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Processo nº 14/99
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. S..., Ldª, sociedade comercial com sede na Póvoa de Varzim, veio interpor recurso para este Tribunal Constitucional do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra (1ª Secção Cível) de 10 de Novembro de 1998, dizendo no requerimento de interposição do recurso:
'a) O recurso é interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70 da L.T.C.; b) Pretende-se que o Tribunal Constitucional aprecie a inconstitucionalidade da norma do art. 238-A do Código de Processo Civil (red. DL 242/85, de 9 de Julho), a interpretação dada pelos Meritíssimos Juizes da 1ª, 2ª instâncias, bem como todo o citado DL 242/85, de 9/7; c) Considerar-se violados os princípios constitucionais da universalidade, da igualdade e do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, arts. 12º, 13º e 20º do C.R.P.; d) A questão da inconstitucionalidade foi suscitada no requerimento inicial do incidente de nulidade e nas alegações de recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra.' E, respondendo ao convite do Relator, feito ao abrigo do disposto no artigo
75º-A, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, aditado pelo artigo 2º, da Lei nº
85/89, de 7 de Setembro, e na redacção do artigo 1º, da Lei nº 13-A/98, de 26 de Fevereiro, prestou os seguintes esclarecimentos:
'- A questão que se coloca é a de saber se a formulação da norma do art. 238-A do Código de Processo Civil pelo Governo, da forma como o foi, coloca em crise os princípios da universalidade e igualdade consagrados nos arts. 12º e 13º da Constituição – se o Governo legislou sobre matéria da competência exclusiva da Assembleia da República.
- A interpretação dada pelos Meretíssimos Juizes da 2ª instância (e não da 1ª instância, como por lapso se disse, uma vez que a sentença quanto a este aspecto foi omissa) foi no sentido de 'concluímos que o princípio da igualdade diz respeito aos cidadãos, ou seja às pessoas singulares' (...) 'tendo como destinatários os cidadãos, as sociedades, como pessoas colectivas estão fora do
âmbito dele', (...) 'excluindo em relação a pessoas colectivas, por não ser compatível com a sua natureza'.
- O douto acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Coimbra entendeu que não estando em causa os princípios de igualdade e da universalidade podia o Governo ter legislado o art. 238-A do C.P.C., significando que este normativo não é inconstitucional.
- A interpretação que, a nosso ver, conduz à arguida inconstitucionalidade é precisamente contrária à do respeitável Tribunal da Relação de Coimbra. Entende a recorrente que o Governo carecia de autorização legislativa para alterar o Código de Processo Civil, maxime no que concerne ao art. 238-A, precisamente por violação dos princípios da universalidade, da igualdade dos direitos e do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva previstos nos arts. 12º, 13º e 20º da Constituição da República Portuguesa.
- Não há justificação para tratar desigualmente o que merece tratamento igual.
- O executivo carecia de autorização para restringir os direitos, liberdades e garantias das pessoas (singulares e/ou colectivas).'
2. Nas suas alegações, concluiu assim a recorrente:
'1- No regime anterior ao DL 242/85, de 9 de Julho, a citação de todas as pessoas (singulares e colectivas) era por contacto pessoal, em mão, como regra geral;
2- Após a entrada em vigor daquele diploma legal, a citação das pessoas singulares continuou a ser feita pessoalmente, em mão, e o das pessoas colectivas pelo correio, ainda que facultativamente.
3- No entanto, as acções propostas contra as pessoas físicas e/ou contra as pessoas colectivas podem ter como causa de pedir situações semelhantes.
4- Os direitos fundamentais das pessoas singulares podem ser alcançados através das pessoas colectivas.
5- A liberdade, segurança e propriedade são também direitos fundamentais das pessoas colectivas. formulados inicialmente para os indivíduos, estendem-se depois às pessoas colectivas por analogia.
6- A controvérsia emergiu de um acto específico, estritamente relacionado com o fim da sociedade recorrente.
7- Daí que na acção judicial contra si intentada, a omissão das cautelas necessárias na citação da demanda colocou, em crise os direitos fundamentais da recorrente, mormente a segurança e a cabal defesa do seu património.
