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Proc. nº 786/95 Plenário Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam em Plenário no Tribunal Constitucional
I O pedido
1. Um grupo de deputados do Partido Socialista à Assembleia Legislativa Regional da Madeira requereu, junto do Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 281º, nº 1, alínea g), da Constituição, a apreciação da conformidade à Constituição das normas contidas no Decreto Regulamentar nº 16/95/M, publicado no D.R., I Série-B, de 25 de Maio, que define as entidades competentes que na Região Autónoma da Madeira procedem à execução do Decreto-Lei nº 49/95, de 15 de Março, que consagra o regime do reconhecimento de organizações e agrupamentos de produtores e suas uniões.
Os requerentes solicitaram a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do diploma em questão, com fundamento em inconstitucionalidade orgânica e formal, uma vez que o mesmo, ao regulamentar o artigo 9º, nº 1, do Decreto-Lei nº 49/95, de 15 de Março, isto é, legislação nacional, violaria o artigo 229º (actual artigo 227º), nº 1, alínea d), da Constituição, pois a competência para regulamentar as leis gerais emanadas dos
órgãos de soberania que não reservem para si o respectivo poder regulamentar pertence à Assembleia Legislativa Regional, nos termos do artigo 232º, nº 1, da Constituição (na versão actual).
Notificados pelo Presidente do Tribunal Constitucional para esclarecerem se pretendiam, em face da afirmação de violação do artigo 29º, nº
1, alínea l), do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira, requerer a declaração de ilegalidade do mesmo diploma, os requerentes responderam afirmativamente.
2. O Governo Regional da Madeira, na resposta apresentada, suscitou a questão prévia da ilegitimidade dos requerentes, sustentando que o pedido de declaração de inconstitucionalidade deduzido pelas entidades mencionadas no artigo 281º, nº 2, alínea g), da Constituição apenas pode ocorrer quando se fundar em violação dos direitos das regiões autónomas. Estando em causa, nos presentes autos de fiscalização abstracta da constitucionalidade, o exercício, por parte de um órgão da Região Autónoma da Madeira, de uma competência eventualmente pertencente a um outro órgão dessa mesma Região, não se poderá invocar a violação de um direito da região autónoma enquanto tal.
Quanto ao pedido de declaração de ilegalidade, o Governo Regional da Madeira invocou igualmente a ilegitimidade dos requerentes, uma vez que tal pedido foi subscrito, quanto à questão de ilegalidade, por apenas seis deputados.
3. O Vice-Presidente do Tribunal Constitucional apresentou memorando (artigos 39º, nº 2, e 63º, nº 1, da Lei do Tribunal Constitucional), sustentando a procedência da questão prévia suscitada e propugnando, consequentemente, o não conhecimento do objecto do recurso. Afastada a questão prévia relativa ao número de deputados subscritores do pedido de declaração de ilegalidade, sustentou, porém, uma outra questão prévia relativa à legitimidade, com fundamento na consunção do vício de ilegalidade pelo de inconstitucionalidade.
Após discussão do memorando, este foi aprovado por uma maioria de juizes do Tribunal Constitucional. II Fundamentos da decisão A Questão prévia da legitimidade dos requerentes quanto ao pedido de declaração de inconstitucionalidade
4. Suscita o Governo Regional a questão prévia da legitimidade dos autores do pedido, em face do artigo 281º, nº 2, alínea g), da Constituição.
Tal problema de legitimidade consiste em que, sendo a questão de constitucionalidade suscitada a eventual violação do artigo 229º (hoje, artigo
227º), nº 1, da Constituição, em conjugação com o artigo 232º, nº 1, da Constituição, não estaria em causa a violação de um direito da região autónoma enquanto tal.
Com efeito, o problema de constitucionalidade colocado traduz-se numa eventual violação pelo diploma em crise das competências da Assembleia Legislativa Regional consagradas na Constituição e o artigo 281º, nº 2, alínea g), da Constituição exige, como critério da legitimidade dos deputados à Assembleia Legislativa Regional para requererem a fiscalização de constitucionalidade, que o pedido se fundamente 'em violação dos direitos das regiões autónomas'.
Sendo esse o problema, a sua solução dependerá de saber se é qualificável como invocação de uma violação dos direitos das regiões autónomas, para efeitos de definição de legitimidade, a sustentação de que uma norma viola a distribuição constitucional de competências entre órgãos regionais - a Assembleia Legislativa Regional e o Governo.
