Imprimir acórdão
Proc. nº 745/98
1ª Secção Relator: Cons.º Luís Nunes de Almeida
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO
1. C..., LDA recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa do acórdão de 10 de Novembro de 1995 do 12º Juízo Cível da comarca de Lisboa, que, declarando resolvido o contrato de sublocação por falta de pagamento de rendas e falta de depósito liberatório suficiente, a condenara a despejar o locado e a pagar à sublocadora T..., LDA as rendas em dívida vencidas e vincendas até
àquela entrega e bem assim a indemnizar aquela sublocadora pelo valor dos juros de mora relativos a cada renda em falta, tendo absolvido aquela sociedade quanto ao restante pedido contra ela formulado.
Nas suas alegações, a recorrente restringiu desde logo o objecto do recurso à sua sucumbência, pedindo que fosse declarada a suficiência dos depósitos efectuados para obstar à resolução do contrato, não impugnando a sua condenação relativamente ao pagamento das rendas vencidas e vincendas e respectivos juros.
Por acórdão de 18 de Fevereiro de 1997, a Relação de Lisboa confirmou a decisão recorrida. Considerou-se nesse aresto que «os valores depositados pelo apelante eram insuficientes para cobrir as rendas peticionadas em mora com a respectiva indemnização de 50%, pelo que não fariam caducar o pedido de resolução por falta de pagamento das rendas».
2. Inconformada, a recorrente interpôs recurso desta decisão para o Supremo Tribunal de Justiça. Nas sua alegações, formulou, entre outras, as seguintes conclusões:
C) Atento o referido em B), e mesmo desconsiderando o abuso de direito que vai alegado, o máximo que se pode considerar é que a Recorrida se teria constituído em mora a partir de Outubro de 1989, pelo que os valores depositados são, na pior das hipóteses, insuficientes em Esc. 17.324$00.
[...]
Assim, só se poderá considerar existir mora depois de Novembro e Dezembro de 1991, data em que a Recorrente faltou ao pagamento de duas rendas
(as únicas num período de 70 meses), caso em que as quantias depositadas são mais que suficientes.
E) Por outro lado, existe uma manifesta desproporção no decretamento da resolução quando estão em causa mais de Esc. 1.500.000$00 e a insuficiência do depósito não pode ultrapassar os Esc. 17.324$00.
Já no Supremo Tribunal de Justiça, o relator elaborou despacho em 22 de Janeiro de 1998, pronunciando-se pela inadmissibilidade do recurso. Considerou aí:
Desta decisão pede revista a Ré, que, alegando para o recurso, visa a sua revogação, com decisão de absolvição dela do pedido, «declarando a suficiência dos depósitos».
É pois a decisão de resolução do contrato de sublocação, contida na parte dispositiva da sentença de 1ª instância e confirmada pelo acórdão recorrido, a impugnada através da revista. Isso resulta claramente das conclusões E), D) e G) da alegação da recorrente, que delimitam o objecto do recurso (artigos 684º, nº 3 e 690º, nº 1, do Cód. de Proc. Civil).
E, como se dispõe no artigo 678º, nº 1, do Cód. de Proc. Civil, só é admissível recurso ordinário nas causas de valor superior à alçada do tribunal de que se recorre desde que as decisões impugnadas sejam desfavoráveis para o recorrente em valor também superior a metade da alçada desse tribunal.
Ora, o valor da decisão de resolução do contrato, desfavorável para a recorrente, impugnada, é de 219.888$00, correspondente à renda anual (artigo
307º, nº 1, do Cód. de Proc. Civil). O direito da A. às rendas vencidas e vincendas e aos juros de mora não vem posta em causa no recurso, como se disse.
Notificada para se pronunciar, a recorrente manifestou o seu entendimento no sentido de que o valor da sua sucumbência estava «representada no facto de as instâncias terem desprezado, terem considerado insuficiente, o depósito de Esc. 1.776.590$00». E afirmou ainda:
A Recorrente disse e provou que depositou tal quantia e isso era suficiente para obviar ao despejo, e as instâncias entenderam que não, desprezando esses depósitos de mais de 1.700 contos.
[...]
É preciso ter presente que a fixação do valor da causa é um critério independente e mesmo estranho à aferição do valor da sucumbência.
