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Processo n.º 331/99
2ª Secção Relator – Paulo Mota Pinto
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. M... interpôs recurso contencioso de anulação do despacho do Presidente do Conselho de Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, de 17 de Março de 1997, pelo qual se rejeitou o recurso hierárquico interposto do despacho do Coordenador Sub-Regional de Saúde de Santarém, de 15 de Março de
1996, que havia nomeado, com base e em aplicação do artigo 29º do Regulamento dos Centros de Saúde, aprovado pelo despacho normativo n.º 97/83, de 28 de Fevereiro, da autoria do Secretário de Estado da Saúde (e publicado no Diário da República, II série, n.º 93, de 22 de Abril de 1983), o Oficial Administrativo Principal Eugénio Ramos Ventura para o cargo de Chefe do Serviço Administrativo e de Apoio Geral do Centro de Saúde de Ourém. Sustentou, além do mais, que 'em tal regulamento não se indica, de forma expressa, qual é a lei que visa regulamentar, pelo que sofre o mesmo de inconstitucionalidade formal por violação do disposto no artigo 115º, n.º 7, exórdio, da Constituição da República'. Por decisão do Tribunal Administrativo de Círculo de Coimbra, tomada em 3 de Julho de 1998, foi concedido provimento ao recurso interposto pelo ora recorrido, por se ter aí considerado que a norma do artigo 29º do Regulamento dos Centros de Saúde, aprovado pelo mencionado despacho, 'violou expressamente a norma citada – art.º 115º, n.º 6 e 7 da Constituição – inconstitucionalidade formal, devendo recusar-se a aplicação desta norma por desconformidade com o citado princípio constitucional, nos termos do art.º 206º da Constituição'. Tal fundamentou-se em que:
'Os actos normativos encontram-se, hoje – a partir da revisão constitucional de
1989 –, previstos no art.º 115º da lei fundamental. Os actos legislativos são apenas as leis, os decretos-leis e os decretos legislativos regionais (n.º 1 da norma citada). Porém, o n.º 5 do citado art.º admite que a lei possa criar outras categorias de actos legislativos ou conferir a actos de outra natureza, desde que, não tenham o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos preceitos, referidos no n.º 1 da citada norma constitucional, referindo-se o n.º 6, especialmente, aos regulamentos do Governo, ordenando que revistam a forma de ‘decreto regulamentar’ ainda que se trate de ‘regulamentos independentes’. Em qualquer dos casos, os ‘regulamentos’ – quer revistam a forma de decretos regulamentares, quer a de regulamentos independentes – devem indicar, expressamente, as leis que visam regulamentar ou que definam a competência subjectiva ou objectiva para a sua emissão (art.º citado, n.º 5 da Constituição), de modo a que toda a actividade regulamentar tenha como pressuposto lei prévia que a preveja fazendo essa menção, sem a qual não será possível verificar a sua conformação com ela e com o texto fundamental citado. Efectivamente, o n.º 6 do art.º 115º nenhuma distinção permite entre as duas categorias de regulamentos, na aplicação do comando do n.º 7, por isso, não deve o intérprete fazê-la, sob pena de estar a inovar – art.º 9º, n.º 2 do Código Civil.
’In casu’ o regulamento dos Centros de Saúde, que foi aprovado pela Portaria
97/83, referindo-se embora, aos decretos-leis 254/82, de 29-06 e 310/82, de
03-08, não indica, de forma expressa, qual deles pretende regulamentar ou de qual deles ou outro, emana a competência para a sua criação e respectivas delimitações no caso de se tratar de um regulamento autónomo. E, muito embora não faça parte do cerne da questão, sempre se dirá que se desconhece qual o diploma legal – dos previstos no n.º 1 do art.º 115º da Constituição – que criou a figura de ‘Portaria’ que foi usada para a aprovação do ‘regulamento’ sub judice, pois que na ausência de diploma habilitante, o acto legislativo devia ter apenas a forma de ‘decreto regulamentar’ já que outras formas devem estar previamente previstas.'