5. Quanto a esta questão há uma assinalável jurisprudência constitucional, em que se inclui, aliás, um parecer da Comissão Constitucional
(Parecer nº 25/80, em Pareceres da Comissão Constitucional, 13º vol., p. 143 e ss.), segundo a qual só os direitos constitucionalmente conferidos às regiões justificariam a legitimidade do accionamento da fiscalização abstracta pelos deputados regionais. Estaria, assim, necessariamente em causa uma eventual violação de direitos das regiões em face do Estado nacional, na medida em que esses direitos tiverem consagração constitucional, isto é, conformarem constitucionalmente de modo directo a autonomia político-administrativa das regiões (cf. Acórdãos nº 264/86 e 403/89, em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 8º vol., p. 169 e ss., e 13º vol., tomo I, p. 465 e ss., respectivamente).
Esta jurisprudência tem, aliás, a concordância da doutrina que se pronunciou sobre tal questão. Gomes Canotilho e Vital Moreira afirmam, a propósito da interpretação do artigo 281º, nº 2, alínea g), da Constituição, que
«Por 'direitos das regiões' devem entender-se os direitos constitucionalmente reconhecidos às regiões face à República» (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., 1993, p. 1035).
6. Assim, constituindo a norma constitucional uma atribuição de legitimidade para suscitar os mecanismos da fiscalização abstracta pelos deputados regionais, em função da defesa dos direitos constitucionais das regiões, não se verificará tal legitimidade quando as normas questionadas não interfiram directamente com tal razão defensiva.
No caso concreto, as normas questionadas limitam-se a proceder à distribuição interna de competências entre os diversos órgãos regionais, não definindo, consequentemente, poderes das regiões perante entidades externas, como o Estado.
Ora, esta conformação, interna à região, dos poderes regulamentares do Governo que eventualmente conflituem com os da Assembleia Legislativa Regional não suscita, de modo algum, um problema atinente aos direitos constitucionais das regiões em face do Estado. Não se revela, nesta situação, nem o factor estrutural do relacionamento directo de uma competência regional com as do Estado nem qualquer significado de defesa da região perante o Estado.
7. Nestes termos, impõe-se a conclusão de que os requerentes não têm legitimidade para suscitar perante o Tribunal Constitucional o pedido de declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, nos termos do artigo 281º, nº 2, alínea g), da Constituição, não se devendo, por isso, tomar conhecimento deste pedido.
B Questão prévia da legitimidade dos recorrentes quanto ao pedido de declaração de ilegalidade
8. Os requerentes invocaram, ainda, a simultânea violação do preceituado no artigo 29º, nº 1, alínea l), do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira, na versão então vigente, tendo esclarecido, após notificação pelo Presidente do Tribunal Constitucional, que pretendiam igualmente requerer a declaração de ilegalidade do diploma em questão.
9. A questão prévia suscitada pelo Governo Regional quanto ao número de deputados não é procedente. Com efeito, o artigo 281º, nº 1, alínea g), da Constituição prevê, como requisito de legitimidade, que o número de deputados requerentes seja de um décimo dos deputados à respectiva Assembleia Legislativa Regional. Ora, o número de deputados que subscreveram o pedido, seis, perfaz o décimo dos deputados exigido constitucionalmente, uma vez que o número de deputados da Assembleia Legislativa Regional da Madeira em efectividade de funções é de cinquenta e nove (D.R., I Série-B, Suplemento, nº
246, de 23 de Outubro de 1996).
10. O artigo 281º, nº 2, alínea g), da Constituição admite, com efeito, a legitimidade de um décimo dos deputados à Assembleia Legislativa Regional para requererem a declaração de ilegalidade, com força obrigatória geral, de normas, com fundamento em violação do estatuto da respectiva região ou de lei geral da República.
Assim, estando em causa, por invocação dos deputados, uma norma do Estatuto regional - o referido artigo 29º, nº 1, alínea l) -, poder-se-ia concluir que o caso concreto se subsumiria perfeitamente na hipótese legal contida na norma constitucional.
Porém, apesar desta compatibilidade literal, uma tal conclusão implicaria uma manifesta contradição com a ratio legis e com o sentido histórico do preceito constitucional, dada a coincidência da norma estatutária com os artigos 227º, nº 1, e 232º, nº 1, da Constituição.
Na verdade, se houvesse de admitir-se, por ser essa a intenção normativa, que a coincidência de uma norma estatutária com uma norma constitucional não afectaria a legitimidade dos requerentes, estar-se-ia, igualmente, a admitir que através da reprodução de normas constitucionais nos estatutos das regiões se poderia alargar o âmbito do poder dos deputados regionais quanto à formulação de pedidos de declaração de inconstitucionalidade.
