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Proc. nº 74/00
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. No Tribunal Judicial da Comarca de Vila Franca de Xira, respondeu sob acusação do Ministério Público o arguido J..., que foi condenado como autor material de um crime de homicídio na forma tentada, previsto e punível pelos artigos 131º, 22º, 23º, nº 1, e 73º do Código Penal, na pena de quatro anos e seis meses de prisão, e de um crime de detenção ilegal de arma de defesa, previsto e punível pelos artigos 1º, nº 1, alínea b), e 6º da Lei nº 22/97, de
27 de Junho, na pena de oito meses de prisão. Operado o cúmulo jurídico destas penas, o referido arguido foi condenado na pena única de cinco anos de prisão
O arguido interpôs recurso desta decisão para o Supremo Tribunal de Justiça, invocando insuficiência da matéria de facto provada e sustentando a sua absolvição por força do princípio in dubio pro reo.
2. Por acórdão de 17 de Junho de 1999 (fls. 8 e seguintes dos presentes autos), o Supremo Tribunal de Justiça, atendendo à data de interposição do recurso (29 de Março de 1999), considerou aplicável ao caso o Código de Processo Penal, na redacção que resulta da Lei nº 59/98, de 25 de Agosto .
Assim, por entender que o recuso interposto não visava exclusivamente o reexame da matéria de direito, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu não tomar dele conhecimento, com os seguintes fundamentos:
'[...] nos termos do actual art. 432º, al. d), do C.P.P., recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdãos finais proferidos pelo tribunal colectivo, visando exclusivamente o reexame de matéria de direito. Portanto, se o recorrente quiser abordar matéria de facto, terá de interpor recurso para o Tribunal da Relação, como é regra geral, nos termos dos arts.
427º e 428º, nº 1 do C.P.P., sob pena de transitar em julgado a respectiva decisão. Sucede que in casu, o recorrente apenas veio questionar a apreciação que o tribunal recorrido fez da prova produzida e reclamar por o mesmo não ter feito uso do princípio in dubio pro reo. As questões postas pelo recorrente prendem-se com a matéria de facto, que este Supremo Tribunal não pode sindicar, pelo que estava vedada a sua abordagem no presente recurso.'
Ao acórdão foram apostas duas declarações de voto, sendo a segunda de remissão para a primeira, que tem o seguinte teor: 'com a declaração que remeteria os autos ao Tribunal da Relação de Lisboa'.
3. A representante do Ministério Público junto do Supremo Tribunal de Justiça requereu a aclaração do acórdão 'relativamente à parte em que, decidindo-se não tomar conhecimento do recurso e reconhecendo-se o mesmo devia ter sido interposto para o Tribunal da Relação, nada se diz a quem compete então apreciá-lo' (requerimento de fls. 10 a 12 destes autos).
Notificado do requerimento do Ministério Público, o arguido aderiu ao pedido de aclaração, afirmando que 'o Tribunal que se declare incompetente terá de remeter oficiosamente o processo para o Tribunal competente', 'sob pena de clara e inequívoca violação do art. 33º/1 C.P.P., bem como do art. 32º/ 1 C.R.P. quando este garante o direito ao recurso' (fls. 13 e seguinte).
O Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão de 7 de Outubro de 1999 (a fls. 15 e 15 v.), considerou que o requerimento apresentado pelo Ministério Público consubstanciava, não um pedido de aclaração, mas uma arguição de nulidade por omissão de pronúncia. Decidiu indeferir o requerido, fundamentando assim a decisão:
'Sucede que não ocorre tal nulidade, pois o acórdão não disse nem tinha que dizer nada sobre a dita apreciação do recurso.
[...] como o presente recurso, por versar matéria de facto, foi indevidamente interposto para este Supremo Tribunal, é óbvio que este Tribunal dele não pode conhecer. E não há que remetê-lo para a Relação competente, pois, entretanto, transitou em julgado a decisão da 1ª instância, por dela não ter sido interposto, em tempo, recurso para a dita Relação. Face a esta situação, não há lei que imponha tal remessa, nem mesmo o artº 33º, nº 1 do C.P.P. que não se coloca no plano da competência hierárquica (note-se que neste plano não é configurável um conflito negativo de competência), mas só quando estiverem em causa tribunais que funcionam em 1ª instância [...]. Por outro lado, as declarações de voto apostas pelos Conselheiros Adjuntos não têm a virtualidade de alterar ou acrescentar algo ao decidido, pois não constam da parte decisória do acórdão. [...]'.
