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Proc. n.º 406/99
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. C... foi acusado, pelo Ministério Público (fls. 22 e seguintes), pela prática de um crime de desobediência previsto nos nºs 1 e 3 do artigo 161º do Código da Estrada (a que corresponde o artigo 167º, nºs 1 e 3, do mesmo diploma, na redacção do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Fevereiro) e punido pelo artigo
348º, n.º 1, alínea a) do Código Penal. Por sentença de 5 de Março de 1999 (fls. 47 e seguintes), o Tribunal Judicial da Comarca de Soure, estabelecendo o paralelismo entre as situações previstas no artigo 161º, nºs 1 e 3, do Código da Estrada (correspondente ao actual artigo
167º, nºs 1 e 3) e no artigo 500º, nºs 2 e 3, do Código de Processo Penal, decidiu:
'[...] Daqui resulta que situações materialmente idênticas têm consequências jurídicas perfeitamente distintas, considerando até que a solução mais gravosa ao indivíduo – imputação de crime – decorre de uma decisão de carácter administrativo, consequência que não sofreria se fosse judicialmente condenado na sanção de inibição. Por considerar que assim é violado o princípio da igualdade previsto no art. 13º da C.R.P. decido por isso desaplicar o fundamento legal da imputação criminal ao arguido nestes autos, por julgar inconstitucional norma contida no art. 161º, nº
3 do Cód. da Estrada com a redacção conferida pelo Dec. Lei nº 114/94 de 03.05, actualmente prevista no art. 167º, nº 3 do mesmo diploma com a revisão operada pelo Dec. Lei nº 2/98 de 03.01.'
2. Desta decisão foi interposto recurso, para o Tribunal Constitucional, pelo representante do Ministério Público na comarca de Soure, através de requerimento assim redigido (fls. 50):
'O Procurador Adjunto nesta comarca vem aos autos supra referenciados interpor recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos dos arts. 70º, nº 1, al. a), e segs. da Lei n.º 28/82, de 15/11. Por ter legitimidade, requer, pois, a sua admissão imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo (arts. 401º, 406º, 407º e 408º, todos do C.P.P. ex vi do art. 78º, nº 2, da aludida Lei nº 28/82.'
Tal recurso foi admitido por despacho de fls. 52.
3. Já no Tribunal Constitucional, foi proferido despacho pela relatora mandando notificar o recorrente, nos termos do artigo 75º-A, n.º 6, da Lei do Tribunal Constitucional, para completar o requerimento de fls. 50, indicando a norma cuja inconstitucionalidade pretendia que este Tribunal apreciasse. O representante do Ministério Público no Tribunal Constitucional correspondeu ao convite, dizendo que 'a norma que constitui objecto do presente recurso é a que consta do artigo 161º, n.º 3, do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de Maio – e que corresponde ao conteúdo normativo do artigo
167º, n.º 3, do mesmo Código, na redacção emergente do Decreto-Lei n.º 2/98, de
3 de Janeiro – na parte em que tipifica como crime de desobediência o comportamento do condutor que – notificado para entregar a carta ou licença de condução a apreender pela entidade competente – o não faça no prazo legal. Tal norma foi desaplicada, na decisão recorrida, com fundamento em inconstitucionalidade decorrente de violação do princípio da igualdade, instituído pelo artigo 13º da Constituição da República Portuguesa' (fls. 58).
4. Nas conclusões das suas alegações (fls. 60 e seguintes), veio o Ministério Público dizer que:
'1º – Não são situações materialmente idênticas as que respeitam ao regime da execução da medida de inibição de conduzir, consoante esta seja decretada por um
órgão jurisdicional ou por uma autoridade administrativa.
2º – Na verdade, não sendo viável a esta última a adopção de medidas coercivas, limitadoras dos direitos fundamentais do arguido (revistas, buscas) destinadas a apreender a carta ou licença de condução, não espontaneamente entregue, bem se compreende que o Código da Estrada puna como integrando o crime de desobediência a omissão culposa do arguido.
3º – Pelo contrário, tendo o tribunal plenos poderes para efectivar, específica e coercivamente, a sanção acessória que tenha decretado, não se justificaria tal punição, sem prejuízo dos casos em que ulteriores condutas do arguido possam implicar, nos termos gerais, desobediência a específicas e expressas cominações ou mandados legítimos da autoridade ou do funcionário encarregado de proceder à referida apreensão.
