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Processo n.º 335/99
2ª Secção Relator - Paulo Mota Pinto
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional: I. Relatório
1. E..., 'não se conformando com o douto Acórdão que confirmou, com a respectiva decisão, o Despacho do Exmo Relator que havia recaído sobre a sua anterior reclamação do referido Despacho', interpôs o presente recurso para o Tribunal Constitucional, com fundamento em que, em conclusão,
'ao não ter notificado o arguido da decisão que havia proferido em sede de recurso, o S.T.J. violou as garantias de defesa constitucionalmente consagradas na nossa constituição e ao mesmo Acórdão não poderá ser atribuído o trânsito em julgado.' Notificado, nos termos do artigo 78º-A, n.ºs 5 e 6, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (Lei do Tribunal Constitucional), para indicar os elementos exigidos nos n.ºs 1 e 2 do mesmo artigo, veio o recorrente dizer que:
'o presente recurso é interposto ao abrigo do disposto nas alíneas b) e f) do Artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, porquanto o S.T.J. está a fazer prevalecer uma interpretação dos Artigos n.ºs 372º e 373º do anterior C.P.P. – art.º 373º n.º 3 do actual C.P.P. – contrária à própria Constituição, nomeadamente a Artigo 32º e 207º, dispensando o princípio do contraditório, da inocência do arguido até que exista uma sentença de condenação transitada em julgado tudo conforme melhor informado nos requerimentos endereçados ao S.T.J., nomeadamente dos requerimentos datados de 02/02/99 e 14/04/99.'
2. No Tribunal Constitucional, o recorrente concluiu as alegações defendendo que:
'entende que as normas - do Artigo 435º n.º 3, com referência ao Artigo 372º n.ºs 4 e 5 do C.P.P. – que serviram de base à fundamentação pelo Venerando Supremo Tribunal de Justiça, para concluírem que no Supremo o conhecimento é levado a cabo através da publicação da decisão do mesmo, não importando que os sujeitos processuais estejam presentes e depois com o depósito na Secretaria, devem ser julgadas inconstitucionais - inconstitucionalidade material – quando interpretadas e aplicadas nos termos e alcance com que o Venerando Supremo Tribunal de Justiça o fez, i e, entendendo que no Supremo, ao contrário do que se impõe aos restantes Tribunais abrangidos pela aplicação do Código de Processo Penal anterior, não se torna necessário dar conhecimento aos sujeitos processuais das decisões penais por si elaboradas, apenas importando a publicação da decisão e o depósito na secretaria'. Tais disposições violariam, entre outras, as normas dos artigos 32º, n.ºs 1 e 2,
205º e 207º da Lei Fundamental.
3. O Ex.mº Procurador-Geral Adjunto em exercício de funções neste Tribunal suscitou em contra-alegações a questão prévia da inadmissibilidade do recurso, por, em síntese,
'não obstante ter sido convidado a indicar a peça processual em que suscitou a questão da inconstitucionalidade, o recorrente não o ter feito; e por a mesma questão não ter sido suscitada ‘durante o processo’.' Notificado para responder, querendo, a esta questão prévia, veio o recorrente pugnar pelo conhecimento do recurso, dizendo que:
'todas estas questões foram suscitadas ‘durante o processo’, contrariamente ao douto entendimento do Digno M.P., e logo que delas teve o Arguido conhecimento, nomeadamente quando teve conhecimento de que não tinha estado presente um defensor oficioso aquando da publicação da decisão que o manda, tanto quanto se pensa uma vez que foram emitidos mandados de captura, cumprir quatro anos e seis meses efectivos de prisão.' E ainda que:
'(...) a questão da constitucionalidade, acrescentamos nós, processual penal foi desde logo suscitada a partir da altura em que o Recorrente teve conhecimento da origem da mesma, i. é, da interpretação que o mesmo STJ tinha dado aos artigos do C.P.P.'. Cumpre decidir. II. Fundamentos
4. O presente recurso vem interposto ao abrigo das alíneas b) e f) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional. A referência a esta última alínea não pode, todavia, deixar de dever-se, como muito bem notou o Ministério Público nas suas contra-alegações, a lapso de escrita. Na verdade, essa alínea refere-se ao recurso de decisões que apliquem norma cuja ilegalidade haja sido suscitada durante o processo com qualquer dos fundamentos referidos nas alíneas c), d) e e) – isto é, com fundamento em violação de lei com valor reforçado, em violação do estatuto da região autónoma ou de lei geral da República (para as normas constantes de diploma regional), ou em violação do estatuto de uma região autónoma. É que nem durante o processo nem no requerimento de recurso o recorrente suscitou qualquer questão normativa de legalidade.