Por despacho de 26 de Fevereiro de 1998, o relator decidiu não conhecer do recurso.
3. A recorrente reclamou, então, dessa decisão para a conferência, onde reiterou a fundamentação apresentada na anterior resposta e suscitou ainda a questão de inconstitucionalidade da norma constante do artigo 307º, nº 1, do CPC, nos termos seguintes:
Por fim, interessa ter presente que a interpretação expendida no Douto Despacho a propósito do art. 307º, nº 1, do CPC é incompatível e violadora do direito constitucionalmente consagrado ao recurso das decisões judiciais, na medida em que o veda num caso em que todos os requisitos para o recurso estão preenchidos – valor da acção e valor da condenação/sucumbência – avaliando o montante da sucumbência por recurso a um critério que não se afere pela verdade material, pelo valor real do direito posto em causa (art.- 20º da CRP; cf. sobre o direito de recurso, Gomes Canotilho e Vital Moreira, in «Constituição da República Portuguesa – Anotada», 3ª ed., pág. 164).
Por acórdão de 4 de Junho de 1998, o STJ decidiu manter a decisão reclamada de não conhecimento do recurso.
4. É dessa decisão que vem interposto o presente recurso, ao abrigo do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea b), da LTC, para apreciação da questão de inconstitucionalidade da norma constante do artigo 307º, nº 1, do Código de Processo Civil, na interpretação seguida pelo acórdão recorrido, tida por violadora do direito ao recurso, consagrado no artigo 20º da Constituição.
Admitido o recurso, subiram os autos a este Tribunal, onde a recorrente, nas respectivas alegações, formulou as seguintes conclusões:
A) A norma do art. 307º, nº 1 do C.P.C. estabelece um critério de cálculo do valor da causa diferente e independente do valor da sucumbência.
B) A remissão operada pelo art. 678º, nº 1, parte final do C.P.C. não tem por efeito a aplicação dos critérios previstos nos arts. 305º a 319º do C.P.C. sem mais.
C) A interpretação do art. 307º, nº 1 do C.P.C. com o sentido de indicar a fórmula com base na qual é calculado o conteúdo económico do direito de arrendamento – critério do valor da renda anual – é inconstitucional por violar o direito de recurso, previsto no art. 20º da C.R.P.
D) A fórmula do art. 307º, nº 1 do C.P.C. tem, na sua origem, intuitos de garantia e tutela do direito à habitação, previsto no art. 65º, nº 1 da C.R.P., criando uma ficção para efeitos de cálculo do valor da causa. Na prática, porém, a referida norma limita não só o direito à habitação e mais em concreto o direito de arrendamento, limitando igualmente o direito de recurso.
E) A fórmula prevista no art. 307º, nº 1 do C.P.C.- não permite uma correcta e real avaliação do conteúdo económico do direito de arrendamento.
F) Em face dos outros critérios de determinação do valor da causa, designadamente o previsto no art. 310º, nº 1 do C.P.C. com relevo para os presentes autos, o art. 307º, nº 1 do C.P.C. viola o princípio da igualdade, consagrado no art. 13º da C.R.P., por tratar situações que, de um ponto de vista de justiça material, são semelhantes, de forma diversa.
G) Em rigor, por efeito do art. 307º, nº 1 do C.P.C. opera-se uma inversão na graduação de valores, pois que ao invés da pretendida tutela acrescida do direito de arrendamento, como era intenção do legislador processual de 1967, o regime instaurado traduz-se numa limitação do direito de recurso.
Nas suas contra-alegações, a recorrida, salientando que «o valor da decisão de resolução do contrato desfavorável para a recorrente é de
219.888$00 correspondente à renda anual (artº 307º, nº 1 C.P.C.) sendo certo que o direito da A. às rendas, vencidas e vincendas e aos juros não foi posto em causa no recurso», prossegue assim o seu raciocínio:
Para efeitos de recurso ordinário só é o mesmo admissível desde que as decisões impugnadas sejam desfavoráveis para o recorrente em valor superior a metade da alçada do tribunal «a quo».
Ora, no que respeita ao caso vertente, não impugnou a R. na contestação o pedido relativo às rendas vencidas e vincendas e apressou-se a fazer o depósito do que considerava em falta para evitar o prosseguimento da acção.
