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Processo n.º 497/98
3ª Secção Relator: Cons. Tavares da Costa
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. - R..., S.A., interpôs, no Tribunal Tributário de 2ª Instância, recurso contencioso de anulação do despacho do Subdirector-Geral das Alfândegas, proferido, em 13 de Julho de 1989, no exercício de competência delegada, que revogou, com fundamento em ilegalidade, o anterior despacho, de 18 de Agosto de 1988 - que concedera isenção de direitos, solicitada ao abrigo do Decreto-Lei n.º 225-F/76, de 3 de Março, na importação de resíduos de fabricação de amido de milho.
Fundamentou o recurso em violação de lei por erro nos pressupostos de facto e de direito.
Por acórdão de 14 de Maio de 1991, o Tribunal Tributário de 2ª Instância negou provimento ao recurso.
Inconformada, a dita sociedade interpôs, então, recurso para a Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, com vista à anulação ou, ao menos, revogação do aresto recorrido, invocando, em síntese, os vícios de omissão de pronúncia, erro nos pressupostos de facto do acto impugnado, ilegalidade, e de violação dos princípios constitucionais consagrados no artigo 266º da Constituição da República Portuguesa e 85º do Tratado de Roma, aos quais aditou, em alegações complementares, a inconstitucionalidade da norma do artigo 1º do Decreto-Lei n.º 225-F/76, de 31 de Março, se interpretada no sentido de consagrar, não um poder vinculado, mas um poder discricionário na concessão de isenções ou reduções de direitos na importação de cereais para rações por operadores privados, que não auferiam do disposto no Decreto-Lei n.º 26/75, de 24 de Janeiro, por violação dos princípios constitucionais da igualdade dos cidadãos perante a lei, da legalidade tributária e da imparcialidade da Administração e do disposto no artigo 80º, alínea b) da Constituição.
O Supremo Tribunal Administrativo, por acórdão de 16 de Abril de 1997, não tomou conhecimento da questão de constitucionalidade suscitada nas alegações complementares e, julgando improcedentes as conclusões da recorrente, negou provimento ao recurso.
2. - É, pois, deste aresto que vem interposto o presente recurso, ao abrigo da alínea B) do n.º1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, pelo qual se pretende a apreciação da seguinte questão de constitucionalidade, que a recorrente, conforme refere no requerimento de fls.
188, suscitou perante o Supremo Tribunal Administrativo, nas conclusões 9ª e 10º das alegações complementares de fls. 152 e segs., nas quais invoca que:
'9- O art. 1º do D.L.225-F/76, de 31/3, consagra um poder que deixou de ser discricionário para ser vinculado quando passou a dar cobertura a isenções sobre importações de cereais para rações por operadores privados, 'que não auferiam' do disposto no D.L.26/75.
10- Entendimento contrário oporá o artigo 1º do D.L.225-F/76 aos princípios constitucionais da igualdade dos cidadãos perante a lei, da legalidade tributária e da imparcialidade da Administração e ao disposto no artigo 80º, alínea b) da Constituição (inconstitucionalidade material).'
Sobre este requerimento incidiu o despacho de fls. 192, proferido pelo Conselheiro relator, que não admitiu o recurso com fundamento em que «a matéria das conclusões 9ª e 10ª das alegações complementares de fls. 152 e segs. não foi apreciada no acórdão de 16-04-97 - de que se pretende recorrer
-, nos termos e pelos fundamentos que constam do seu capítulo 5, a fls. 179».
Contra este despacho insurgiu-se a recorrente mediante reclamação, oportunamente deduzida, que foi decidida pela conferência no STA por acórdão de 1 de Abril de 1998, que revogou o despacho reclamado, admitindo o recurso para o Tribunal Constitucional.
Neste Tribunal, a recorrente, respondendo ao convite do relator formulado ao abrigo do n.º5 do artigo 75º-A da Lei n.º 28/82, precisou o seu requerimento de interposição de recurso, como consta de fls. 215.
3.- A recorrente apresentou as alegações, que constam de fls.
