação que do seu conteúdo foi feita pelo douto acórdão recorrido,' justifica o seu pedido dizendo:
'Nos termos do nº 2 do artigo 75-A da Lei 28/82 de 15-11, o recorrente indica que considera ter existido no caso agora em recurso, violação do disposto no artigo 20 da Constituição e do princípio constitucional nele consagrado do acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, bem como da sua concretização prática consagrada expressamente no artigo 3 do Código de Processo Civil e no artigo 4 do mesmo diploma, através da reforma desse Código, operada pelo D.L. 329-A/95 de 12-12, no uso da autorização legislativa, (...)'. Embora do requerimento de interposição de recurso não constasse a definição da norma impugnada, considerou-se na decisão sumária que se tratava da 'norma contida no artigo 1048º do Código Civil enquanto interpretada no sentido de, na expressão 'somas devidas', se incluir a renda (e correspondente indemnização) vencida depois de proposta a acção (e, portanto, cuja falta de pagamento não foi invocada na petição inicial) e antes de decorrido o prazo da contestação, como se depreende da leitura conjunta do requerimento de interposição de recurso e das referidas alegações apresentadas na apelação.'
4. A verdade, todavia, é que o motivo invocado para justificar a inconstitucionalidade material se não pode atribuir à interpretação adoptada para o artigo 1048º do Código Civil da qual, em si mesma, nada decorre que possa ser entendido como violando (ou não) o princípio do acesso ao direito e aos tribunais, consagrado no artigo 20º da Constituição, concretizado, como sustenta o reclamante, 'no artigo 3 do Código de Processo Civil [princípio do contraditório] e no artigo 4 do mesmo diploma' [princípio da igualdade das partes]. Não está, pois, em causa saber se a norma impugnada pelo reclamante corresponde ou não àquela que o acórdão recorrido aplicou para julgar a causa.
É que, entender como incluída na expressão 'somas devidas' uma renda (e correspondente indemnização) vencida depois de proposta a acção, cuja falta de pagamento não foi, naturalmente, invocada na petição inicial, em nada pode infringir tais princípios. Essa infracção apenas poderia resultar de eventual desrespeito de regras processuais relativas à alegação de factos e à defesa correspondente. Nada na norma impugnada permite concluir que dela resulte a não audição do inquilino nos termos apontados pelo reclamante, ou a possibilidade de consideração de causas de pedir não alegadas na petição inicial. Diga-se, a terminar, que o acórdão recorrido entendeu a alegação de inconstitucionalidade da mesma forma que a decisão agora reclamada: 'IIIª questão: Inconstitucionalidade do artigo 1048º do C. Civil vertida na sentença. Pretende-se que a interpretação que se acaba de referir viola o artigo 20º da C.R.P., imputando-lhe, assim, a violação do acesso ao direito e aos tribunais que a todos é garantido. Pensa-se que o Apelante tal refere, por, no seu entender, não ter exercido o contraditório sobre a necessidade do depósito da renda do mês de Outubro (mês da contestação) e o relevo dado a esse facto. Parece-nos que não lhe assiste qualquer razão. Com efeito, o Réu, ora apelante, teria que saber da vantagem do depósito das rendas em atraso para efeitos de impedir a resolução do contrato. E teria que saber que, a maior parte da jurisprudência entendia ser necessário o depósito das rendas que se vencessem até ao momento da contestação inclusive. Ora, o Réu efectuou os depósitos que entendeu e foi ele próprio que juntou a guia de depósito nos autos. Não havia, pois, que o ouvir de novo. De modo algum lhe foi retirada a possibilidade de recurso aos tribunais, pois que continuou a ser parte na presente acção, exercendo os direitos que a lei lhe faculta. Não se descortina a existência de qualquer inconstitucionalidade'. Assim, julga-se improcedente a presente reclamação, e confirma-se a decisão sumária de não conhecimento do recurso. Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 15 ucs. Lisboa, 16 de Março de 2000 Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Alberto Tavares da Costa Luís Nunes de Almeida