8- Uma defesa só é plena e a tutela jurisdicional só é efectiva se o chamamento
à acção for eficaz, seguro e certo.
9- O direito de a recorrente (sociedade comercial) ser citada pessoalmente, em mão, não é incompatível com a sua personalidade colectiva pelo que, pode ser aplicado com a mesma extensão e conteúdo que às pessoas físicas. Nesse aspecto, não têm razão de ser as cautelas do Ac. deste TC nº 198/85.
10- O princípio da universalidade dos direitos não excepciona este caso concreto de igualdade de tratamento no acesso ao direito para a defesa dos direitos das pessoas colectivas, tendo em vista uma tutela jurisdicional efectiva.
11- O princípio da igualdade, cujo conteúdo proíbe o arbítrio e discriminação, exige que as medidas de diferenciação sejam materialmente fundadas sob o ponto de vista da segurança privada, da proporcionalidade, da justiça e da solidariedade.
12- A introdução do art. 238º-A, representa, ao menos em princípio, uma clara compreensão ou restrição do direito da recorrente.
13- Por essa razão, a restrição aos direitos subjectivos públicos da pessoa colectiva é da competência da Assembleia da República.
14- O Governo ao restringir os direitos, liberdades e garantias das pessoas colectivas, maxime na introdução do art. 238º-A do Código de Processo Civil carecia de autorização legislativa, que não obteve previamente.
15- A lei de autorização (Lei nº 9/85, de 5 de Julho) invocada pelo Governo para fazer as alterações ao Código de Processo Civil, maxime a introdução, de um artigo novo, o art. 238ºA, não tem nada a ver com as alterações ao processo civil.
16- Está assim ferida de inconstitucionalidade a norma do art. 238º-A do Código de Processo Civil, bem como a interpretação da mesma dada pelos Meretíssimos Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Coimbra no sentido de que o princípio da igualdade diz respeito aos cidadãos, ou seja às pessoas singulares e que tendo como destinatários os cidadãos, as sociedades, como pessoas colectivas, estão fora do âmbito dele, excluindo-o em relação a estas pessoas, por considerarem não ser compatível com a sua natureza. Foram violados entre outros os princípios constitucionais da universalidade, da igualdade, do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, do Estado de Direito e da separação de poderes, bem como as normas do art. 2º,
12º,13º,17º,18º, 20º, 165º, nº 1, a) e nº 3 da Constituição da República Portuguesa'.
3. A recorrida Maria Manuela Lopes Coelho Ferreira Carvalho, com os sinais identificadores dos autos, não apresentou alegações.
4. Tudo visto, cumpre decidir. O autos mostram que contra a recorrente foi intentada pela ora recorrida uma acção declarativa de condenação com processo ordinário e nela foi proferida a sentença condenatória, com parcial procedência da acção, sem que a recorrente tivesse contestado. Veio, entretanto, ela a arguir a sua falta de citação, requerendo a declaração de nulidade do processo, para voltar a repetir-se a citação, não colhendo, porém, êxito esta sua pretensão. A questão centrou-se, pois, em saber se, por aplicação da norma questionada do artigo 238º-A, do Código de Processo Civil, na redacção então em vigor
(introduzida pelo Decreto-Lei 242/85, de 9 de Julho) e anteriormente à nova versão do Código de 1997, a recorrente foi ou não regularmente citada, - tendo-se 'como efectuada na própria pessoa do citando'-, por via de carta registada com aviso de recepção (estando preenchida a área reservada à assinatura do destinatário). O acórdão recorrido não declarou 'a nulidade da falta de citação da R., conforme foi requerido pela R., dado que tal nulidade não existiu, considerando-se antes tal citação como correctamente efectuada' e, a concluir, afirma-se nele: 'Não se declara inconstitucional o artigo 238A conforme requereu a R.' Para tanto, discorreu o acórdão do modo que se segue:
'Defende a agravante que a aludida norma é inconstitucional, porque a matéria sobre que versa é da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, não estando o Governo habilitado com a necessária lei de autorização legislativa, visto que a lei em que se baseia (Lei 9/85) não tem nada a ver com as alterações ao processo civil. Levanta pois a R. a inconstitucionalidade orgânica do Governo para legislar sobre a matéria.