4º – Termos em que deverá proceder o presente recurso, em conformidade com a constitucionalidade da norma desaplicada na decisão recorrida.' Por sua vez, nas conclusões das contra-alegações (fls. 67 e seguintes), disse o recorrido C...:
'1º– O artigo 167º, nº 3 do Código da Estrada não está conforme a melhor doutrina nacional e estrangeira que se vem esforçando, de alguns anos a esta parte, por delinear uma linha de fronteira bem definida entre crime e contra-ordenação.
2º– O artigo 167º, nº 3 do Código da Estrada viola o princípio constitucional da igualdade material: entidades diversas, (Administração/Tribunal) aplicam a mesma sanção acessória: a eventual desobediência, latu sensu, em que o cidadão venha a incorrer na execução daquela sanção é tratada de forma díspar, com consequências jurídicas distintas conforme a entidade que aplicou a sanção: num caso o cidadão
é punido, sem mais, pela prática de um crime de desobediência; no outro caso ao cidadão resta aguardar que o tribunal ordene a apreensão da licença de condução podendo, eventualmente, caso não acate a subsequente intimação judicial que lhe for dirigida, preencher a previsão genérica do artigo 348º, nº 1, alínea b) do C.P..
3º– Nada obsta a que a Administração Pública possa recorrer aos tribunais para que estes, por sua vez, adoptem as medidas coercivas necessárias à apreensão da carta ou licença de condução. Basta que haja emanação de norma geral e abstracta por quem de direito nesse sentido. O próprio artigo 167º, nº 4, in fine, do Código da Estrada abre a possibilidade da entidade administrativa competente determinar a apreensão da carta ou licença de condução através da autoridade de fiscalização do trânsito e seus agentes.
4º– O modus operandi do artigo 167º, nº 3 do Código da Estrada é absolutamente diverso do preconizado pelo artigo 500º, nºs 1 e 2 do C.P.P.: não obstante a igualdade material das situações, no primeiro caso o cidadão que não entregue a sua licença ou carta de condução incorre automaticamente na prática de um crime de desobediência; no segundo caso tudo vai depender do comportamento do cidadão quando confrontado com a autoridade policial que for enviada pelo tribunal para apreender a carta ou licença de condução.'
II
5. É o seguinte o teor da norma constante do n.º 3 do artigo 161º do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de Maio (e que corresponde ao conteúdo normativo do artigo 167º, n.º 3, do mesmo Código, na redacção emergente do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro), que a decisão recorrida recusou aplicar, com fundamento em inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade:
'Artigo 161º Outros casos de apreensão de cartas e licenças de condução
1. As cartas e licenças de condução devem ser apreendidas para cumprimento da inibição de conduzir ou da cassação da carta ou licença.
2. [...]
3. Nos casos previstos nos números anteriores, o condutor é notificado para, no prazo de 15 dias, entregar a carta ou licença de condução à entidade competente, sob pena de desobediência.' (itálico nosso).
6. 1. Para cabal compreensão do preceito legal transcrito, refira-se que, nos termos do artigo 141º, n.º 1 do mesmo diploma legal, 'as contra-ordenações graves e muito graves [previstas no Código da Estrada] são puníveis com coima e com sanção acessória de inibição de conduzir'. A sanção acessória de inibição de conduzir pode ser decretada pela autoridade administrativa competente, nos termos gerais das normas que regulam o processo das contra-ordenações (artigo 152º do Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de Maio).
6.2. Pode todavia suceder que seja um tribunal, e não uma autoridade administrativa, a decretar a proibição de conduzir veículos motorizados, como pena acessória. A essa situação se refere o artigo 500º do Código de Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro. Dado que, no presente caso, foi recusada a aplicação da norma contida no n.º 3 do artigo 161º do Código da Estrada com o fundamento de que trataria de modo mais gravoso uma situação materialmente idêntica à regulada no referido artigo
500º do Código de Processo Penal, justifica-se a transcrição das pertinentes disposições deste artigo:
'Artigo 500º
(Proibição de condução)
1. [...]
2. No prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, o condenado entrega na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, que a remete
àquela, a licença de condução, se a mesma não se encontrar já apreendida no processo.