Essa consequência, porém, é insustentável, dentro da lógica articulação entre declarações de inconstitucionalidade e ilegalidade, tal como elas são previstas na Constituição. Com efeito, não poderia o legislador constitucional ter pretendido restringir a legitimidade de certos requerentes, quanto ao pedido de declaração de inconstitucionalidade, de modo apenas formal, admitindo, porém, que essa restrição não operaria se o legislador ordinário viesse a integrar no estatuto regional uma reprodução da norma constitucional.
A delimitação da legitimidade não há-de ser, por isso, compreendida como mera limitação de invocação da violação de normas pela sua inserção formal, mas desde logo como uma subtracção a certos requerentes da competência para questionar a violação de normas ou princípios constitucionais, estejam eles formulados onde estiverem, quando não esteja em causa a defesa de direitos regionais.
Não sendo, aliás, a legitimidade dos deputados regionais genérica, isto é, relativa a quaisquer normas constitucionais, ela só pode compreender-se como uma legitimidade excepcional, que não poderia compatibilizar-se, em termos sistemáticos, com a possibilidade do conteúdo normativo do preceito constitucional ser questionado pela via da legalidade.
11. Por outro lado, surge como evidente a opção que orientou o legislador constitucional quanto a não atribuir aos órgãos regionais ou aos representantes das regiões o poder de suscitar, fora do âmbito dos direitos da região, a fiscalização da constitucionalidade. Trata-se de uma opção pela concentração de tal poder em órgãos representativos do Estado, aos quais é atribuído um papel exclusivo no desencadeamento do controlo da constitucionalidade. Assim, o efeito de 'degradação' de uma verdadeira questão de constitucionalidade (isto é, de violação de normas ou princípios constitucionais) numa questão de legalidade, pela via formal da legitimidade, frustraria a lógica das opções constitucionais plasmadas nos artigos 280º e 281º da Constituição.
12. Deverá, em consequência do que se expôs, concluir-se que o vício de inconstitucionalidade consome o de ilegalidade para efeitos de delimitação da legitimidade dos deputados regionais requerentes, no caso do artigo 281º, nº 2, alínea g), da Constituição. E não pode o facto de a norma constitucional cuja violação é invocada ser simultaneamente uma norma estatutária permitir que o interesse que se protege com a exclusão da legitimidade para a formulação do pedido de fiscalização abstracta da constitucionalidade venha a ser postergado pela via do pedido de ilegalidade. Impõe-se, antes, a prevalência desse interesse, na medida em que ele exprime a posição do sistema quanto aos poderes gerais de suscitar a fiscalização de constitucionalidade.
13. Por outro lado, não tem pertinência o argumento de que a norma estatutária que, neste caso, reproduz o texto constitucional teria uma natureza estatutária intrínseca, sendo, por isso, justificável a legitimidade dos deputados para suscitar o seu controlo.
Efectivamente, nem essa natureza estatutária intrínseca estará comprovada no universo da ordem jurídica portuguesa, como se constata pelo confronto com o Estatuto da Região Autónoma dos Açores, nem se pode concluir, mesmo que se considere natural e adequada a sua pertença ao estatuto da região, que o facto de o legislador constitucional ter explicitamente regulado a matéria não a subtraiu à disponibilidade estatutária que é manifestação de autonomia regional.
Por outro lado, dir-se-á que com isto se retira aos deputados regionais o poder de desencadearem a intervenção do Tribunal Constitucional para garantir a observância da repartição de competências entre os órgãos regionais, mas o certo é que essa foi, justamente, a opção do legislador constitucional, como atrás se referiu
(cf. supra, nº 6).
14. Em face destas razões, o Tribunal Constitucional conclui que os requerentes também não dispõem da necessária legitimidade para o pedido de declaração de ilegalidade.
Com fundamento na interpretação, conjugada, da primeira e segunda partes do artigo 281º, nº 1, alínea g), da Constituição, não se conhecerá do pedido de ilegalidade.
III Decisão
15. Pelos fundamentos expostos, em face do artigo 281º, nº 1, alínea g), da Constituição, o Tribunal Constitucional decide não conhecer do pedido de declaração de inconstitucionalidade e do pedido de declaração de ilegalidade. Lisboa, 29 de Março de 2000 Maria Fernanda Palma Maria dos Prazeres Pizarro Beleza José de Sousa e Brito Maria Helena Brito Artur Maurício Vítor Nunes de Almeida Bravo Serra Messias Bento Alberto Tavares da Costa Luís Nunes de Almeida Paulo Mota Pinto (vencido, quanto ao pedido de declaração de ilegalidade, nos termos da declaração de voto que junto) Guilherme da Fonseca (vencido, acompanhando a declaração de voto do Exmº Cons. Mota Pinto) José Manuel Cardoso da Costa