É verdade que o Dec-Lei que introduziu no processo o art. 238ºA, menciona que o Governo usa a autorização legislativa conferida pela Assembleia da República através da Lei 9/85 e que esta constitui uma autorização para o Governo poder definir ilícitos criminais ou contravencionais e correspondentes penas bem como estabelecer as normas processuais que se mostrem necessárias. Por conseguinte, não se pode buscar naquela autorização legislativa a competência do Governo para introduzir alterações e inovações no processo civil. Porém, a nosso ver, não ocorre a arguida inconstitucionalidade orgânica, visto que o Governo tinha competência para legislar sobre a matéria em causa, dado que a mesma não era da competência exclusiva da Assembleia da República, como iremos ver (art. 168º nº 1 e 201º da Constituição da República Portuguesa, na redacção introduzida pelo LC 1/82). No entender da R. o Governo carecia de autorização legislativa da Assembleia da República, porque 'não tem justificação discriminar-se o que é igual. Ou seja quer as pessoas colectivas, quer as pessoas morais, são pessoas com os mesmos direitos, liberdades e garantias no que concerne a determinados direitos substantivos (civis, administrativos, fiscais ou penais), maxime quanto às garantias de defesa dos seus direitos patrimoniais. O princípio da universalidade de direitos não excepcionam este caso concreto de igualdade de tratamento no acesso ao direito para defesa dos seus interesses – art. 12º e 13º da Constituição'. Face a esta posição, temos que concluir que a R. entende, apesar de o não dizer claramente, que o Governo precisava de autorização legislativa da Assembleia da República, porque a matéria em causa, versava sobre direitos, liberdades e garantias de competência exclusiva desta, nos termos do art. 168º nº 1 al. a) da Constituição. Dentre estes direitos, os princípios da universalidade e da igualdade (pela discriminação de que as pessoas colectivas foram alvo) é que, no seu entender, foram colocados em causa no presente caso. A questão que se coloca é pois a de saber se a formulação das normas processuais civis pelo Governo, da forma como o foram, designadamente o art. 238A, colocam em crise o princípio da universalidade e igualdade consagrados nos arts. 12º e
13º da Constituição, o que é o mesmo que indagar-se se o Governo legislou sobre matéria da competência exclusiva da Assembleia da República. Estabelece o artigo 13º da Constituição:
[...] Logo numa primeira abordagem à disposição, concluímos que o princípio da igualdade diz respeito aos cidadãos, ou seja, às pessoas singulares. Este princípio, que é um princípio fundamental impõe-se 'como corolário da igual dignidade humana de todas as pessoas (cfr. art. 1º), cujo sentido imediato consiste na proclamação da idêntica «validade cívica» de todos os cidadãos, independentemente da sua inserção económica, social, cultural e política, proibindo desde logo formas de tratamento ou de consideração social discriminatórias' (in Constituição da República Portuguesa Anotada, Gomes Canotilho e Vital Moreira, 2ª edição, 1º volume, pág. 148). Dizendo este princípio respeito e tendo como destinatários os cidadãos, as sociedades, como pessoas colectivas, estão fora do âmbito dele. Assim sendo, não se poderá afirmar que a disposição aludida, viola o art. 13º da nossa Lei Fundamental. Por outro lado o art. 12º da Constituição que refere que os cidadãos gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres consignados na Constituição, estabelece no seu nº 2 que 'as pessoas colectivas gozam dos direitos e estão sujeitas aos deveres compatíveis com a sua natureza' o que inculca que o legislador constitucional distinguiu as pessoas colectivas das singulares, não atribuindo
àquelas todos os direitos destes mas tão só aqueles que sejam compatíveis com a sua natureza. 'É claro que ser ou não compatível com a natureza das pessoas colectivas depende naturalmente da própria natureza de cada um dos direitos fundamentais, sendo incompatíveis aqueles direitos que não são concebíveis a não ser com conexão com as pessoas físicas, com os indivíduos' (in mesma Constituição Anotada, pág. 146). Disto resulta que, sendo o princípio da igualdade um princípio só atinente a particulares, nos próprios termos do art.