Como decorre das suas conclusões na alegação de apelação não põe a R. em causa a sua obrigação de pagar as rendas vencidas e vincendas, nem a condenação no pagamento dos juros de mora.
[...]
O direito à habitação invocado pela recorrente não pode ofender o direito de propriedade de terceiro e implica o cumprimento das correspondentes obrigações perante o senhorio.
[...]
Também não é admissível que numa acção com o valor de 10 mil contos, a parte vencida em 5 mil escudos possa recorrer até ao Supremo Tribunal de Justiça.
5. Entendendo que se não devia tomar conhecimento do recurso, o relator elaborou exposição com o seguinte teor:
Dispõe a norma constante do artigo 307º, nº 1, do Código de Processo Civil:
1. Nas acções de despejo, o valor é o da renda anual, acrescido das rendas em dívida e da indemnização requerida.
Por sua vez, o artigo 678º, nº 1, determina:
1. Só é admissível recurso ordinário nas causas de valor superior à alçada do tribunal de que se decorre desde que as decisões impugnadas sejam desfavoráveis para o recorrente em valor também superior a metade da alçada desse tribunal: em caso, porém, de fundada dúvida acerca do valor da sucumbência, atender-se-á somente ao valor da causa.
Em relação a esta norma do artigo 678º, nº 1, do CPC não suscitou a recorrente, durante o processo, qualquer questão de inconstitucionalidade, apenas vindo a referi-la nas alegações de recurso já neste Tribunal.
Ora, nos termos do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea b), da LTC, é pressuposto do recurso de constitucionalidade que a norma questionada tenha sido aplicada pela decisão recorrida e que a questão de constitucionalidade a ela relativa tenha sido suscitada durante o processo por forma a que o tribunal a quo dela tenha podido tomar conhecimento. Nem no próprio requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade (momento já não idóneo para essa suscitação, por também não se tratar de um desses casos em que esse requerimento fosse a primeira oportunidade processual para o efeito) a recorrente indicou essa norma como objecto do recurso.
Desta forma, a questão do valor da causa para efeitos de recurso em função da sucumbência da recorrente está afastada, dela se não podendo conhecer.
Apenas está em causa, nos presentes autos, a norma constante do artigo
307º do CPC, que contém o critério de determinação do valor da acção de resolução do contrato de arrendamento.
Pois bem, e à semelhança do que se passou no Acórdão nº 95/95 (Diário da República, II Série, de 20 de Abril de 1995), uma vez que a recorrente nunca impugnou o valor da acção, este fixou-se pelo menos desde a prolação do despacho saneador, pelo que não pode essa questão ser agora suscitada. Como se pode ler nesse Acórdão:
Ora, tendo o autor, ora recorrido, indicado na petição inicial como valor da acção de despejo o de 48.582$00 (a fls. 3 dos autos), os réus, ora recorrentes, não impugnaram esse valor, não suscitando, nomeadamente, a inconstitucionalidade da norma do art. 307º, nº 1, daquele diploma. Mas eles não podiam desconhecer que a lei impõe que ao valor processual (no caso, o valor de
48.582$00) 'se atenderá para determinar ... a relação da causa com a alçada do tribunal' (art. 305º, nº 2, do mesmo Código). A falta de impugnação do valor da acção por parte do réu tem o significado legal de aceitação do valor atribuído à causa pelo autor (art. 314º, nº 1). O valor da acção ficou, assim, definitivamente fixado no valor acordado, depois de proferido o despacho saneador (art. 315º, nº 2, do Código de Processo Civil; no saneador não se fixou qualquer outro valor à causa - fls. 39 a 40 vº).
[...]
As questões que se prendem com a eventual inconstitucionalidade do disposto no nº 1 do art. 307º do Código de Processo Civil foram, assim, suscitadas extemporaneamente, após o trânsito em julgado da decisão que condiciona a fixação do valor processual admitido por acordo das partes.
Também no caso dos autos, o valor da acção indicado na petição inicial
(2.156.334$00) compreendia a soma dos pedidos de rendas vencidas (1.081.116$00), juros de mora (405.330$00) e honorários do advogado e do solicitador da Autora
(450.000$00), bem como do valor do pedido de resolução do contrato, calculado na base do montante anual da renda (219.888$00). E esse valor nunca foi impugnado.
