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Proc. nº 487/99 TC – 1ª Secção Relator: Consº. Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 – O Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal Tributário de 1ª Instância do Porto interpôs recurso para este Tribunal, ao abrigo do artigo 70º nº. 1 alínea a) da Lei nº. 28/82, da sentença que, recusando a aplicação do Regulamento Municipal de Obras, aprovado por deliberação da Assembleia Municipal do Porto, com fundamento em inconstitucionalidade formal, anulou o acto de liquidação da taxa de urbanização no valor de 24.441.075$00, judicialmente impugnado por R..., S.A, com sede no Lugar de Meladas. Mozelos, Santa Maria da Feira.
Nas suas alegações concluiu o Ministério Público nos seguintes termos:
'1º - Embora o suprimento de uma possível inconstitucionalidade formal – decorrente de, em violação do preceituado no artigo 115º da Constituição da República Portuguesa, certo regulamento não conter originariamente menção bastante da respectiva lei habilitante – não produza a constitucionalização superveniente e retrospectiva de tal vício de acto normativo, importará determinar, quando o suprimento for anterior à impugnação contenciosa do acto de liquidação de certa taxa municipal, se a actividade da Administração, no âmbito da reclamação graciosa, não traduzirá, porventura, renovação ou convalidação do acto administrativo de originária liquidação da taxa, realizada já ao abrigo de diploma regulamentar formalmente válido.
2º - Como se decidiu no acórdão nº. 639/95 do Plenário deste Tribunal Constitucional, é lícito às autarquias locais o estabelecimento e cobrança de taxas de urbanização, como contrapartida da efectiva realização de infra-estruturas urbanísticas que visem facultar aos municípios a normal utilização das obras por eles realizadas, na sequência de anterior licenciamento.
3º - Tais receitas – independentemente do modo 'presumido' como são calculadas, com base em índices estabelecidos em regulamento – têm natureza e estrutura sinalagmática, não se configurando como 'impostos', cujo estabelecimento está obviamente vedado às autarquias locais.
4º - A eventual não realização efectiva e pontual pela autarquia da contrapartida ou contraprestação que decorre do pagamento da referida taxa de urbanização, não a transmuta em imposto, apenas facultando ao particular a via de acção de incumprimento ou de restituição das quantias pagas.
5º - Termos em que deverá proceder o presente recurso.'
Em contra-alegações, a recorrida pugna pela confirmação da decisão recorrida na parte em que recusou a aplicação do referido Regulamento, entendendo ainda que se verifica a inconstitucionalidade orgânica do mesmo diploma.
Cumpre decidir.
2 – A sentença recorrida deu como provada a seguinte matéria de facto:
'- Em 25 de Maio de 1995, a impugnante apresentou junto da Câmara Municipal do Porto (C.M.P.) o requerimento de que há cópia a fls. 13, onde solicitava a emissão de uma licença de obras para o seu prédio localizado na R. das Telheiras, nº. 418/456, e, R. Nova do Tronco, no Porto;
- Em 25 de Julho de 1996, o referido pedido de licenciamento foi objecto de aprovação expressa, pela C.M.P.;
- Em 18 de Setembro de 1996 a C.M.P. notificou essa decisão à impugnante, dando-lhe a conhecer que deveria proceder ao pagamento da quantia global de 25 804 741$00, a título de taxa de licença correspondente;
- Em 6 de Novembro de 1996, a impugnante pagou a quantia de 25 805
086$00, à C.M.P., de acordo com a liquidação constante do alvará de licença nº.
277, de 1996, de que há cópia a fls. 12, na qual está incluída a taxa de urbanização no valor de 24 441 075$00, por o pagamento das referidas quantias ser condição da emissão do alvará correspondente, sem o qual não poderia realizar as obras em causa;
- Em 17 de Dezembro de 1996, a impugnante reclamou para o Presidente da C.M.P. da liquidação da taxa de urbanização, como consta dos documentos de fls. 18 e
19;
- Essa reclamação veio a ser indeferida, por despacho proferido em 14 de Outubro de 1997, pela Directora do Departamento de Finanças, da C.M.P., pelas razões constantes do documento de que há cópia a fls. 21 e 22;
- Este despacho foi notificado à impugnante em 20 de Outubro de 1997, doc. de fls. 92;
- O R.M.O da C.M.P. – que criou a taxa municipal pela realização de infraestruturas urbanísticas – foi aprovado pela Assembleia Municipal em 9 de Junho de 1989, e, tornado público pelo edital nº. 11/89, de 14.08, e, posteriormente alterado pelos editais nº. 23/92 e 1/92;
- No dia 27 de Maio de 1997 foi aprovada, por unanimidade, a deliberação da Assembleia Municipal da C.M.P., segundo a qual naquele R.M.O passaria a constar que o Regulamento foi aprovado pela Assembleia Municipal ao abrigo do determinado no art. 11º, alínea a), da L. 1/87, de 06/01, art. 39º, nº. 2, alínea L, do DL 100/84, de 29.03, art. 43º, nº. 1, do DL 400/84, de 31.12, DL
448/91, de 29.11, com as alterações introduzidas pelo DL 334/95, de 28.12 e, L.