4. J... interpôs recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Junho de 1999, ao abrigo do artigo 70º, nº
1, alínea b), da Lei nº 28/82, para apreciação da inconstitucionalidade dos artigos 33º, nº 1, 427º, 428º, nº 1, 432º, alínea d), do Código de Processo Penal, 'num sentido cuja inconstitucionalidade foi suscitada durante o processo'.
O relator, no Supremo Tribunal de Justiça, ordenou a notificação do recorrente para 'indicar a norma ou princípio constitucional violado e a peça processual onde suscitou a inconstitucionalidade das normas que indicou no seu requerimento de recurso' (despacho de fls. 17).
Respondeu o recorrente, através do requerimento de fls. 18, que:
'a) As normas indicadas no requerimento de interposição do Recurso – arts.
33º/1, 427º, 428º/1 e 432º/al. d), todos do Código de Processo Penal – quando interpretadas no sentido do Acórdão condenatório, violam o disposto no art.
32º/1 da Constituição da República Portuguesa, nomeadamente no que respeita ao direito ao recurso: b) A peça processual onde foi suscitada a inconstitucionalidade, consta dos arts. 5º, 6º e 7º da resposta do arguido ao pedido de aclaração do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 99/06/17, efectuado pela Exm.ª Sr.ª Dr.ª Procuradora-Geral Adjunta em representação do Ministério Público.'
O recurso não foi admitido, nos seguintes termos (despacho de fls.
20 e 20 v. destes autos):
'[...]. Sucede que naqueles locais não foi suscitada a inconstitucionalidade das referidas normas, nem em qualquer outro da mesma resposta. E muito menos o art.
432º, al. d) do C.P.P. Quando muito, o arguido veio dizer que a decisão deste Supremo Tribunal que declarou este Tribunal incompetente sem remeter o processo para o tribunal competente viola o art. 32º, nº 1 da C.R.P. E isto constitui algo que se alcança com alguma boa vontade. Ora, é jurisprudência corrente do Tribunal Constitucional que para ele só cabe recurso quando esteja em causa a inconstitucionalidade de normas e não de decisões, como, aliás resulta claramente do art. 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro. Certo é ainda que tendo o recurso sido interposto ao abrigo do art. 70º, nº 1, al. b), da Lei nº 28/82, o art. 33º, nº 1 do C.P.P. nem sequer foi aplicado pela decisão, que, pelo contrário, afastou expressamente tal aplicação – v. o acórdão aclaratório [...]. Assim, por um lado, não foi suscitada a inconstitucionalidade das normas indicadas pelo recorrente – fê-lo apenas no requerimento de interposição do recurso – e, por outro, o art. 33º, nº 1 do C.P.P. não foi aplicado pelo acórdão recorrido, pelo que, atento o disposto nos artºs 70º, nº 1, al. b), 75º-A, nºs 2 e 5, e 76º, nº 2 da Lei nº 28/82, não admito o recurso ora interposto pelo arguido.'
5. J... reclamou do despacho que não admitiu o recurso, nos termos do artigo 76º, nº 4, da Lei do Tribunal Constitucional, formulando as seguintes conclusões (fls. 2 a 4):
'[...]
6º Como resulta claramente dos arts. 5º, 6º e 7º da resposta ao pedido de Aclaração formulado pela Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta o que está em crise não
é a decisão tomada pelo Supremo Tribunal de Justiça, mas sim a interpretação que este faz do normativo ínsito no art. 33º/1 do C.P.P., que é violadora do art.
32º/1 da C.R.P., nomeadamente no que tange ao direito ao recurso, Direito Fundamental que é denegado ao arguido com base numa interpretação do art. 33º/1 do C.P.P. que impede a remessa de um Processo do Supremo Tribunal de Justiça para o Tribunal da Relação de Lisboa porque este normativo não se coloca no plano da competência hierárquica.
7º Afirma o Mm.º Juiz Conselheiro Relator que, «Certo é ainda que tendo o recurso sido interposto [...], o art. 33º, nº 1 do C.P.P. nem sequer foi aplicado pela decisão, que, pelo contrário, afastou expressamente tal aplicação
[...]».