217 a 223, as quais rematou com as seguintes conclusões:
'1. Após a liberalização da importação de cereais [o legislador] induziu a obrigatoriedade de igualdade de tratamento tributário dos importadores públicos e privados;
2. O acesso às isenções de direitos aduaneiros na importação de cereais para abastecimento público do mercado, onde se inclui a indústria de rações, a par da alimentação humana, pode fazer-se através de diversos diplomas aplicados sempre em subordinação aos mesmos pressupostos;
3. Assim a vinculação à atribuição da isenção ao importador estatal teria de ser extensiva em igualdade de circunstâncias aos operadores privados.
4. Entendimento diferente, como aquele que é veiculado no aresto recorrido poria o art. 1º do DL 26/75 e o art. 1º do DL 225-F/76 em colisão com os art. 13º,
81ºf), 82º, 106º e 266º da CRP, de que resultaria a sua inconstitucionalidade material.'
O Ministério Público e a Fazenda Nacional apresentaram contra-alegações - remetendo esta última para as conclusões do primeiro, que se pronunciou no sentido do não conhecimento do recurso -, sintetizando-as nos seguintes termos:
'1º No caso dos autos, a revogação da isenção de direitos na importação de matérias, primas destinadas a transformação na indústria, que tinha sido inicialmente concedida à sociedade recorrente pelo Ministro das Finanças não foi ditada por qualquer apreciação 'discricionária', fundada na avaliação do interesse na dita importação, mas apenas pelo facto de se ter apurado que a mercadoria efectivamente importada não correspondia àquela para que havia sido requerida a isenção.
2º Sendo tal divergência, naturalmente imputável à sociedade beneficiária da isenção, que determinou a revogação, por erro nos pressupostos de facto, da isenção de direitos inicialmente concedida.
3º A decisão recorrida não interpretou, pois, a norma constante do n.º 1 do Decreto-Lei n.º 225-F/76 com o sentido de nela estar consagrada um poder discricionário do Ministro das Finanças na avaliação e no deferimento ou indeferimento das isenções de direitos que lhe fossem requeridas por importadores privados.'
Notificada para se pronunciar quanto à matéria da questão prévia suscitada pelos recorridos (não aplicação pela decisão recorrida da norma que constitui objecto do recurso, com o sentido que lhe atribui a recorrente), esta nada disse.
II
1.- Delimitação do objecto do recurso:
De acordo com o requerimento de interposição de recurso (cfr. fls. 198), completado com o de fls. 215, e apesar da forma pouco clara, mas ainda assim perceptível, como é formulado, verifica-se que a recorrente pretende a apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 1º do Decreto-Lei n.º
225-F/76, de 31 de Março, interpretada no sentido de a concessão de isenção ou redução de direitos de importação sobre cereais para rações por operadores privados, que 'não auferiam' do disposto no Decreto-Lei n.º 26/75, de 24 de Janeiro, constituir um poder discricionário da administração, e não ter passado a constituir um poder vinculado - por violação dos princípios da igualdade, da legalidade tributária e da imparcialidade da Administração (artigo 266º, n.º2) e do artigo 80º, alínea b) da Constituição. Porém, nas alegações de recurso, mais precisamente, na conclusão 4ª - ao concluir-se que 'entendimento diferente, como aquele que é veiculado no aresto recorrido poria o art. 1º do DL 26/75 e o art. 1º do DL 225-F/76 em colisão com os art. 13º, 81º f), 82º, 106º e 266º da CRP, de que resultaria a sua inconstitucionalidade material' - pretende-se incluir no âmbito da questão de constitucionalidade normativa submetida à apreciação deste tribunal a norma do artigo 1º do Decreto-Lei n.º 26/75, de 24 de Janeiro. Conforme vem sendo reafirmado por este Tribunal, o requerimento de interposição de recurso limita o seu objecto às normas nele indicadas (cfr. artigo 684º n.º2 do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 69º da Lei do Tribunal Constitucional, conjugado com o n.º1 do artigo 75º-A desta Lei), sem prejuízo de esse objecto, assim delimitado, vir a ser restringido nas conclusões das alegações (cfr. citado artigo 684º, n.º3). O que o recorrente não pode fazer é nas alegações (recte, nas suas conclusões) ampliar o objecto do recurso antes definido. (Neste sentido, cfr. acórdãos n.ºs 71/92, 323/93, 10/95, 35/96, 379/96 e 20/97, publicados na IIª Série do Diário da República de, 18/08/92, 22/10/92,
22/03/95, 02/05/96, 15/07/96 e 01/03/97, respectivamente).