3. Se o condenado na proibição de conduzir veículos motorizados não proceder de acordo com o disposto no número anterior, o tribunal ordena a apreensão da licença de condução.
[...]'
Saliente-se ainda que o artigo 500º do Código de Processo Penal se insere sistematicamente nas disposições do mesmo Código relativas às execuções das decisões penais (Livro X) e, dentro destas, nas disposições relativas à execução das penas não privativas da liberdade (Título III do Livro X).
7. Na interpretação perfilhada na decisão recorrida, resultaria da comparação entre o artigo 161º, n.º 3, do Código da Estrada (redacção do Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de Maio) e os n.º s 2 e 3 do artigo 500º do Código de Processo Penal que, se o condenado na inibição de conduzir não entregar voluntariamente a carta ou licença de condução à entidade competente, se sujeita
à pena do crime de desobediência ou apenas à apreensão dessa carta ou licença, conforme a inibição de conduzir constitua sanção acessória de uma contra-ordenação, ou pena acessória. Esta dualidade de regimes implicaria, segundo o tribunal recorrido, violação do princípio da igualdade, previsto no artigo 13º da Constituição. Vejamos se assim é.
8. Sendo a inibição de conduzir decretada como pena acessória, é possível ao órgão que decretou a pena – o tribunal – usar os meios coercitivos necessários e juridicamente admissíveis à execução dessa decisão. Se, ao invés, a inibição de conduzir for decretada como sanção acessória de uma contra-ordenação, a autoridade administrativa que a pretenda executar não pode usar desses meios, quando os mesmos colidam com certos direitos fundamentais
(veja-se, nomeadamente, o artigo 34º, n.º 2 da Constituição, relativo à necessidade de autorização judicial para se proceder a buscas). Refira-se, aliás, que o Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro (que institui o ilícito de mera ordenação social e o respectivo processo) faz eco desta maior limitação dos poderes das autoridades administrativas em sede processual, ao vedar, na pendência deste, o uso de certos 'meios de coacção'. A diferente possibilidade de uso de meios coercitivos para a execução das próprias decisões explica o diferente tratamento da falta de entrega da carta ou licença de condução, consoante a inibição de conduzir tenha sido decretada por um tribunal ou por uma autoridade administrativa. No primeiro caso, nada obsta a que a entidade que proferiu a decisão ordene a efectiva apreensão da licença, mediante o recurso aos meios coercitivos que forem possíveis; no segundo caso, e como refere o Sr. Procurador-Geral Adjunto nas suas alegações, 'as alternativas que se colocavam ao legislador seriam precisamente a de criminalizar a omissão culposa do arguido ou facultar à Administração o recurso ao tribunal, com vista
à autorização das ditas medidas coercivas que visassem a efectivação da apreensão da carta ou licença de condução'. Conclui-se, assim, que a norma ínsita no n.º 3 do artigo 161º do Código da Estrada não trata de forma discriminatória o condenado na sanção acessória da inibição de conduzir, por referência ao condenado na pena acessória equivalente, na medida em que os meios ao alcance das entidades que proferiram as decisões em causa são, por natureza, distintos e, como tal, são, por natureza, distintas as formas de executar essas decisões. A menor ressonância ético-jurídica das decisões emanadas das autoridades administrativas em sede de processo contra-ordenacional, face às decisões dos tribunais, não permite, ao contrário do que o recorrido invoca nas suas alegações, afirmar a existência de qualquer discriminação. Com efeito, o n.º 3 do artigo 161º do Código da Estrada, por si só ou em conjugação com o artigo
500º do Código de Processo Penal, não reveste as decisões administrativas de força executiva superior à das decisões dos tribunais, nem consagra mecanismos mais eficazes para o cumprimento das primeiras. Não resulta, assim, violado o princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição.
III
9. Nestes termos, e pelos fundamentos invocados, decide-se: a) não julgar inconstitucional a norma constante do n.º 3 do artigo 161º do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de Maio, na parte em que tipifica como crime de desobediência o comportamento do condutor que – notificado para entregar a carta ou licença de condução a apreender pela entidade competente – o não faça no prazo legal; b) conceder provimento ao recurso, devendo a decisão recorrida ser reformada de acordo com o presente julgamento sobre a questão de constitucionalidade.
Lisboa, 21 de Março de 2000 Maria Helena Brito Artur Maurício Vítor Nunes de Almeida Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa