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Processo nº 782/99
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. J..., com os sinais identificadores dos autos, veio 'RECLAMAR para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no nº 4 do artº 76º da Lei nº 28/82, de
15/11, com a redacção dada pela Lei nº 13-A/98', dizendo não se conformar 'com o despacho que não admite o recurso interposto para o tribunal Constitucional, quer do Acórdão da Relação do Porto quer do despacho do Presidente do STJ'. No requerimento de reclamação, em que se transcrevem integralmente peças processuais apresentadas nos autos de recurso penal pendentes no Tribunal da Relação do Porto (1ª Secção Criminal), o reclamante (recorrente e arguido) invoca que o 'Acórdão da Relação do Porto é uma decisão surpresa, ilegal, absurdo, proferido à revelia de qualquer lei da República Portuguesa e dos países civilizados' e até ser proferido 'o tal Acórdão não podia o recorrente suscitar qualquer inconstitucionalidade, pois não ia adivinhar que tal Acórdão, tão anómalo, viria alguma vez ser proferido. Trata-se de um caso em que a
«interpretação judicial é tão insólita e imprevisível, que seria de todo o ponto desfavorável a parte contar com ela» (cf. o citado Acórdão do Tribunal Constitucional)'. O reclamante termina o requerimento apresentando a seguinte conclusão:
'1. Como se poderia prever que a Relação do Porto confundisse personalidade jurídica das pessoas simples com a personalidade jurídica de pessoas colectivas?
2. Como pôde a Relação concluir que havia responsabilidade contratual do arguido para com a assistente se o cheque é duma pessoa colectiva?
3. Se se provou que com a sociedade assistente não teve ele qualquer transacção?
4. E como se podia prever que se decidiria haver responsabilidade contratual do arguido perante a assistente se o cheque é duma sociedade?
5. E até não se ignora o Assento nº 7/99, in DR nº 179 de 3/8/99 que diz:
«Se em processo penal for deduzido o pedido cível tendo o mesmo por fundamento um facto ilícito criminal, verificando-se o caso previsto no artigo 377º nº 1 do Código de Processo Penal, ou seja, a absolvição do arguido, este só poderá ser condenado em indemnização civil se o pedido se fundar em responsabilidade extracontratual ou aquiliana, com exclusão da responsabilidade civil contratual»
.
6. Assim deve admitir-se o recurso para o Tribunal Constitucional.'
2. No seu visto, o Ministério Público veio sustentar que é 'manifesta a improcedência da presente reclamação, já que o arguido, ora reclamante, não suscitou, durante o processo, isto é, antes da prolação do acórdão da Relação que o condenou no pagamento do montante do cheque que emitira, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, susceptível de servir de base ao recurso que interpôs com fundamento na alínea b) do nº 1 do art. 70º da Lei nº 28/82 (é evidente que inexistem os pressupostos do recurso concomitantemente baseado na al. f) deste preceito legal, por se não vislumbrar, no presente litígio, qualquer questão de ilegalidade 'qualificada', susceptível de fundar um recurso de fiscalização concreta). Não constituem, na verdade, momentos processualmente adequados para suscitar uma questão de constitucionalidade, pela primeira vez, o pedido de aclaração do acórdão condenatório proferido pela Relação ou as alegações de recurso interposto para o Supremo, quando tal recurso nem sequer foi admitido, por, em matéria penal, inexistir recurso para o STJ das decisões proferidas pelas Relações.
É, por outro lado, inquestionável que não constitui 'decisão-supresa' a que decorre da condenação em pedido de indemnização civil, contra si formulado a título pessoal, do subscritor de um cheque posto em circulação e não pago por falta de fundos com base - desde logo e em termos bastantes - nas obrigações tipicamente emergentes da própria relação cambiária, por força do preceituado nos artºs 40º e 45º da LUC'.
3. Vistos os autos, cumpre decidir. A situação processual pertinente, face aos elementos aqui disponíveis, está retratada no despacho proferido no juízo a quo, nos termos do disposto no artigo
688º, nº 3, do Código de Processo Civil, do seguinte modo:
'O ARGUIDO-DEMANDADO, J...: I Foi CONDENADO, como autor material de 1 crime de emissão de cheque sem provisão, p.p. pelo art. 11°-nº 1 - a), do DL 316/97, de 19-11 em: a)- 240 dias de multa, a 450$00 por dia, e em 160 dias de prisão subsidiária; b)- Pagar à DEMANDANTE-ASSISTENTE, ALBANO LEITE DA SILVA-Ldª, 4.826.500$00 e juros, de 15%, desde 20-12-94 e até integral pagamento. II- Interposto RECURSO pelo ARGUIDO-DEMANDADO, foi proferido acórdão, em 16 de Dezembro de 1998 que decidiu o seguinte: a)- ABSOLVER da prática do crime de emissão de cheque sem provisão, p.p. pelo art. 11º nº 1-a), do DL 316/97, de 19-11 ; b )- MANTER a CONDENAÇAO no pedido CIVEL. III- O DEMANDADO-ARGUIDO requereu a CORRECÇÃO, sob o fundamento de o acórdão conter erros, lapsos, obscuridades e ambiguidades. Foi decidido em Conferência, INDEFERIR a Reclamação de CORRECÇÃO do acórdão de 16-12-98, mantendo-se, na totalidade, a CONDENAÇÃO do DEMANDADO em Pagar à DEMANDANTE-ASSISTENTE, ALBANO LEITE DA SILVA-Ldª, 4.826.500$00 e juros, de 15%, desde 20-12-94 e até integral pagamento. IV Interpôs o DEMANDADO RECURSO para o STJ. Não foi admitido, por despacho de 18 de Maio de 1999. V RECLAMOU para o Presidente do STJ: Por despacho de 30-09-99 foi desatendida a reclamação. VI Interpôs RECURSO para o TRIBUNAL CONSTITUCIONAL. Sob a invocação do art. 70º nº 1 b) e f), da Lei 28/82 de 15-11, para apreciação dos seguintes arts.: 129º, do C Penal; 71º e 377º-nº 1, 2, do CPPenal; 5º, 6º,
78º nº 1, 179ºnº 3, 252º e 260º -nºs 1 e 4, do CSC; e 44º e 45º , da LUC. VIII Ao abrigo do art. 76°-nºs 1 e 2, da Lei 28/82, de 15-11, proferiu-se despacho de NÃO ADMITIR o recurso para o Tribunal Constitucional, com os termos seguintes:
'Ora, tais normativos jamais foram minimamente beliscados, ou seja, quer na sentença recorrida, quer no acórdão de recurso, como ainda na respectiva motivação, não foi tomada qualquer posição de que possa inferir-se inconstitucionalidade alguma. Aliás, o Recorrente até aqui sempre silenciou toda e qualquer inconstitucionalidade.
É certo que agora, neste último requerimento, alega que 'Tal violação foi suscitada durante o processo'. Porém, numa fase que, de forma alguma releva, ou seja, posteriormente à interposição do recurso da sentença da 1ª Instância, na medida em que o fez aquando do pedido de 'correcção' do acórdão deste Tribunal. Conforme já se enunciou, a motivação do recurso, da sentença condenatória interposto para o Tribunal da Relação, sobre a qual impende a obrigatoriedade de, nas conclusões, delimitar o âmbito do recurso, tão-pouco denuncia a questão de qualquer inconstitucionalidade sobre a qual o TC tivesse que se pronunciar. Como não teve o Tribunal da Relação. Daí que nem sequer tenha vindo arguir nulidades por omissão de pronúncia. A defesa do cidadão deve ser uma constante. Bem mais cómodo seria postergar para terceiros uma decisão. Mas há que desenvolver os mecanismos que a 1ei por vezes, ainda nos faculta, com vista ao que ora já se anuncia por 'excesso de garantismo'. Onde se situa o 'recurso' ao Tribunal Constitucional quando se apresentam 'esgotadas' as garantias que a Constituição prevê e regula. O recurso - agora na sua adequada designação - deve constituir uma via regular , que carece de ser prevenido, por forma até a ser, neste segmento, cumprida a também garantia constitucional do duplo grau de jurisdição. E como é que ele pode funcionar se o Arguido não o fez funcionar sequer ao nível do 1º?'. VIII- Nos termos do art. 76°-nº4, da Lei 28/82, de 15-11, ADMITO a presente RECLAMAÇÃO para o TRIBUNAL CONSTITUCIONAL do despacho de 'NÃO ADMISSÃO do RECURSO' interposto do acórdão do Tribunal da Relação pelo ARGUIDO-DEMANDADO, J....' Há, desde logo, que restringir o objecto da presente reclamação ao despacho proferido pelo Relator do processo no Tribunal da Relação do Porto, que não admitiu o recurso interposto pelo reclamante do identificado acórdão daquele mesmo Tribunal, mais rigorosamente do acórdão de 28 de Abril de 1999, que decidiu 'INDEFERIR a Reclamação de CORRECÇÃO do acórdão de 16-12-98, pelo que mantém-se a CONDENAÇÃO do ARGUIDO, J..., em Pagar à DEMANDANTE-ASSISTENTE, AS...
