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Procº nº 107/2000.
2ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
I
1. C..., S.A., propôs contra O... execução, seguindo a forma de processo ordinário, com vista a obter a cobrança coerciva da quantia de Esc.
263.335$00 e juros vencidos, no montante de Esc. 18.830$00, e vincendos, nomeando, desde logo e nos termos do artº 1º do Decreto-Lei nº 274/97, de 8 de Outubro, bens à penhora.
Por despacho de 29 de Janeiro de 1999 proferido pelo Juiz do 1º Juízo Cível da comarca de Lisboa, foi a acção executiva indeferida, por isso que recusou, por inconstitucionalidade, a aplicação daquele artº 1º, o que motivou o Ministério Público a, do assim decidido, interpor recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo do disposto na alínea a) do nº 1 do artº 70º da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro.
2. Determinada a feitura de alegações, rematou o recorrente a por si formulada com as seguintes «conclusões»:-
'1º - O regime constante do artigo 1º do Decreto-Lei nº 274/97, de 8 de Outubro, ao mandar aplicar à execução para pagamento de quantia certa, de valor não superior à alçada dos tribunais de 1ª instância, mesmo que fundada em título extra-judicial, e em que não sejam penhorados imóveis ou estabelecimento comercial, o regime estabelecido no Código de Processo Civil para a execução de sentença condenatória, não viola, em termos desproporcionados e constitucionalmente ilegítimos, o princípio do contraditório, ínsito no direito de acesso aos tribunais, afirmado pelo artigo 20º da Constituição da República Portuguesa.
2º - O diferimento do contraditório do executado para momento ulterior à realização da penhora - permanecendo esta como provisória até julgamento da oposição eventualmente deduzida na sequência da notificação pessoal do executado, nos termos do artigo 926º do Código de Processo Civil - ditado por prementes razões de celeridade e eficácia na efectivação prática e em tempo útil do direito do credor, não viola o referido princípio constitucional, atento o regime globalmente traçado para a tramitação de tal acção executiva.
3º - Na verdade - e para além de o próprio título executivo ser um documento que certifica ou indicia necessariamente, em termos julgados bastantes, a existência do débito - cumpre ao juiz, antes de ordenar a penhora, proferir despacho liminar, nos termos dos artigos 925º e 811º-A do Código de Processo Civil, devendo indeferir o requerimento executivo nos casos previstos nesta disposição legal, e sendo subsequentemente facultada ao executado, na sequência de notificação pessoal, nos termos do artigo 926º, o pleno contraditório, quanto à própria execução, ao despacho determinativo da penhora e à realização desta
(artigos 926º, nº 3, 863º-A e 815º do Código de Processo Civil)
4º - E podendo o credor, que haja instaurado de forma temerária ou negligente execução com base em crédito inexistente ou já extinto, ser responsabilizado por todos os danos que tenha causado ao executado em consequência do desapossamento dos bens penhorados, através da possível condenação como litigante de má fé, nos termos dos artigos 456º e 457º, nº 1 do Código de Processo Civil.
5º - Termos em que deverá proceder o presente recurso, em conformidade com um juízo de constitucionalidade da norma desaplicada na decisão recorrida'
Cumpre decidir.
II
1. O âmbito do presente recurso circunscreve-se à questão de saber se é, ou não, conforme à Constituição a norma constante do artº 1º do Decreto-Lei nº 274/97, de 8 de Outubro, que dispõe:- Artigo 1º Execução para pagamento de quantia certa
A execução para pagamento de quantia certa, baseada em título que não seja decisão judicial condenatória, segue, com as necessárias adaptações, os termos do processo sumário, desde que se verifiquem os seguintes requisitos:
a) Ser a execução de valor não superior ao fixado para a alçada do tribunal de 1ª. instância;
b) Recair a penhora sobre bens móveis ou direitos que não tenham sido dados de penhor, com excepção do estabelecimento comercial.
Como já se viu, a recusa de aplicação de tal normativo fundamentou-se numa pretensa violação do princípio do contraditório, sendo certo que, não obstante as referências ao direito de propriedade privada consagrado no artigo 62º da Constituição, nenhuma consequência se lobriga no despacho sub iudicio quanto a um eventual vício de que a transcrita norma padecesse e esteado na ofensa de tal direito.
Vejamos, pois.
2. Tem este Tribunal vindo a defender que no âmbito do direito à propriedade privada se insere o direito do credor (cfr., entre outros, o Acórdão nº 451/95, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 31º, pág.
129), de modo que um sacrifício deste implica uma restrição àquele e que, nomeadamente, 'este sacrifício será legítimo na medida em que for necessário para assegurar a sobrevivência condigna do devedor', conclusão que é de extrair
'do princípio da dignidade da pessoa humana' (cfr., também, o Acórdão nº 411/93, idem, volume 25º, pág. 615).
Todavia, no vertente caso, não se pode, sequer, falar numa violação do direito de propriedade do executado levada a efeito de forma intolerável e desproporcionada confrontadamente com o direito do credor, já que a norma sobre a qual recaiu o juízo de desaplicação não comanda, ela mesma, a exequibilidade de determinado título ou a satisfação coerciva do crédito.