2. Interposto pelo Ministério Público, nos termos do disposto no artigo 70º, n.º
1, alínea a), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (Lei do Tribunal Constitucional), recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional, o Procurador-Geral Adjunto em exercício de funções neste Tribunal conclui assim as suas alegações de recurso:
'1º O Regulamento dos Centros de Saúde, aprovado pelo Despacho Normativo do Secretário de Estado da Saúde n.º 97/83, de 22 de Abril, configura-se como regulamento de execução e desenvolvimento do Decreto-Lei n.º 254/82, de 29 de Junho, que procedeu à descentralização e regionalização na prestação de cuidados de saúde, criando a nível distrital administrações regionais de saúde, sendo tal estrutura orgânica completada pelos Centros de Saúde, instituídos pelo aludido regulamento ao nível do concelho, e perspectivados como órgãos na dependência funcional e orgânica da respectiva ARS.
2º A referência, feita no preâmbulo do referido regulamento, a tal decreto-lei, permite a identificação, em termos bastantes, da respectiva lei habilitante, pelo que deverá considerar-se cumprido o princípio da primariedade ou precedência de lei.
3º Termos em que deverá proceder o presente recurso, por inexistir a inconstitucionalidade formal considerada pela decisão recorrida.' O recorrido, notificado para responder, querendo, às alegações assim apresentadas, rematou as que oportunamente apresentou do seguinte modo:
'a) O Regulamento dos Centros de Saúde, aprovado pelo Despacho Normativo n.º
97/83, de 28 de Fevereiro de 1983, da autoria do Senhor Secretário de Estado da Saúde, publicado no Diário da República, I Série, n.º 93, de 22.4.83, ao não indicar – como não indica, expressamente, a lei que visa regulamentar, enferma de inconstitucionalidade formal, por violar o preceito contido no artigo 115º, n.º 7, da Constituição da República – correspondente ao actual artigo 112º, n.º
8, da Lei Fundamental; b) A Douta Sentença impugnada, que considerou estar o Regulamento mencionado na conclusão anterior afectado do vício de inconstitucionalidade formal, em virtude da razão referida na conclusão que antecede, fez boa interpretação e aplicação da lei, pelo que não enferma de erro de direito, devendo, em consequência, ser mantida.' Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
3. A revisão constitucional de 1982 alterou o artigo 115º da Constituição – actual artigo 112º – por forma a prever que 'os regulamentos devem indicar expressamente as leis que visam regulamentar ou que definem a competência subjectiva e objectiva para a sua emissão'. A norma que continha esta exigência
– o artigo 115º, n.º 7, da Constituição, actual artigo 112º, n.º 8 – permaneceu substancialmente inalterada nas subsequentes revisões constitucionais. Apesar de estar em causa a regularidade formal do regulamento dos Centros de Saúde aprovado pelo Despacho Normativo n.º 97/83, de 28 de Fevereiro, publicado no Diário da República, II série, de 22 de Abril de 1983, o princípio tempus regit actum não interfere com a solução dada ao caso na decisão recorrida, pois embora a aprovação da norma se reja pela lei constitucional vigente nesse momento (cfr. v.g., os Acórdãos n.ºs 408/89 e 597/99, o primeiro publicado no Diário da República, II série, de 30 de Janeiro de 1990, e o segundo inédito; e, na doutrina, J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 5ª ed., Coimbra,
1991, pág. 1115), a invocação de qualquer das versões da Constituição subsequente à revisão constitucional de 1982 não introduz, neste caso, qualquer mudança de parâmetro. Atendendo, por outro lado, ao facto de questão de constitucionalidade semelhante ter já sido objecto de numerosas decisões do Tribunal Constitucional – a título de exemplo, vejam-se os Acórdãos n.º 92/85, 209/87, 63/88, 76/88, 268/88,
296/88, 307/88, 160/93, 247/93, 319/94, 375/94, 665/94, 110/95, 368/96 e 673/96
(publicados no Diário da República, respectivamente: I série, de 24 de Julho de
1985; I série, de 9 de Julho de 1987; II série, de 10 de Maio de 1988; I série, de 21 de Abril de 1988; I série, de 21 de Dezembro de 1988; II série, de 10 de Abril de 1989; I série, de 21 de Janeiro de 1989; II série, de 10 de Abril de
1993; II série, de 2 de Junho de 1993; II série, de 3 de Agosto de 1994; II série, de 10 de Novembro de 1994; II série, de 23 de Fevereiro de 1995; II série, de 21 de Abril de 1995; II série, de 1 de Maio de 1996; e II série, de 3 de Setembro de 1996) – dir-se-ia ser caso a decidir nos termos o nº1 do artigo
78º-A da Lei do Tribunal Constitucional. Porém, o facto de o presente caso não ser inteiramente coincidente com os precedentes invocados torna oportuna a reapreciação da questão, que se passa a fazer. A. Delimitação do objecto do recurso