12º nº 2 mencionado, tal princípio deve ter-se como excluído em relação a pessoas colectivas, por não ser compatível com a sua natureza. Daqui se conclui que estando o princípio da igualdade excluído no que concerne
às pessoas colectivas, nunca se poderá afirmar que a disposição em causa contende com tal princípio. Assim se conclui que os princípios consagrados nos arts. 12º e 13º da Constituição no que concerne às pessoas colectivas e sociedades, não foram colocados em crise pela forma como o Governo legislou sobre a citação dessas entidades. Por isso não se pode dizer que o Governo tenha legislado sobre a matéria de competência exclusiva da Assembleia da República. Significa isto que a norma em causa (art. 238ºA) não é inconstitucional, pelo que também, nesta parte, o sustentado pela agravante é insubsistente.'
5. O questionado artigo 238º-A, regulando a citação pelo correio das pessoas colectivas e das sociedades, dispunha assim:
'1. A citação de pessoas colectivas e das sociedades poderá fazer-se por meio de carta registada com aviso de recepção, que terá o valor de citação pessoal.
2. Com a carta remeter-se-á duplicado da petição e nela deverá declarar-se que a destinatária fica citada para os termos da acção a que se refere o duplicado junto e indicar-se-á o juízo e secção em que o processo corre, o prazo em que pode ser oferecida a defesa e a cominação, quando a houver, a que a destinatária fica sujeita, na falta desta.
3. O aviso deverá ser assinado de harmonia com os regulamentos postais.
4. A citação considera-se feita no dia em que se mostar assinado o aviso de recepção.
5. A citação por via postal tem-se como efectuada na própria pessoa do citando'. Este preceito foi introduzido no Código de Processo Civil pelo artigo 2º do Decreto-Lei 242/85, de 9 de Julho, rectificado no Diário da República, I Série,
2º Suplemento, nº 200, de 31 de Agosto de 1985. Anteriormente, por força do então regime de citação prescrito naquele Código, as pessoas colectivas e as sociedades eram citadas na pessoa dos seus representantes ou de qualquer empregado, tendo neste caso a citação 'o mesmo valor que a citação feita na própria do representante' (artigos 233º e 234º). Portanto, e em qualquer caso, uma citação que excluía a hipótese de citação por via postal, antes assumindo sempre um carácter pessoal ou quase pessoal. O legislador de 1985, usando a autorização legislativa conferida pela Lei nº
9/85, de 5 de Junho, alterou vários artigos do Código, aditou outros, entre eles o questionado art. 238º-A, e revogou ainda os artigos 233º, 237º, 240º, 241º e
247º (artigo 3º), expressando no preâmbulo do diploma o objectivo fundamental de tal reforma parcelar: o de 'introduzir, com urgência, certas modificações no direito processual vigente que ajudem a descongestionar a situação' (a situação de 'acréscimo notório de serviço'), tendo em vista 'uma linha geral de simplificação do processo'.
6. Toda a questão aqui posta roda à volta da faculdade de se optar no País pela citação pelo correio relativamente às pessoas colectivas e sociedades, só operando para estas, diferentemente da solução imposta da citação pessoal ou quase pessoal das pessoas singulares (hoje, com a nova redacção do Código, a solução é outra mas, como regra, a via postal vale igualmente para pessoas singulares e colectivas - artigo 235º). Se isso, se esse regime processual introduzido em 1985 - passando a coexistir a citação pelo correio, a par de outras formas distintas de citação das pessoas colectivas e sociedades -, é ou não violador de normas ou princípios constitucionais, nomeadamente, os princípios da universalidade e da igualdade, é o que importa dilucidar, em primeira linha. Pertinentemente, e com relevo para o tratamento de pessoas colectivas, escreveu-se no acórdão do Tribunal Constitucional nº 569/98, inédito, e que por comodidade, se transcreve:
'6. Desde logo, adiante-se que não se descortina qualquer violação do princípio da universalidade, disposto no artigo 12º da Constituição. Este dispõe:
1. Todos os cidadãos gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres consignados na Constituição.
2. As pessoas colectivas gozam dos direitos e estão sujeitas aos deveres compatíveis com a sua natureza.
É o próprio texto constitucional a distinguir de forma clara as pessoas singulares das pessoas colectivas, ao referir-se a estas de forma expressa naquele nº 2, ressalvando assim a sua específica natureza. Não se descortina aqui qualquer equiparação, ainda que formal, da personalidade colectiva à personalidade singular. Com efeito, a personalidade colectiva, como criação jurídica, reveste-se de uma específica natureza e características, impossibilitando qualquer ficção de equiparação à personalidade singular. Assim, como dispõe o artigo 160º do Código Civil, no seu nº 2, «exceptuam-se [da capacidade das pessoas colectivas] os direitos e obrigações vedados por lei ou que sejam inseparáveis da personalidade singular», sendo a regra geral a de que a capacidade das pessoas colectivas apenas abrange os direitos e as obrigações (ou deveres) compatíveis com a sua específica natureza e que sejam necessários à prossecução dos seus fins - é o princípio da especialidade. Não são, pois, imediatamente aplicáveis às pessoas colectivas, indiscriminadamente, todas as normas e regras que o são às pessoas singulares. Não existe no nosso sistema uma equiparação ou presunção de igualdade entre personalidade singular e personalidade colectiva, como parece entender a recorrente.
7. Citando J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição revista, Coimbra, 1993: As pessoas colectivas não podem ser titulares de todos os direitos e deveres fundamentais mas sim apenas daqueles que sejam compatíveis com a sua natureza
(nº 2, in fine). Saber quais são eles, eis um problema que só pode resolver-se casuisticamente. Assim, não serão aplicáveis, por exemplo, o direito à vida e à integridade pessoal, o direito de constituir família; já serão aplicáveis o direito de associação, a inviolabilidade de domicílio, o segredo de correspondência, o direito de propriedade. [...]
É claro que o ser ou não ser compatível com a natureza das pessoas colectivas depende naturalmente da própria natureza de cada um dos direitos fundamentais, sendo incompatíveis aqueles direitos que não são concebíveis a não ser em conexão com as pessoas físicas, com os indivíduos. E depende também da natureza das pessoas colectivas em causa [...]
É evidente que certos direitos podem revelar-se incompatíveis com a personalidade colectiva apenas em parte ou em certa medida, pelo que não podem ser aplicados com a mesma extensão e conteúdo que às pessoas físicas.
8. Este entendimento foi já acolhido por este Tribunal, nomeadamente no Acórdão nº 198/85, (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 6º vol., págs. 473), a propósito da norma constante do artigo 1216º do CPC e do conteúdo do direito ao sigilo de correspondência relativamente às pessoas colectivas. Entendendo-se que tal direito «não é incompatível com a natureza das pessoas colectivas e de que, portanto, este é um direito fundamental de que também tais pessoas gozam, nos termos do nº 2 do artigo 12º da Constituição», aí se afirma em seguida: Simplesmente, a «aplicação» dos direitos fundamentais às pessoas colectivas não pode deixar de levar em conta a particular natureza destas - e de tal modo que seguramente tem de reconhecer-se que, ainda quando certo direito fundamental seja compatível com essa natureza, e portanto susceptível de titularidade
«colectiva» (hoc sensu), daí não se segue que a sua aplicabilidade nesse domínio se vá operar exactamente nos mesmos termos e com a mesma amplitude com que decorre relativamente às pessoas singulares. Tem a doutrina chamado a atenção para o ponto, e designadamente para o facto de o «conteúdo» dos direitos fundamentais poder ser diferente (e mais estreito) quando o respectivo titular for uma pessoa colectiva, antes que uma pessoa singular.
9. Presente esta distinção fundamental, vejamos então o conteúdo do princípio da igualdade. Como tem este Tribunal amplamente afirmado (cfr., por todos, Acórdãos nº 44/84, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 3º vol., págs. 133 e segs., nº
309/95, Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol., págs. e segs., nº 191/88, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 12º vol., págs. 239 e segs., nº 303/90, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 17º vol., págs. 65 e segs., nº 468/96, Diário da República, II série, de 13 de Maio de 1996, e, mais recentemente, nº
1186/96, Diário da República, II série, de 12 de Fevereiro de 1997, e nº
1188/96, Diário da República, II série, de 13 de Fevereiro de 1997), o que o princípio da igualdade proíbe não é a realização de distinções pelo legislador, mas antes que este estabeleça situações discriminatórias, isto é, desigualdades de tratamento materialmente infundadas, desprovidas de fundamento razoável ou de justificação objectiva e racional. Proíbe, pois, o arbítrio. Não haverá qualquer ofensa desse princípio sempre que estivermos perante situações de facto diferentes, merecendo da parte do legislador tratamento diverso em função de tal diferenciação. Já tal se verificará se, perante situações de facto idênticas a exigirem um mesmo e único tratamento indiferenciado, o legislador, sem fundamento razoável e objectivo, criar tratamentos diferenciados para elas'.
7. A norma aqui em questão, pela matéria que versa, insere-se no âmbito da problemática da citação do réu em processo civil, à luz do Código parcialmente alterado com o Decreto-Lei 242/85, na linha de um pensamento de simplificação de processo, passando a tratar-se distintamente no País as pessoas singulares e as pessoas colectivas e sociedades, pois, só para estas se abriu a possibilidade da citação pelo correio. O tratamento uniformizado no País das várias formas de citação pessoal ou quase pessoal do réu em processo civil, fosse ele pessoa singular ou fosse pessoa colectiva e sociedade, quebrou-se com a inovação da citação pelo correio, só operando para a pessoa colectiva e sociedade (a outra hipótese de citação pelo correio era a do réu residir em país estrangeiro, e na falta de estipulação nos tratados e convenções internacionais). Ora, a citação, como acto pelo qual se chama o réu a juízo (in jus vocatio), dando-se-lhe conhecimento dos termos da acção e da possibilidade de deduzir defesa (artigo 228º do Código), é um momento processual relevantíssimo, desde logo porque se marca o prazo concedido ao réu para apresentar a sua defesa, e tem efeitos materiais, como seja a interrupção da prescrição, e processuais, de várias matizes, com influência decisiva nos direitos do autor e do réu da acção em causa, daí decorrendo a dialéctica entre as partes interessadas no pleito
(cfr. o acórdão do Tribunal Constitucional nº 335/95, nos Acórdãos, 31º vol., pág. 531, sobre o 'o direito de defesa do demandado' e a citação edital). Será que a solução no País da citação não pessoal para as pessoas colectivas e sociedades, com os riscos daí decorrentes, envolve a tal desigualdade de tratamento materialmente infundada, desprovida de fundamento razoável ou de justificação objectiva e racional? A resposta tem de ser negativa. Mesmo partindo do quadro relevante da função e dos efeitos da citação do réu - e daí o seu carácter pessoal ou quase pessoal no País - e mesmo considerando a importância de se garantir efectivamente ao réu o conhecimento de que foi proposta contra ele determinada acção e é chamado ao processo para se defender, não se vê que se imponha, aqui, uma igualdade de tratamento entre pessoas singulares e pessoas colectivas e sociedades. E, portanto, a desigualdade não deixa de assentar em fundamentos objectivos e razoáveis ( e não se questiona, ao contrário das afirmações do acórdão recorrido, que o princípio da igualdade também tem como destinatários as pessoas colectivas - cfr. o citado acórdão nº
561/98). Na verdade, bem se compreende que, para se atingir a efectividade da defesa do réu em qualquer acção, se garanta, em toda a sua plenitude e extensão, o direito de acesso aos tribunais constante do artigo 20º da Constituição, na vertente de acesso à via judiciária. Mas isto não significa que se esteja perante uma igualdade de situações - é ela que constitui o necessário pressuposto para que se possa considerar a operatividade do princípio jurídico-constitucional da igualdade, que decorre da conjugação dos artigos 13º e 20º da Constituição - quando o réu é uma pessoa singular ou é uma pessoa colectiva. Sendo isto assim, a solução legal da possibilidade de citação pelo correio das pessoas colectivas e sociedades não está desprovida de fundamento razoável ou de justificação objectiva e racional, no quadro do propósito enunciado pelo legislador de 'uma linha geral de simplificação do processo', pois a distinção relativamente às pessoas singulares aceita-se, por serem diferentes as situações de facto. A particular natureza das pessoas colectivas e a especificidade da personalidade colectiva, como criação jurídica, justificam que para elas o legislador possa ditar soluções legais diferentes e é a própria Constituição, no artigo 12º, a proclamar a distinção (cfr. com o mesmo entendimento o acórdão do Tribunal Constitucional nº 632/99, publicado no Diário da República, II Série, nº 67, de 20 de Março de 2000, a propósito da 'validade de uma norma que permitiria a citação, em pais estrangeiro de uma sociedade com sede nesse país, através de carta registada com aviso de recepção, em língua portuguesa', remetendo-se para a sua fundamentação). Registe-se, por último, o seguinte: ainda que a citação fosse o sistema seguido para as pessoas colectivas e sociedades, o certo é que essa citação não é só operativa na pessoa dos seus representantes (cfr. artigo 234º, nº 3). Com o que se conclui que não são feridos os invocados princípios da universalidade e da igualdade.