5. Quanto ao recurso de constitucionalidade, sendo interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, é requisito para dele se poder tomar conhecimento, além da aplicação pelo tribunal recorrido da(s) norma(s) cuja constitucionalidade se impugna e do esgotamento dos recursos ordinários que no caso cabiam, que a inconstitucionalidade normativa tenha sido suscitada durante o processo. Este último requisito, como se decidiu no Acórdão n.º 352/94 (publicado no Diário da República, II série, de 6 de Setembro de 1994), deve, porém, ser entendido, 'não num sentido meramente formal (tal que a inconstitucionalidade pudesse ser suscitada até à extinção da instância)', mas 'num sentido funcional', de tal modo 'que essa invocação haverá de ter sido feita em momento em que o tribunal a quo ainda pudesse conhecer da questão', 'antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que (a mesma questão de constitucionalidade) respeita' (sobre o sentido de tal requisito, v. José Manuel Cardoso da Costa, A jurisdição constitucional em Portugal, separata dos Estudos em homenagem ao Prof. Afonso Queiró, 2ª ed., Coimbra, 1992, pág. 51, e nota 50).
É este o único sentido que corresponde à natureza da intervenção do Tribunal Constitucional em via de recurso, para reapreciação ou reexame, portanto, de uma questão que o tribunal a quo pudesse e devesse ter apreciado – ver, por exemplo, o Acórdão n.º 560/94, publicado no Diário da República, II série, de 10 de Janeiro de 1995, onde se escreveu que 'a exigência de um cabal cumprimento do
ónus da suscitação atempada – e processualmente adequada – da questão de constitucionalidade não é, pois, [...] uma ‘mera questão de forma secundária’. É uma exigência formal, sim, mas essencial para que o tribunal recorrido deva pronunciar-se sobre a questão de constitucionalidade para que o Tribunal Constitucional, ao julgá-la em via de recurso, proceda ao reexame (e não a um primeiro julgamento) de tal questão' (e ainda o Acórdão n.º 155/95, publicado no Diário da República, II série, de 20 de Junho de 1995). O requerimento do recurso de constitucionalidade não é já, pois, como este Tribunal repetidamente tem afirmado, momento idóneo para pela primeira vez suscitar uma questão de constitucionalidade (v. também, além dos Acórdãos citados, por exemplo o Acórdão n.º 166/92, publicado no Diário da República, II série, de 18 de Setembro de 1992). Antes o recorrente tem o ónus de suscitar a inconstitucionalidade perante o tribunal a quo, para este se pronunciar sobre ela. Esta orientação, como também se salientou no referido Acórdão n.º 352/94, sofre restrições apenas em situações excepcionais, anómalas, nas quais o interessado não dispôs de oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade antes de proferida a decisão final, ou não era exigível que o fizesse, por o tribunal a quo ter efectuado uma aplicação de todo insólita e imprevisível da norma impugnada. Quem pretende recorrer para o Tribunal Constitucional com fundamento na aplicação de uma norma que reputa inconstitucional tem, porém, oportunidade processual de suscitar a questão de constitucionalidade perante o tribunal recorrido, antes de proferido o acórdão da conferência de que recorre – e não apenas, pela primeira vez, perante o Tribunal Constitucional –, se tal questão se refere a norma (ou a uma dada dimensão interpretativa desta) aplicada em despacho do qual interpôs reclamação para a conferência.
6. Ora, é justamente este último o caso dos autos, em que o recorrente apenas no requerimento de recurso para o Tribunal Constitucional suscitou, pela primeira vez, a questão de constitucionalidade. Na verdade, o recorrente manifestou o propósito, através do requerimento de fls.