- Ldª, 4 826 500$00 e juros de 15%, desde 20-12-94 e até integral pagamento', pois toda a reclamação (e a ambiência do que nela vem relatado) visa apenas esse julgado.
É o que ressalta da CONCLUSÃO com que termina o requerimento de reclamação e do pedido que esta 'seja instruída com o Acórdão da Relação do Porto, de 16/12/98 e do de 28/04/99'. Por consequência, não pode reportar-se a presente reclamação ao despacho do Presidente do Supremo Tribunal, de Justiça que desatendeu uma reclamação apresentada 'ao abrigo do disposto no artigo 405º do CPP', em que o reclamante sustentou que o 'presente processo admite recurso para o STJ' (recurso que havia oportunamente interposto e motivado) e qualquer interpretação 'em contrário, dos artºs 400º, nº 2, 427º e 432º do CPP violaria o princípio da igualdade, que é apanágio dum Estado de Direito, consagrado no artº 2º da CRP', pois, por um lado, nenhuma destas normas do Código de Processo Penal vem questionada no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade - são antes e apenas as normas dos artigos 71º e 377º, nº 1, que nada têm a ver com aquelas outras - e, por outro lado, só há um despacho de não admissão de tal recurso, ora reclamado, que foi proferido pelo Relator do processo no tribunal de relação, inexistindo despacho do presidente do Supremo Tribunal de Justiça sobre a admissão do mesmo recurso. Restringido, deste modo, o objecto da presente reclamação ao despacho que não admitiu o recurso interposto pelo reclamante, 'ao abrigo do disposto do artº
70º, nº 1, alínea b) e f), da Lei do Tribunal Constitucional', do acórdão do Tribunal da Relação, de 28 de Abril de 1999, que, indeferindo um pedido de correcção do acórdão de 16 Dezembro de 1998, manteve a 'CONDENAÇÃO do ARGUIDO, J..., em Pagar à DEMANDANTE-ASSISTENTE, AS... - Ldª, 4 826 500$00 e juros de
15%, desde 20-12-94 e até integral pagamento', pode desde já adiantar-se que ela não merece atendimento. Vejamos porquê.
4. É facto que o reclamante foi condenado 'como autor material de 1 crime de emissão de cheque sem provisão, p.p. pelo art. 11º-nº1-a), do DL 316/97, de
19-11, em: a)- 240 dias de multa, a 450$00, por dia, e em 160 dias de prisão subsidiária; b)- Pagar à DEMANDANTE ASSISTENTE, AS... -Ldª, 4.826. 500$00 e juros, de 15%, desde 20-12-94 e até integral pagamento' e na motivação do recurso interposto para o tribunal da relação veio apontar 'os seguintes vícios da sentença: erro notório na apreciação da prova; contradição entre os factos dados como provados; há factos que foram dados como provados que não constam da acusação, nem do despacho de pronúncia; há factos que foram dados como provados, mas que carecem de prova' (apontamento constante do acórdão de 16 de Dezembro de
1998), pedindo a substituição da sentença 'por outra que absolva o recorrente do crime e do pedido cível'. Naquele acórdão, registando-se a 'SOLUÇÃO para a SENTENÇA CRIME', concluiu-se que 'a condenação não deva manter-se', mas depois, quanto ao pedido cível, sem deixar de se reconhecer que a 'absolvição-crime implica a absolvição-cível', convocou-se 'o disposto no art. 377º-nº 1, do CPP, enquanto impõe que 'A sentença, ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização civil...' e passou a indagar-se 'se se verificam os elementos de facto respeitantes ao ilícito civil e que sustentem uma eventual condenação a esse nível'. Para se concluir nestes termos:
'Face a tais elementos factuais, não lobrigamos como possa o Arguido-Demanda do furtar-se à obrigação de pagar o montante do cheque.Com efeito, não se trata duma verdadeira e exclusiva relação cambiária. O cheque tem por base um contrato de compra e venda, regulado pelos arts 874º e segs., do CCivil. Nos termos do art. 879º-c), assume o adquirente a obrigação de pagar o preço. Ao qual corresponde o montante constante do cheque. Tendo havido recusa de pagamento do cheque e por insuficiência de saldo, na conta sacada, é evidente que o Demandado labora em incumprimento. Sendo culposo, como decorre dos destacados factos dados como provados, há que sujeitar-se à ‘falta de cumprimento’ regulada pelos arts. 798º e segs. do CCivil. Tão-pouco alega qualquer excepção. E ao devedor cabia alegar e provar os factos que contrariem a sua presunção de culpa, tal como é consagrada pelo art.