8. Entende ainda a recorrente - e este é o ponto fulcral da sua argumentação - que o 'Governo ao restringir os direitos, liberdades e garantias das pessoas colectivas, maxime na introdução do art. 238º-A do Código de Processo Civil carecia de autorização legislativa, que não obteve previamente' e que a 'lei de autorização (Lei nº 9/85, de 5 de Julho) invocada pelo Governo para fazer as alterações ao Código de Processo Civil, maxime a introdução, de um artigo novo, o art. 238ºA, não tem nada a ver com as alterações ao processo civil', e daí esta questão colocar-se em sede de (in)constitucionalidade orgânica (e é nítida, neste aspecto, a posição da recorrente, quando prestou esclarecimentos em resposta ao convite do Relator, como atrás ficou transcrito). A solução, porém, é fácil de buscar, pois a norma questionada do artigo 238º-A do Código de Processo Civil era claramente uma norma procedimental, inscrita naquele Código, que apesar da sua importância, por implicar com a situação do réu, limitava-se a regular o modo dessa citação, quando se trata 'de pessoas colectivas e das sociedades'. Sendo essa a sua natureza, e embora a autorização legislativa em que se abrigou o Decreto-Lei nº 242/85, de 9 de Julho, cujo artigo 2º introduziu no Código o artigo 238º-A, nada tenha a ver com alterações ao processo civil - a Lei nº
9/85, de 5 de Julho, a lei de autorização, reportava-se à definição de ilícitos criminais ou contravencionais e correspondentes penas, bem como o estabelecimento das normas processuais que se mostrem necessárias -, o certo é que o Governo tinha competência para legislar sobre a matéria em causa, como é jurisprudência corrente do Tribunal Constitucional. Por isso, não releva saber agora se aquela Lei nº 9/85 dava ou não cobertura ao Governo para editar uma norma do tipo do artigo 238º-A e já se viu que está afastado qualquer conflito com os princípios da universalidade e da igualdade (para o acórdão recorrido, e neste aspecto, decisivo foi concluir que 'os princípios consagrados nos arts.
12º e 13º da Constituição no que concerne às pessoas colectivas e sociedades, não foram colocados em crise pela forma como o Governo legislou sobre a citação dessas entidades', e, por isso, 'não se pode dizer que o Governo tenha legislado sobre a matéria de competência exclusiva da Assembleia da República') Como se diz no acórdão nº 375/95, nos Acórdãos, vol. citado, pág. 601, relativamente a normas da providência da injunção, sendo elas de natureza processual civil, é 'indiscutível a competência legislativa do Governo, para regular tal matéria, nos termos do artigo 201º, nº 1, alínea a), da Constituição' (no mesmo sentido cfr. os acórdãos nºs 85/88 e 399/95, publicados no Diário da República, II Série, de 22 de Agosto de 1988 e de 16 de Novembro de
1995, respectivamente). Tanto basta para dar como não verificado o arguido vício de inconstitucionalidade orgânica.
9. Termos em que, DECIDINDO, nega-se provimento ao recurso e condena-se a recorrente nas custas com a taxa de justiça fixada em 15 unidades de conta. Lisboa, 22 de Março de 2000 Guilherme da Fonseca Paulo Mota Pinto Bravo Serra Maria Fernanda Palma José Manuel Cardoso da Costa