4. No Acórdão n.º 160/93, já citado, depois de se ter circunscrito o objecto do recurso de constitucionalidade ao disposto num dos números do regulamento então em causa, considerou-se que 'antes de se apreciar a questão suscitada de inconstitucionalidade importa decidir se o regulamento (…) é conforme à Constituição, encarado no conjunto das normas que o integram, isto é, enquanto acto normativo de natureza regulamentar,' só no termo dessa demanda se extraindo a conclusão sobre a norma em causa. E no Acórdão n.º 375/94, também já citado, considerou-se que 'todas as normas do Regulamento (…) constituem objecto do presente recurso, uma vez que ele foi interposto pelo Ministério Público ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional e a sentença recorrida a todas elas recusou aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade.' Adiante, porém, circunscreveu-se o objecto do recurso às normas que a sentença recusou expressamente aplicar, bem como às que nelas iam pressupostas. Ora, retomando o que se escreveu no Acórdão n.º 368/96, já citado, entende-se que:
'Esta é, na verdade, a correcta dimensionação do problema: no domínio da fiscalização concreta da constitucionalidade, nomeadamente quando se trate de fundamento constante da alínea a) ou da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, a apreciação da questão está condicionada, consoante os casos, a uma potencialidade de aplicação da norma ( ou normas ) em causa.' O mesmo aresto remetia imediatamente a seguir para o Acórdão n.º 319/94, já citado, onde também se escreveu, substancialmente, o mesmo:
'A apreciação das questões de constitucionalidade no domínio dos processos de fiscalização concreta, radiquem elas em decisões de acolhimento ou de rejeição
(artigos 280º n.º 1, alíneas a) e b), da Constituição e 70º, n.º 1, alíneas a) e b), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro), está condicionada, consoante os casos, a uma potencialidade de aplicação ou a uma efectiva aplicação da norma cuja constitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.' Assim, sem prejuízo de se poder eventualmente vir a concluir – como o Acórdão n.º 665/94, já citado – 'que todas as normas do Regulamento (…) – e não apenas as que integram o objecto do presente recurso – são formalmente inconstitucionais, por violação do artigo 115º, n.º 7 da Lei Fundamental', e não obstante o recurso de constitucionalidade interposto vir dirigido à totalidade do Regulamento dos Centros de Saúde, importa, porque estamos perante um recurso de constitucionalidade, distinguir, dentro deste, as normas que são aplicáveis ao caso. E tal averiguação prévia não será, porém, suficiente, pois – pelo menos para certa perspectiva – haverá ainda, seguidamente, que apurar quais daquelas são normas com eficácia externa, ou seja, 'normas que projectam os seus efeitos para o exterior da própria Administração', para o dizer como no já referido Acórdão n.º 375/94. É que, como se escreveu no Acórdão n.º 319/94, já citado:
'se alguma doutrina sustenta que os regulamentos internos de organização não precisam de se fundar em leis para serem emanados legitimamente, não se lhes aplicando a exigência contida no artigo 115º, n.º 7, da Constituição [...], já o mesmo não sucede quanto aos regulamentos mistos, relativamente aos quais ninguém questiona que hajam de ser considerados como fontes de direito, como actos normativos.' Para o dizer como no Acórdão n.º 368/96, já citado:
'Está, assim, em causa a qualificação do Regulamento quanto à sua eficácia, de modo a elencá-lo como regulamento interno ou externo, no pressuposto de que só a estes últimos se há-de observar a exigência constitucional.' Atenta a questão que desencadeou a intervenção do Tribunal Administrativo de Círculo e a jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre esta matéria, pode seguir-se a solução do Acórdão n.º 319/94, também já citado, que considerou inconstitucional uma norma do Regulamento das Inspecções do Conselho dos Oficiais de Justiça relativa à classificação a atribuir a oficiais de justiça. Aí se escreveu o seguinte:
'Há-de dizer-se que, com alguma frequência, nos regulamentos de organização em sentido estrito, aparecem integradas normas regulamentares externas – normas respeitantes ao estatuto do pessoal administrativo, ao processo administrativo,
à competência externa dos agentes, aos deveres e direitos dos particulares em relação aos serviços, etc. – sendo então estas últimas normas a determinar o regime geral e a exigência formal do diploma regulamentar que umas e outras comporta.' Do mesmo modo, no Acórdão n.º 375/94, já citado, escreveu-se, remetendo para Afonso Rodrigues Queiró, 'Teoria dos Regulamentos' (Revista de Direito e Estudos Sociais, ano XXVII, págs. 5 e seg.), que no Regulamento em apreço 'existem normas (…) que projectam os seus efeitos para o exterior da Administração, sendo essa circunstância, justamente que estará na origem da publicação no Diário da República.'