3. O que se torna, assim, necessário enfrentar é a questão de saber se a norma ínsita no artº 1º do Decreto-Lei nº 274/97 vai ofender um princípio do contraditório que, supostamente deflui da Constituição relativamente ao foro cível ou, dizendo com maior propriedade, se por ela são postergados de forma acentuada e intolerável os direitos de defesa do devedor perspectivados estes numa vertente do próprio acesso aos tribunais.
No processo executivo, se for seguida a forma de processo sumário, o direito de nomear bens à penhora pertence exclusivamente ao exequente, que os nomeará logo no requerimento executivo (artº 924º do Código de Processo Civil) e, só depois de feita a penhora, é que o executado citado, sendo notificado simultaneamente do requerimento executivo, do despacho determinativo da penhora e da realização desta, para deduzir, querendo, no prazo de 10 dias, embargos de executado ou oposição à penhora (cfr. artº 926º do Código de Processo Civil).
Por outro lado, no domínio do artº 465º daquele corpo de leis, e como sabido é, a forma ordinária daquele processo será a seguida se, independentemente do valor, o título executivo não for uma decisão judicial ou, sendo-o, se o cumprimento da obrigação carecer de liquidação em execução de sentença. Nos demais casos, é seguida a forma de processo sumário.
Ora, o que se veio a consagrar na norma em apreciação foi que, estando em causa uma execução de valor não superior ao fixado para a alçada do tribunal de 1ª instância (Esc. 500.000$00 à data da propositura da acção executiva em questão) baseada em título executivo representativo de uma obrigação que não seja uma decisão judicial, e desde que a penhora não recaia sobre bens imóveis ou estabelecimento comercial ou sobre bens móveis ou direitos que não tenham sido dados em penhor, se seguirá a forma de processo sumário.
Vale isto por dizer que tal norma, nos referidos casos, o que veio a prescrever foi uma alteração na forma do processo.
Só que essa alteração implicou que, com base no título executivo venha, desde logo, a ocorrer a preempção dos bens que servirão para satisfazer o crédito em dívida.
3.1. Seguindo o processo executivo a forma ordinária, comanda o artº
811º do Processo Civil que [n]ão havendo fundamento para indeferir liminarmente ou determinar o aperfeiçoamento do requerimento executivo, o juiz determina a citação do executado para, no prazo de 20 dias, pagar ou nomear bens à penhora, podendo, desde logo, opor-se à execução por embargos, enquanto que, se se seguir a forma de processo sumário, só após a efectivação da penhora é que o executado
é notificado simultaneamente do requerimento executivo, do despacho determinativo da penhora e da realização desta, para deduzir, querendo, ..., embargos de executado ou oposição à penhora.
Se é compreensível o que se contém no despacho impugnado, o mesmo surpreendeu a inconstitucionalidade do normativo sub specie na circunstância de a citação ter lugar apenas após a penhora.
Será assim?
Adianta-se desde já que não.
4. No âmbito do Código de Processo Civil, o princípio do contraditório encontra-se consagrado no seu artº 3º, o qual dispõe no seu nº 3 que o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
E, tomando como parâmetro a Lei Fundamental, a verdade é que este Tribunal tem vindo a considerar a consagração do princípio do contraditório como algo integrado no direito de acesso aos tribunais, consagrado no seu artigo 20º.
Neste sentido veja-se, nomeadamente, o Acórdão nº 249/97 (publicado no Diário da República, 2ª Série, de 17-05-1997), de onde se destaca:-
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O direito de acesso aos tribunais é o ‘direito a ver solucionados os conflitos, segundo a lei, por um órgão que ofereça garantias de imparcialidade e independência, e perante o qual as partes se encontrem em condições de plena igualdade no que diz respeito à defesa dos respectivos pontos de vista’ (cf. acórdão nº.346/92, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume
23º, páginas 451 e seguintes).
O direito de acesso aos tribunais é, na verdade, dominado por uma ideia de igualdade, uma vez que - como se sublinhou no acórdão nº.147/92, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 21º, páginas 623 e seguintes - o princípio da igualdade vincula todas as funções estaduais, jurisdição incluída.
A vinculação da jurisdição ao princípio da igualdade, a mais do que significar igualdade de acesso à via judiciária, significa igualdade perante os tribunais, de onde decorre que ‘as partes têm que dispor de idênticos meios processuais para litigar, de idênticos direitos processuais’ (cf. acórdão nº.223/95, publicado no Diário da República, II série, de 27 de Junho de 1995).
É o princípio da igualdade de armas ou da igualdade das partes no processo , que constitui uma das essentialia do direito a um processo equitativo (cf. citado acórdão nº.147/92).