8. Encontrando-se, assim, definitivamente fixado o valor da causa, e não tendo a recorrente atempadamente impugnado essa matéria, no que à norma constante do artigo 307º, nº 1, do CPC se refere, nem tendo suscitado durante o processo a questão de inconstitucionalidade relativamente à norma que determina o valor da sucumbência para efeitos de recurso (artigo 678º, nº 1, do CPC), não se verificam os pressupostos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade previstos no artigo 70º, nº 1, alínea b), da LTC.
6. Notificada desta exposição, a recorrente veio responder pela forma seguinte:
[...]
Perscrutados os autos, constata-se que em momento algum se verifica que a Recorrida ou as diversas instâncias hajam declarado ou fixado que o valor do pedido de resolução do contrato de subarrendamento era de Esc. 219.888$00.
[...]
Nunca qualquer Despacho se pronunciou sobre o cálculo correcto ou incorrecto do valor da acção.
2. 4. Só agora, no Douto Despacho de 17/12/99, se avança uma explicação para tal facto: esse montante resulta da soma de diversas parcelas, às quais é atribuído um valor preciso, de acordo com aquilo que consta da petição inicial.
[...]
3. No Douto Despacho de 17/12/99, decompõe-se valores, como antes nunca fora feito, depois afirma-se que está definitivamente fixado o valor da causa e daí parte-se para a conclusão que a Recorrente aceitou que o valor do pedido de resolução era de Esc. 219.888$00.
3. 1. Importa destrinçar: efectivamente o valor da causa está definitivamente fixado, mas diferente disso é dizer que está fixado – ou foi alguma vez fixado – que o valor do pedido de resolução do contrato de subarrendamento era de Esc. 219.888$00.
3.2. Aliás, a não impugnação do valor da causa importa tão somente que se considere fixado o valor da causa, mas não importa que se considere fixado o valor de qualquer pedido parcial.
[...]
O Supremo Tribunal de Justiça entendeu que o valor da resolução do contrato de subarrendamento é, por força do critério fixado no art. 307º, nº 1, do CPC, de Esc. 219.888$00 e daí que tenha julgado que o valor da sucumbência da Recorrente não permite recurso para essa instância final;
A Recorrente pugna pela inconstitucionalidade desse preceito 'tout court' ou pelo menos da interpretação que dele é feita no sentido de que tal preceito fixa o valor da resolução de um contrato de arrendamento,
De forma que, sem aplicação do preceito apodado de inconstitucional ou da interpretação que dele é feita, o Supremo Tribunal de Justiça deverá recorrer ao critério fixado no art. 678º, nº 1, in fine, do CPC, pois nos autos não existem – em toda a verdade – elementos para fixar o valor material e real da resolução do contrato de subarrendamento (este último passo, incumbirá ao Supremo Tribunal de Justiça se e quando este Tribunal Constitucional declarar procedente o presente pedido da Recorrente).
4. A Recorrente nunca arguiu, nem quis arguir, a inconstitucionalidade do art. 678º, nº 1, do CPC.
Não se quer pôr em causa que não há recurso das decisões que sejam desfavoráveis ao recorrente em menos de metade do valor da alçada do tribunal recorrido.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTOS
7. A resposta da recorrente em nada abala a exposição do relator.
Com efeito, dúvidas não se oferecem quer quanto ao facto de o valor da causa não ter sido oportunamente impugnado, encontrando-se, assim, definitivamente fixado, quer quanto ao facto irrefutável de esse valor corresponder necessariamente à soma dos pedidos efectuados na petição inicial, sendo certo que o pedido relativo à resolução do contrato de arrendamento não poderia deixar de se encontrar determinado naquela quantia de 219.888$00, correspondente ao montante anual da renda, em aplicação do preceituado no artigo
307º, nº 1, do Código de Processo Civil, como se demonstrou aritmeticamente na mencionada exposição.
Não se vê, pois, qualquer razão que leve este Tribunal a afastar-se da jurisprudência adoptada no citado Acórdão nº 95/95, onde, em caso similar, se decidiu não tomar conhecimento do recurso.
III – DECISÃO
8. Nestes termos, decide-se não tomar conhecimento do recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 8 UC’s.
Lisboa, 21 de Março de 2000 Luís Nunes de Almeida Maria Helena Brito Vítor Nunes de Almeida Artur Maurício José Manuel Cardoso da Costa