5. Admitindo que no Regulamento dos Centros de Saúde haja normas regulamentares externas, sendo, pois, um regulamento misto, podemos, num primeiro momento, circunscrever o objecto do recurso apenas à norma do artigo 29º do Regulamento dos Centros de Saúde, por só ela ter sido 'efectivamente desaplicada com fundamento em inconstitucionalidade, abrindo, como tal, a via do recurso de constitucionalidade' (Acórdão n.º 368/96, já citado). Essa norma (sob a epígrafe 'Constituição') tem a seguinte redacção:
'O serviço administrativo e de apoio geral é constituído pelo pessoal administrativo e auxiliar, chefiado por um funcionário com a categoria , no mínimo, de primeiro-oficial e, se possível, com experiência de chefia, nomeado pela ARS sob proposta do presidente da direcção do centro de saúde.' Em certa perspectiva, poderá pretender-se que, segundo os critérios doutrinários utilizados para distinguir regulamentos internos de regulamentos externos, a
única norma relevante para o efeito de controlo da constitucionalidade, por a ela se resumir o objecto do recurso, seria de classificar como norma com efeitos meramente internos. De facto, para Afonso Rodrigues Queiró, ob. cit., pág.5, os regulamentos internos esgotam a sua eficácia jurídica no seio da Administração 'dirigindo-se exclusivamente para o interior da organização administrativa, sem repercussão directa nas relações entre esta e os particulares'; para Diogo Freitas do Amaral, Direito Administrativo, vol. III, pág.25, regulamentos internos são os que produzem os seus efeitos jurídicos unicamente no interesse da pessoa colectiva cujos órgãos os elaboram; e encontra-se também a referência a que 'os regulamentos internos de organização estruturam órgãos internos e serviços administrativos, regulam a sua actividade (sem eficácia externa, pelo menos directa) ou funcionamento e determinam as funções dos agentes' (síntese do já citado Acórdão n.º 368/96). Ora, o artigo 29º do Regulamento dos Centros de Saúde, já citado, diz respeito à constituição do serviço administrativo e de apoio geral dos centros, sendo uma pura norma organizatória, que prevê a constituição de tal serviço, a sua chefia e nomeação desta. Assim, porque a única norma que é objecto do presente processo é uma norma sem eficácia externa, e a aceitar-se que a exigência de menção expressa da lei habilitante se circunscreve aos regulamentos externos (ou aos mistos), qualquer que fosse o juízo sobre a natureza do regulamento, globalmente considerado, onde tal norma se contém, poderia evitar-se a conclusão de que a norma em causa padece de inconstitucionalidade formal, resultante da falta – rectius, da insuficiente – identificação da norma habilitante, justamente porque tal imposição, enquanto norma com eficácia meramente interna, lhe não é dirigida
(mas apenas ao diploma que contenha normas com eficácia externa, sendo nestas, portanto, que se ancora tal exigência). Com estes fundamentos, haveria que conceder provimento ao recurso, quanto à questão de constitucionalidade do artigo 29º do Regulamento dos Centros de Saúde aprovado pelo Despacho Normativo n.º 97/83 (publicado no Diário da República, I série, de 22 de Abril de 1983), por aquele artigo conter norma com eficácia meramente interna.
6. Ainda, porém, que assim não se entendesse – ou seja, que se entendesse dever a apreciação da constitucionalidade formal ser estendida a todo o Regulamento dos Centros de Saúde, independentemente da específica norma cuja aplicação foi recusada (o referido artigo 29º), ou que se entendesse que a exigência em causa se aplica também a regulamentos com eficácia meramente interna –, a solução não seria diversa. Para chegar a esta conclusão, há que referir a evolução do entendimento deste Tribunal sobre a extensão e os termos da obrigação de indicação expressa da lei que visam regulamentar. B. Análise da questão de constitucionalidade
7. A jurisprudência do Tribunal Constitucional aderiu à interpretação defendida por Gomes Canotilho e Vital Moreira (na Constituição da República Portuguesa Anotada, 2ª ed., 2º vol. 1985, pág. 66), quanto a esta matéria, segundo a qual o n.º 7 do artigo 115º, introduzido pela 1ª revisão constitucional (actual artigo
112º, n.º 8), estabelece uma precedência da lei em relação a toda a actividade regulamentar, e institui o dever de citação da lei habilitante por parte de todos os regulamentos. Isto, de modo que:
'Esta dupla exigência torna ilegítimos não só os regulamentos carecidos de habilitação legal mas também os regulamentos que, embora com provável fundamento legal, não individualizem expressamente este fundamento.' (ob. cit.) Como se salientou no referido Acórdão n.º 110/95,
'Visa-se com semelhante exigência, escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira, não só disciplinar o uso do poder regulamentar, obrigando o Governo e a Administração a controlarem, em cada caso, a habilitação legal de cada regulamento, mas também garantir ‘a segurança e a transparência jurídicas, sobretudo relevantes à luz da principiologia do Estado de direito democrático’
(cfr. Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, pág.
516).' Exigência semelhante, de indicação pelo regulamento da base jurídica habilitante, encontra-se, por exemplo, no artigo 80º, n.º 1, 3ª frase, da Lei Fundamental alemã.
8. Do Acórdão n.º 319/94, já citado, poder-se-ia pretender concluir, a contrario, que o Tribunal admitiu um entendimento menos rigoroso do dever de citação , na medida em que argumentou que o regulamento em causa 'não indica, implicitamente sequer, a lei que visa regulamentar ou que define a competência para a sua emissão.' (itálico aditado). Porém, em decisões subsequentes sobre esta questão (Acórdãos n.º 375/94 e
665/94, ambos já citados), regressou-se ao precedente entendimento de que:
'’ainda que se pudesse identificar, com elevado grau de probabilidade, as normas legais que habilitavam’ a aprovação do regulamento em causa ‘a verdade é que a inconstitucionalidade formal se mantém, pois a função da exigência da identificação expressa consiste não apenas em disciplinar o uso do poder regulamentar (obrigando o Governo e a Administração a controlarem, em cada caso, a habilitação legal de cada regulamento), mas também em garantir a segurança e a transparência jurídicas, sobretudo à luz da principiologia do Estado de direito democrático’ (cfr. J.J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª Ed., Coimbra Editora, 1983, pág.516)' (Acórdão n.º
665/94). E no Acórdão n.º 375/94 já se tinha escrito que:
'Ao impor o dever de citação da lei habilitante , o que a Constituição pretende
é garantir que a subordinação do regulamento à lei (e, assim, a precedência da lei relativamente a toda a actividade administrativa) seja explícita
(ostensiva).' (último itálico aditado) No Acórdão n.º 368/96, já citado, recuperou-se a fórmula empregue no Acórdão n.º