193 dos autos, de interpor recurso para o Tribunal Constitucional do despacho proferido em 22 de Setembro de 1998 pelo relator no Supremo Tribunal de Justiça
(a fls. 181), mas simultaneamente apresentou reclamação para a conferência desse despacho, apenas interpondo recurso para o Tribunal Constitucional logo 'caso não haja lugar previamente à apreciação de reclamação, que desde já se peticiona'. Em seguida, foi proferida por esse Supremo Tribunal, reunido em conferência (v. despacho de fls. 218) em 25 de Fevereiro de 1999 (a fls. 224), decisão que acordou 'em confirmar o dito despacho com a respectiva decisão' – decisão, essa, que tinha considerado resultar do artigo 435º, n.º 3, com referência ao artigo
372º, n.º 4 e 5, ambos do Código de Processo Penal, que 'ao contrário do que entende o arguido, no Supremo o conhecimento do acórdão é levado a cabo através da publicação do mesmo, não importando que os sujeitos processuais estejam presentes, e depois com o seu depósito na Secretaria'. Perante a descrição feita, logo se conclui que o recorrente teve oportunidade de suscitar a inconstitucionalidade da norma que se extrai dos artigos 372º e 373º do anterior Código de Processo Penal (artigo 373º, n.º 3 actual), na interpretação que reputa de inconstitucional e que pretende agora ver apreciada pelo Tribunal Constitucional. Teve-o, designadamente, no requerimento de fls.
193, pelo qual apresentou reclamação para a conferência do despacho que, nas suas palavras, 'recaiu sobre o respectivo requerimento no qual havia invocado a sua não notificação do Acórdão proferido e que negou provimento ao recurso, em conformidade com o facto de não ter estado presente nem mesmo representado, aquando da leitura do Acórdão, e daí o mesmo não ser passível de ter transitado em julgado, conforme o seu entendimento'. Isto, de tal modo que a conferência, cujo poder jurisdicional sobre a matéria não estava esgotado, pudesse ter apreciado essa questão de constitucionalidade.
7. Não se verifica, pois, no presente caso, nenhuma das situações excepcionais ou anómalas que a jurisprudência constitucional tem considerado dispensar os interessados da exigência da suscitação da inconstitucionalidade durante o processo (cfr. os Acórdãos n.ºs 1053/96, 1124/96 e 499/97, publicados no Diário da República, II série, de 26 de Dezembro de 1996, 6 de Fevereiro de 1997 e 21 de Outubro de 1997, respectivamente), sendo certo que a exigência deste requisito, como o Tribunal também tem sublinhado, decorre justamente do facto de se estar perante um recurso, que pressupõe, como vimos já, anterior decisão do tribunal a quo sobre a questão de constitucionalidade, que é reapreciada. Aliás, a simples 'surpresa' subjectiva da parte com a interpretação dada judicialmente a certa norma não é de molde a configurar uma dessas situações excepcionais, em que a interpretação judicial é de tal forma imprevisível que seria de todo desrazoável dever a parte contar com ela. (cfr., entre tantos outros, os Acórdãos n.ºs 90/85, 94/88 e 479/89, publicados no Diário da República, II série, de 11 de Julho de 1985, de 22 de Agosto de 1988 e de 24 de Abril de 1992, respectivamente). Em resumo: é manifesto é que o recorrente, mesmo depois da aplicação das normas que ora impugna perante este Tribunal no despacho do qual reclamou para a conferência, dispôs de oportunidade processual para suscitar a inconstitucionalidade de tais normas. Isto, portanto, antes de proferida em conferência a decisão de que se recorre (cfr., por todos, os Acórdãos deste Tribunal n.ºs 164/92 e 348/92, inéditos, onde se não conheceu do objecto do recurso com fundamento em não ter o recorrente suscitado a inconstitucionalidade perante o tribunal a quo, tendo tido oportunidade processual de o fazer, designadamente na reclamação para a conferência), e sem necessidade de vir a atacar a conformidade constitucional, pela primeira vez, apenas no recurso de constitucionalidade de fls. 230-233 dos autos. Não tendo a inconstitucionalidade das normas em causa sido suscitada durante o processo, e não se verificando uma situação que possa dispensar o recorrente de cumprir o respectivo ónus (designadamente, por, como se disse, ter podido fazê-lo no requerimento de fls. 193 pelo qual apresentou reclamação para a conferência) – não se verificando por esse facto os requisitos do presente recurso de constitucionalidade –, a conclusão forçosa é a de que deste recurso se não pode tomar conhecimento. III. Decisão Nestes termos, decide-se não tomar conhecimento do presente recurso e condenar o recorrente em custas, com 6 (seis) unidades de conta de taxa de justiça. Lisboa, 28 de Março de 2000 Paulo Mota Pinto Bravo Serra Guilherme da Fonseca Maria Fernanda Palma José Manuel Cardoso da Costa