799º-nº1. Pelo que impõe-se a manutenção da condenação cível'. No acórdão seguinte, de 28 de Abril de 1999, objecto do recurso de constitucionalidade, e a propósito de 'LAPSOS acerca do PEDIDO CIVEL', faz-se um longo excurso sobre o negócio cambiário, analisando-se 'os caracteres gerais da obrigação cambiária' e sustentando-se mais desenvolvidamente o ponto de vista do anterior aresto, com apelo à doutrina e à jurisprudência, conquanto não tenha havido a preocupação de responder de forma directa à invocação de inconstitucionalidade feita no respectivo requerimento (para correcção do acórdão de 16 de Dezembro de 1998, 'por conter erros, lapsos, obscuridades e ambiguidades'), quando o reclamante diz, na parte final, isto: 'Se foram interpretadas e aplicadas as disposições atrás citadas doutra forma (artºs 66º e ss do CC, 5º, 252º e 260º, nºs 1 e 4, do CSC, 71º e 377º, nº 1, do CPP, 129º do CP) estas são inconstitucionais, por violação dos artºs 2º (princípio da igualdade, confiança legítima, boa-fé), 12º, nºs 1 e 2, 13º, nºs 1 e 2, 18º, nºs
1, 2 e 3, 20º, nºs 1, 4 e 5, 26º, nº 1 e 62º, nº 1, e 203º da Constituição da República Portuguesa'. Ora, neste quadro processual, e originado aquele acórdão de um pedido de correcção feito pelo reclamante, 'ao abrigo do disposto no art. 380º, nº 1, alínea b) do CPP, ex vi do artº. 425º, nº 4, do CPP', é bom de ver que tais normas, que ele pretensamente reputa de inconstitucionais, não foram efectivamente aplicadas nessa decisão. A aplicação que se faz no acórdão é das normas do regime processual penal que deram cobertura ao pedido apresentado pelo reclamante, mas elas não preenchem o objecto do recurso de constitucionalidade delineado no respectivo requerimento. As ditas normas (do Código Civil, do Código das Sociedades Comerciais, do Código de Processo Penal e do Código Penal) ou, pelo menos, algumas delas, foram, sim, aplicadas no acórdão anterior de 16 de Dezembro de 1998, que envolveu o juízo sobre a condenação do arguido no pedido cível, limitando-se o acórdão recorrido a reeditar o mesmo juízo, embora com longo excurso explicativo sobre a matéria, e mantendo a mesma condenação no pedido cível. Só que não é aquele acórdão de 16 de Dezembro de 1998 o acórdão recorrido, como ficou já dito. Sustentando o reclamante perante o tribunal de relação que devia ser absolvido do crime e, por consequência, absolvido do pedido cível, e tendo aquele acórdão feito a análise da obrigação cambiária e a verificação dos 'elementos de facto respeitantes ao ilícito civil', tudo para saber se, afinal, 'o fundamento da alegação de indemnizar não é o crime, mas a violação do direito subjectivo que o crime (também) provoca', deveria tal decisão constante do acórdão de 16 de Dezembro de 1998 ser verdadeiramente o objecto do recurso de constitucionalidade, mas não foi. Portanto, e por razões diferentes do que defende o Ministério Público, no seu Parecer, concluindo-se que não houve aplicação das normas questionadas pelo reclamante no acórdão de 28 de Abril de 1999, nunca poderia ser admitido o recurso de constitucionalidade, não merecendo, pois, censura, mas com este fundamento, o despacho reclamado. Uma derradeira palavra para registar, tal como diz o Ministério Público, que 'é evidente que inexistem os pressupostos do recurso concomitantemente baseado na al. f) deste preceito legal, [o nº 1 do art. 70º da Lei 28/82] por se não vislumbrar, no presente litígio, qualquer questão de ilegalidade 'qualificada', susceptível de fundar um recurso de fiscalização concreta'.
5. Termos, em que, DECIDINDO, indefere-se a reclamação e condena-se o reclamante nas custas, com a taxa de justiça fixada em 15 unidades de conta. Lisboa, 28 de Março de 2000 Guilherme da Fonseca Paulo Mota Pinto José Manuel Cardoso da Costa