319/94: 'no concreto caso, não indica o Regulamento, implicitamente sequer, a lei ao abrigo da qual foi emitido'. E no Acórdão n.º 673/96 considerou-se (a propósito do 'Regulamento do Estágio para Solicitador', elaborado pela Direcção-Geral dos Serviços Judiciários e homologado por despacho do Ministro da Justiça de 15 de Março de 1988) que 'o Regulamento em crise omite totalmente a lei que habilitasse objectiva e subjectivamente a respectiva edição', violando por isso o artigo 115º, n.º 7, da Constituição. Tal orientação do Tribunal frisa, portanto, que – conforme se pode ler na norma constitucional que prevê tal exigência –, a indicação da lei que se visa regulamentar ou que define a competência objectiva ou subjectiva para sua emissão há-de ser expressa (questão, esta, da forma de citação que é, como se sabe, diversa da de saber se se devem admitir autorizações legais implícitas para a emissão de regulamento, relativa à forma da autorização legal). Por sua vez, no Acórdão n.º 110/95, também já citado, o Tribunal, apurando se o regulamento em causa (o Regulamento dos Resíduos Sólidos da Cidade de Lisboa constante do Edital Camarário n.º 112/90, publicado no Diário Municipal de 28 de Dezembro de 1990) 'traduz com suficiência o seu suporte habilitante, considerando o disposto no n.º 7 do artigo 115º da Constituição da República', considerou suficiente que a lei definidora da competência subjectiva e objectiva para a sua emissão em causa viesse mencionada no livro das actas da Assembleia Municipal, embora 'a redacção do regulamento revele incompleta consignação do seu fundamento legal, de modo a desde logo se precisarem as normas que à assembleia municipal conferem competência para o editar'. Assim, escreveu-se:
'pensa-se que a menção contida no artigo 1º do regulamento [que remetia para o n.º3 do Decreto Lei n.º 488/85, de 25 de Novembro, mas não para a lei definidora da competência objectiva e subjectiva para a emissão do regulamento – a alínea a) do n.º2 do artigo 39º do Decreto Lei n.º 100/84, de 29 de Março] e, bem assim, a mais completa, constante do livro das actas da Assembleia Municipal (…) respeitam minimamente o princípio da primariedade da lei, informam da lei habilitante e, como tal, garantem os valores de segurança e transparência que se pretendem acautelar.' E concluiu-se que:
'Exactamente porque há um mínimo salvaguardado suficientemente, o caso vertente não é reconduzível aos de regulamentos que este Tribunal fulminou em atenção ao vício formal de que eram portadores – casos paradigmáticos dos acórdãos n.ºs.
163/93 e 319/94, de ausência integral de menções aos respectivos fundamentos legais.' Perante este panorama, como enquadrar o caso em apreço?
9. No caso sub iudicio, a lei que o Despacho Normativo n.º 97/83, de 28 de Fevereiro, da autoria do Secretário de Estado da Saúde visava regulamentar (o Decreto-Lei n.º 254/82, de 29 de Junho) era um dos dois diplomas (o outro era o Decreto-Lei n.º 310/82, de 03 de Agosto) expressamente indicados no preâmbulo do despacho, na 'história' dos diplomas que conduziram até ao 'Regulamento dos Centros de Saúde' – vejam-se os artigos 1º a 4º, 6º e 9º daquele Decreto-Lei n.º
254/82 (nos termos deste último artigo, 'A comissão instaladora referida no número anterior proporá superiormente, para aprovação pelo Ministro dos Assuntos Sociais, os regulamentos que forem julgados necessários para o melhor funcionamento dos serviços'). No preâmbulo do referido Despacho Normativo n.º 97/83, que aprovou o
'Regulamento dos Centros de Saúde', pode ler-se:
'1 – Pelo despacho ministerial de 9 de Junho de 1981 publicado no Diário da: República, 2ª série, n.º 141 de 23 de Junho de l981 foi aprovado regulamento tipo para os centros de saúde, segundo o qual se perspectivava a integração dos serviços dependentes das 2 estruturas da saúde – Serviços Médico-Sociais e Direcção-Geral de Saúde – em ordem a concretizar a nova medida de política neste domínio. Nos termos do referido despacho, o regulamento então aprovado tinha natureza transitória, prevendo-se a sua revogado com a publicação de diploma que regulamentasse as estruturas e os órgãos de nível regional.
2 - Entretanto, foram publicados o Decreto-Lei n.° 254/82, de 29 de Junho, que cria as administrações regionais dos cuidados de saúde, e o Decreto-Lei n.º
310/82, de 3 de Agosto, que reestrutura as carreiras médicas, um e outro assumindo-se como esteios dos princípios informadores da regionalização de uma nova concepção organizativa dos serviços e da prestação de cuidados em que se privilegia a relação personalizada entre os profissionais de saúde e os seus utentes.