26/96, de 01.08;
- Não se apurou quais as infra-estruturas urbanísticas a realizar ou realizadas pela C.M.P., em contrapartida do pagamento da taxa de urbanização em referência, e, por causa do referido empreendimento;
- A presente impugnação foi instaurada em 15 de Outubro de 1997;'
Assente nesta matéria de facto e ainda na circunstância de o acto de liquidação ter ocorrido antes de 23 de Abril de 1997 e considerando que só em 27 de Maio de
1997 fora aprovada a deliberação da Assembleia Municipal da Câmara Municipal do Porto segundo a qual no Regulamento Municipal de Obras passaria a constar a lei habilitante (anteriormente tal não acontecia), a sentença impugnada recusou a aplicação daquele Regulamento por violação do artigo 115º da CRP
(inconstitucionalidade formal).
Nas alegações de recurso apresentadas neste Tribunal, o Exmo. Magistrado do Ministério Público não põe directamente em causa este julgado.
Pode mesmo dizer-se que o recorrente não censura o entendimento de que o Regulamento Municipal de Obras não citava a lei habilitante, enfermando, assim, de inconstitucionalidade formal.
E, na verdade, dispondo, ao tempo em que foi aprovado o dito Regulamento, o artigo 115º nº. 7 da CRP que 'os regulamentos devem indicar expressamente as leis que visam regulamentar ou que definem a competência subjectiva ou objectiva para a sua emissão', era patente a violação desta norma, pois não era, em parte alguma, citada a lei habilitante.
Sendo esta a situação à data em que foi praticado o acto de liquidação impugnado, cuja legalidade haverá de ser ajuizada de acordo com o princípio
'tempus regit actum', impunha-se o julgado de invalidade daquele acto por recusa de aplicação do regulamento ao abrigo do qual ele fora emitido.
Admite, porém, o recorrente que o facto de em 27 de Maio de 1997 ter sido aprovada deliberação da Assembleia Municipal do município do Porto, segundo a qual do Regulamento passaria a constar que ela fora aprovada ao abrigo do determinado no artigo 11º alínea a) da Lei nº. 1/87, de 6 de Janeiro, artigo 39º nº. 2, alínea l) do DL nº. 100/84 de 29 de Março, e no artigo 43º nº. 1 do DL nº. 400/84, de 31 de Dezembro, DL nº. 448/91, de 29 de Novembro, com as alterações introduzidas pelo DL nº. 334/95 de 28 de Dezembro e Lei nº. 26/96 de
1 de Agosto, possa influir na decisão do presente recurso, sem embargo de não ter a virtualidade de sanar, com efeitos 'ex tunc', a inconstitucionalidade.
Isto porque 'a circunstância de terem incidido sobre a situação litigiosa diversas decisões de órgãos camarários, reiterando o débito decorrente da taxa em questão (cujo exacto momento de liquidação, aliás, se ignora praticadas num momento em que já não subsistia seguramente o vício de inconstitucionalidade formal imputado à versão originária do Regulamento, é susceptível de abalar a linearidade da conclusão expressa na decisão recorrida – segundo a qual seria necessariamente à data da liquidação originária da taxa de urbanização em causa que cumpria averiguar da constitucionalidade formal do regulamento em que o mesmo se suportara – sem indagar se, porventura, não terão ocorrido ulteriores actos da Administração (mas anteriores à impugnação judicial deduzida pelo particular) que traduzem, nomeadamente eventual renovação ou suprimento do acto nulo, com fundamento na versão (já formalmente conforme à Constituição) do regulamento em causa'.
Mas não tem razão.
Não devendo ignorar-se que o presente recurso integra um processo de fiscalização concreta de constitucionalidade e que o Tribunal Constitucional não pode substituir-se ao tribunal 'a quo' na aplicação do direito infra-constitucional, constitui obstáculo intransponível à tese admitida pelo recorrente o facto de, no uso dos seus poderes de cognição, o tribunal tributário de 1ª instância ter fixado o objecto da impugnação: um acto tributário de liquidação de taxa, praticado em data incerta mas anterior àquela em que a Assembleia Municipal tomou a citada deliberação.
Não se recusa que, posteriormente àquele acto e antes da impugnação judicial, outros possam ter sido praticados num momento em que já fora tomada a mesma deliberação, actos esses que, não sendo susceptíveis de sanar um acto nulo, constituiriam a 'renovação' do primeiro, agora isentos do vício gerador de nulidade.
Simplesmente, sendo certo que eles seriam do conhecimento do julgador, a verdade
é que não foram esses os que a sentença impugnada apreciou, nem lhes deu relevância como actos que 'substituíssem' o acto impugnado, extravasando os poderes de cognição do Tribunal proceder agora a uma tal operação, o que contenderia com a própria fixação do objecto da impugnação judicial.
Nesta medida, sendo patente e de certo modo até incontestada pelo recorrente a violação do artigo 115º nº. 7 da CRP, na redacção então em vigor, não há mais que confirmar a recusa de aplicação do Regulamento Municipal de Obras feita na sentença recorrida, ficando consequentemente prejudicado o conhecimento da questão de inconstitucionalidade orgânica suscitada pelo recorrente e pela recorrida.
3 – Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se negar provimento ao recurso.
Sem custas.
Lisboa, 21 de Março de 2000 Artur Maurício Vítor Nunes de Almeida Luís Nunes de Almeida Maria Helena Brito José Manuel Cardoso da Costa