Deste modo, o objecto do presente recurso é restrito à norma do artigo 1º do Decreto-Lei n.º 225-F/76, na interpretação supra referida, que o recorrente diz ter sido acolhida no acórdão recorrido.
2.- Do não conhecimento do recurso:
2.1. - Suscitou o Ministério Público a questão prévia do não conhecimento do recurso - à qual a recorrente não deu resposta - argumentando que a decisão recorrida não interpretou a norma impugnada com o sentido de nela estar consagrado um poder discricionário do Ministro da Finanças na avaliação e no deferimento ou indeferimento das isenções de direitos que lhe fossem requeridas por importadores privados.
A ser assim, não poderá efectivamente conhecer-se do recurso por falta de um dos pressupostos de admissibilidade, de indispensável congregação.
Na verdade, conforme a jurisprudência reiterada, impressiva e uniforme do Tribunal Constitucional, os recursos de constitucionalidade interpostos ao abrigo da alínea b) do n.º1 do artigo 70º da sua Lei Orgânica, como é o caso dos presentes autos, só são admissíveis se congregarem necessariamente certos pressupostos, um dos quais consiste na suscitação da questão de constitucionalidade pelo recorrente durante o processo, o que subentende a aplicação da norma impugnada como ratio decidendi, pela decisão recorrida. Assim, competindo aos recorrentes o ónus de suscitação da questão concreta de constitucionalidade, deverão estes cumpri-lo, referenciando-a normativamente, pondo desse modo em causa, por alegada violação de preceito constitucional, o critério jurídico utilizado na decisão ao aplicar a norma jurídica questionada, sendo que o cumprimento desta imposição terá que ser mantido nas conclusões da respectiva motivação, atenta a finalidade destas. E, nesta medida, quando, nomeadamente, se discuta uma dimensão interpretativa, como é o caso, os recorrentes, além de suscitarem atempadamente a questão, deverão fazê-lo de forma clara e perceptível, em termos de o Tribunal recorrido saber que tem essa questão para resolver e não subsistam dúvidas quanto ao sentido da mesma - até porque, frequentemente, não se revela tarefa fácil traçar com nitidez a linha de demarcação entre a interpretação discutida e a decisão qua tale, cuja reapreciação não pode, nesta sede, ser reaberta.
2.2. - No caso dos autos, a inconstitucionalidade do artigo 1º do Decreto-Lei n.º 225-F/76, na dimensão interpretativa acima assinalada, foi suscitada pela recorrente nas conclusões 9ª e 10ª das alegações para o Supremo Tribunal Administrativo, mas, relativamente a esta matéria decidiu o aresto recorrido não conhecer da questão, argumentando que, salvo casos de conhecimento oficioso, os recursos jurisdicionais destinam-se a reapreciar o decidido pelo tribunal inferior e não a conhecer de questões novas, como é o caso (cfr. ponto
5. a fls. 179).
Tal facto, não obsta, porém, a que este Tribunal aprecie a questão, posto que a norma, na dimensão interpretativa impugnada, haja sido efectivamente convocada e aplicada na decisão recorrida.
2.3. - Vejamos, pois, em que se fundamenta o acórdão recorrido para negar provimento ao recurso:
'6. Assim, as questões a reapreciar são as que o acórdão recorrido analisou nos seus capítulos 6 e 7, e que acima se sintetizaram sob os n.ºs 3.1 a 3.4.
6.1. Com o aresto recorrido consideramos documentalmente provado (v. apenso instrutor n.º 3) que as isenções de direitos e sobretaxa de importação concedidas, sob certas condições, à ora recorrente nos despachos de 17-1-86 e
25-2-86 (este último concedendo apenas isenção de direitos), da autoria do Director dos STABF da DGA, só abrangiam importações de mandioca em pallets, mercadoria a que correspondia o artigo pautal 07.06: isenção de direitos e de sobretaxa em relação a determinadas importações dessa mercadoria por ela realizadas em Março e Abril de 1985, e isenção de direitos nas importações dessa mercadoria (e não 'todas as importações de matérias-primas não produzidas em Portugal', que a ora recorrente alega) a realizar por ela até 28-2-96.
6.2. Com o acórdão recorrido também entendemos estar provado (v. apenso instrutor n.º 2) que o requerimento da recorrente datado de 26-11-85 (entrado na DGI em 28-11-85, com o n.º 125.998) e dirigido ao Senhor Ministro das Finanças e do Plano a solicitar, ao abrigo dos DL nas 225-F/76 e 216-A/85, isenção de direitos de importação de mercadoria, proveniente do Brasil, que identificou como resíduos da fabricação do amido de milho de teor em proteínas, calculado sobre a matéria seca, superior a 40% em peso, para uso exclusivo na indústria de rações, com o artigo pautal 23.03.150, só foi decidido – tendo-o sido favoravelmente – por despacho de 10-08-88, da autoria do Subdirector-Geral das Alfândegas Orlando Ribeiro, no uso de competência delegado.
6.3. Com o aresto recorrido também entendemos, pois, que o aqui contenciosamente impugnado despacho de 13-7-89, revogatório do de 10-8-88 (que era constitutivo de direitos para a ora recorrente) e da mesma autoria deste, foi proferido dentro do prazo de um ano fixado no n.º 2º do corpo do art.º 18º da LOSTA56, com referência ao art.º 28º, n.º 1, alínea c), da LPTA85.
6.4. Finalmente também com o acórdão recorrido entendemos que se verifica o outro requisito estabelecido naquele preceito da LOSTA56, ou seja, o de o acto de revogação se dever fundar em ilegalidade do acto revogado. Com efeito, o impugnado despacho de 13-7-89 não incorreu no vício, que a recorrente lhe assaca, de erro nos pressupostos de facto ao revogar o citado acto (de 10-8-88) de deferimento do pedido de isenção de direitos por o mesmo se ter baseado no pressuposto de a mercadoria nele em apreço ser, como constava do requerimento, do BD e do BRI, resíduos da fabricação do amido de milho de teor em proteína, calculado sobre a matéria seca, superior a 40% em peso, a que corresponderia o artigo pautal 23.03.150 (que implica um teor em amido inferior a 45% e um teor em cinza superior a 2%), quando na realidade a mercadoria importada e em relação à qual se pretendia essa isenção era milho partido desgerminado, com um teor em proteína (referente à matéria seca) inferior a 14%, um teor em amido de cerca de 80% e um teor em cinza não superior a 1,2%, a que cabia uma diferente classificação pautal (..).'
2.4. - Deste modo, verifica-se que a revogação da isenção que havia sido inicialmente concedida à recorrente pelo despacho de 18 de Agosto de
1988, operada pelo despacho do Subdirector-Geral das Alfândegas, de 13 de Julho de 1989, proferido no exercício de competência delegada, teve por fundamento o facto de se ter vindo a apurar supervenientemente, em consequência da prova pericial produzida, que a mercadoria importada pela recorrente não correspondia
àquela para que tinha sido requerida e concedida a isenção de direitos.
Como se refere na parte decisória do acórdão recorrido acima transcrita - e é salientado pelos recorridos -, o requerimento da recorrente reporta-se à isenção de direitos de importação de mercadoria, proveniente do Brasil, identificada como resíduos de fabricação de amido de milho, tendo-se vindo a apurar que, afinal, a mercadoria efectivamente importada era milho partido desgerminado, a que correspondia diferente classificação pautal, e relativamente à qual a recorrente não pedira isenção de direitos.
Deste modo, a revogação da isenção dos direitos na importação não se fundou no exercício de qualquer poder, discricionário ou não, por parte do Ministro das Finanças, proferido no âmbito de aplicação do normativo impugnado, antes decorreu da mera divergência entre o tipo de produto que a recorrente dizia ir importar e aquele que efectivamente importou.
Assim, não se surpreende na decisão recorrida a alegada aplicação da norma impugnada com o sentido inconstitucional que a recorrente lhe atribui.
III
Nestes termos, decide-se não tomar conhecimento do recurso.
Custas pela recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 8 unidades de conta. (oito). Lisboa, 5 de Abril de 2000 Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza José de Sousa e Brito Messias Bento Luís Nunes de Almeida