3 – Estão assim criadas as condições institucionais que vão permitir entrar-se numa fase mais avançada do processo de integrações de serviços de saúde que tem vindo a ser implementado. Nestes termos, determino o seguinte:
É aprovado o Regulamento dos Centros de Saúde anexo a este despacho, que dele faz parte integrante e que entra em vigor na data da sua publicação no Diário da República.' Não estamos, portanto, perante um caso de ausência integral de menção expressa do diploma que o regulamento aprovado pelo despacho em causa veio desenvolver – o Decreto-Lei n.° 254/82, de 29 de Junho. Nem sequer é este um caso em que, como se disse no Acórdão n.º 665/94, 'ainda que se pudesse identificar, com elevado grau de probabilidade, as normas legais que habilitaram [o órgão em causa] a aprovar aquele Regulamento', a inconstitucionalidade formal se mantém, por falta de menção, justamente porque tal menção existe. O presente caso afigura-se, antes, mais próximo da hipótese do Acórdão n.º
110/95 do que da generalidade das hipóteses consideradas nos restantes arestos citados, onde se fulminou tal ausência com inconstitucionalidade. Na verdade, a admissão de menção expressa do diploma que a lei veio regulamentar no preâmbulo do regulamento – no quadro do 'historial' normativo que desembocou neste – não só é, sem dúvida, mais clara do que uma mera menção na acta do órgão que aprovou o diploma (que no citado aresto era, porém, acompanhada por uma referência no artigo 1º), como, sem dúvida, se afigura diversa de uma citação meramente implícita da lei habilitante. Aliás, após a referência ao diploma a regulamentar, salienta-se que com ele estão criadas as 'condições institucionais' – nas quais podem sem esforço incluir-se as 'condições normativas' – 'que vão permitir entrar-se numa fase mais avançada do processo de integrações de serviços de saúde', em que se insere o 'Regulamento dos Centros de Saúde'. O dever de citação da lei que se visa regulamentar foi, pois, cumprido no caso em apreço de forma que, se não é inequívoca pelo seu contexto (por não se fazer no articulado e sim no preâmbulo, e por aparecer integrado na história legislativa que levou ao regulamento), se concretizou, porém, numa indicação expressa, referida como criando as condições institucionais para a regulamentação em apreço.
10. Por fim, pode dizer-se, de forma decisiva, que uma citação expressa em tais termos – no preâmbulo do diploma e a remeter para os diplomas que criaram as condições da reforma em que se insere o 'Regulamento dos Centros de Saúde' – não compromete o objectivo de disciplina do uso do poder regulamentar, uma vez que sempre permanece a obrigação de o Governo e a Administração controlarem, em cada caso, a habilitação legal de cada regulamento, pelo menos por forma a não a deixar de a mencionar nesse preâmbulo (e, repete-se, ainda que apenas no quadro de indicações de 'história' legislativa que a este regulamento conduziram). Uma menção em tais termos, constituindo, na expressão do Acórdão n.º 110/95, 'um mínimo salvaguardado suficientemente', afigura-se, também, ainda de molde a garantir a segurança e a transparência jurídicas, impostas pelo Estado de direito democrático, que se quis justamente assegurar com tal dever de citação expressa. Há, pois, que concluir que, em qualquer caso, o despacho normativo em apreço não padece da inconstitucionalidade formal que lhe vem assacada, devendo, em conformidade, conceder-se provimento ao presente recurso. III. Decisão Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide: a. não julgar inconstitucional o Despacho Normativo n.º 97/83, de 28 de Fevereiro, da autoria do Secretário de Estado da Saúde, publicado no Diário da República, II série, n.º 93, de 22 de Abril de 1983, que aprovou o 'Regulamento dos Centros de Saúde'; b. por conseguinte, conceder provimento ao recurso e determinar a reforma da decisão recorrida de acordo com o presente juízo de sobre a questão de constitucionalidade; e c. condenar o recorrido em custas, fixando a taxa de justiça em 15 UC’s. Lisboa, 28 de Março de 2000 Paulo Mota Pinto Maria Fernanda Palma Guilherme da Fonseca Bravo Serra José Manuel Cardoso da Costa