O processo civil tem estrutura dialéctica ou polémica, pois que assume a natureza de um debate ou discussão entre as partes. E estas - repete-se
- devem ser tratadas com igualdade. Para além do princípio do dispositivo ou da livre iniciativa e do ditame da livre apreciação das provas pelo julgador, constituem, assim, traves mestras do processo o princípio do contraditório e o da igualdade das partes (igualdade de armas)
O princípio do contraditório (audiatur et altera pars), enquanto princípio reitor do processo civil, exige que se dê a cada uma das partes a possibilidade de ‘deduzir as suas razões (de facto e de direito)’, de ‘oferecer as suas provas’, de ‘controlar as provas do adversário’ e de ‘discretear sobre o valor e resultados de umas e outras’ (cf. MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, I Coimbra, 1956, página 364).
Tal princípio só está constitucionalmente consagrado, de forma expressa, para o processo criminal (cf. artigo 32º, nº.5, da Constituição). Ele vale, no entanto, também para o processo civil, como exigência que é do princípio do Estado de Direito, que - insiste-se - reclama igualmente que, no processo, as partes sejam tratadas com igualdade (princípio da igualdade de armas).
De facto, também este processo tem que ser, como se disse, um due process of law, um processo equitativo e leal. E isso exige, não apenas um juiz independente e imparcial - um juiz que, ao dizer o direito do caso, o faça mantendo-se alheio, e acima, de influências exteriores, a nada mais obedecendo do que à lei e aos ditames da sua consciência - como também que as partes sejam colocadas ‘em perfeita paridade de condições, desfrutando, portanto, idênticas possibilidades de obter a justiça que lhes é devida’ (cf. MANUEL DE ANDRADE, ob. cit., página 365).
Cada uma das partes há-de, pois, poder expor as suas razões perante o tribunal (princípio do contraditório). E deve poder fazê-lo em condições que a não desfavoreçam em confronto com a parte contrária (princípio da igualdade de armas).
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4.1. Entende-se que o princípio do contraditório, na óptica delineada, não se deve considerar como beliscado de forma intolerável e desproporcionada pelo simples facto de o processamento da execução se iniciar com a nomeação de bens à penhora e só depois se seguir a citação do executado.
Na verdade, o executado continua ter ao seu alcance todos os meios de defesa que lhe permitam pôr em causa o despacho que ordenou a penhora, opor-se à execução ou colocar em crise as próprias existência ou exequibilidade do título, as incerteza, exigibilidade, liquidez, extinção ou não modificação obrigação, e a existência de qualquer pressuposto processual de que dependa a regularidade da instância executiva (cfr. artº 926º do Código de Processo Civil) e, de uma outra banda, quer se trate de um processo que siga os termos do processo sumário, quer se trate de trate de um processo que siga os do processo ordinário, impedirá a efectivação da penhora o despacho de indeferimento liminar, que tem lugar em qualquer dessas formas de processo (cfr. artigo 811º-A desse diploma).
Para além disso, e decisivamente, o que se não pode passar em claro
é que a oposição à penhora ou à execução, esta por meio de embargos, continuam ao alcance do executado, numa e noutra forma de processo, pelo que, se ele utilizar esse meio, sempre desfrutará de meios bastantes para expor as suas razões, contraditar as do exequente e discretear, assim, sobre a questão (cfr., para o que ora releva, e relativamente à dedução de embargos à execução não fundada em sentença, o nº 1 do artº 815º do aludido Código, que possibilita a adução de fundamentos de oposição sobremaneira mais amplos dos que os permitidos quando o título é uma decisão judicial).
E, de todo o modo, a própria dedução de embargos, levados a cabo logo após a citação tal como se prescreve no processo executivo que siga a forma ordinária, não basta, só por si, para suspender a execução (cfr. artigo 818º).
Pode, desta arte, concluir-se que o conteúdo do direito de defesa do executado se mantém, não sendo, por isso, afectado em termos constitucionalmente inadmissíveis pela circunstância de a norma em análise ter vindo apenas, em direitas contas, a diferir o momento em que ele se exercita, devendo realçar-se, por um lado, que, não obstante haver desde logo penhora dos bens, a oposição à execução ou dedução de embargos tem por efeito não se passar à fase da venda que, essa sim, se viesse a ser realizada, poderia, como assinala o ora recorrente na sua alegação, 'configurar-se como irremediável para a frustração dos legítimos direitos do executado', e, por outro, que o artº 1º do Decreto-Lei nº 274/97 tem por âmbito, afinal, execuções de baixo valor, devendo a penhora recair apenas sobre bens móveis ou direitos não dados em penhor, excepcionando-se ainda o estabelecimento comercial.
Conclui-se, desta sorte, não padecer do vício de inconstitucionalidade a norma sub specie, designadamente por ofensa do princípio do contraditório que deflui do direito de acesso aos tribunais consagrado no artigo 20º do Diploma Básico.
III
Em face do exposto, concede-se provimento ao recurso, em consequência determinando-se a reforma da decisão impugnada de harmonia com o juízo ora efectuado sobre a questão de constitucionalidade. Lisboa, 28 de Março de 2000 Bravo Serra Guilherme da Fonseca Maria Fernanda Palma Paulo Mota Pinto José Manuel Cardoso da Costa