8º Ora é precisamente da desaplicação dessa norma que se recorreu e da qual agora se reclama!
9º Pelo exposto, deve ser declarada a inconstitucionalidade do art. 33º/1 C.P.P., quando interpretado no sentido da sua desaplicação à questão da remessa de um Processo do Supremo Tribunal de Justiça para a Relação de Lisboa, por o mesmo normativo só ser aplicável entre Tribunais de 1ª instância, dado que tal interpretação conduzirá forçosamente a uma diminuição das garantias de defesa em processo penal, nomeadamente o direito fundamental ao recurso – Vd. Art. 32º/1 C.R.P..'
O relator, no Supremo Tribunal de Justiça, sustentou assim o seu despacho de não admissão do recurso (fls. 6 e 6 v.):
'A presente reclamação constitui um verdadeiro sofisma, pois aí se fazem afirmações que não são corroboradas pelas peças processuais para onde o reclamante remete. Assinala-se ainda que, tendo o recurso sido interposto ao abrigo do art. 70º, nº
1, al. b), da Lei nº 28/82, de 15-11, o reclamante vem invocar um novo fundamento para o seu recurso – a desaplicação do art. 33º, nº 1 do C.P.P. – que de todo em todo não se encaixa naquele normativo, nem em qualquer das outras alíneas do nº 1 do art. 70º acima referido, nomeadamente não foi recusada a aplicação daquele art. 33º, nº 1 com fundamento na sua inconstitucionalidade. A falta de confiança do reclamante no que vem alegar manifesta-se até no facto de nem ter indicado as peças do processo de que deveria ter apresentado certidão
– art. 688º, nº 2 do C.P.P.. Por tudo isto e pelo que se disse no despacho reclamado, mantenho este.'
6. No Tribunal Constitucional, o Ministério Público emitiu parecer, pronunciando-se no sentido do deferimento da presente reclamação. II
7. A decisão do Supremo Tribunal de Justiça de rejeição do recurso de constitucionalidade assentou em dois fundamentos: por um lado, na não invocação da inconstitucionalidade durante o processo; por outro lado, na circunstância de não ter sido aplicada no acórdão recorrido uma das normas que se pretende submeter à apreciação do Tribunal Constitucional – a norma do artigo 33º, nº 1, do Código de Processo Penal.
8. O sentido funcional que o Tribunal Constitucional tem atribuído à exigência legal de que a inconstitucionalidade seja suscitada durante o processo tem em vista dar oportunidade ao tribunal recorrido de se pronunciar sobre a questão, de modo que o Tribunal Constitucional venha a decidir em recurso. Deve, portanto, em princípio, a questão de constitucionalidade ser suscitada antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal recorrido.
Só em casos muito particulares, em que o recorrente não tenha tido oportunidade para suscitar a questão de constitucionalidade é que este Tribunal tem considerado admissível o recurso de constitucionalidade sem que sobre tal questão tenha havido uma anterior decisão do tribunal a quo (cfr., por exemplo, acórdão n.º 232/94, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 27º vol., p. 1119).
No caso dos autos, o acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça configura uma decisão de conteúdo imprevisível para as partes.
Na verdade, o Supremo Tribunal de Justiça entendeu que, tendo havido erro do arguido-recorrente na identificação do tribunal para o qual o recurso fora interposto, tal recurso deve considerar-se precludido, pois o Supremo não pode dele conhecer nem deve determinar a remessa do processo para o tribunal que para o efeito seria competente – o Tribunal da Relação.
Ora, em primeiro lugar, não era exigível que o arguido-recorrente antecipasse tal solução e suscitasse a inconstitucionalidade de tal solução, nas alegações do recurso que interpôs para o Supremo Tribunal de Justiça. Em segundo lugar, e tendo em conta que a eventual aplicação de norma inconstitucional não constitui erro material, não é causa de nulidade da decisão judicial nem a torna obscura ou ambígua, o pedido de aclaração de uma decisão judicial ou a reclamação com fundamento na sua nulidade não constituem, já, em regra, meios idóneos e atempados para suscitar a questão de constitucionalidade
(cfr., neste sentido, entre tantos outros, o acórdão nº 155/95, publicado no Diário da República, II Série, nº 140, de 20 de Junho de 1995, p. 6751 ss). No caso em apreciação, considerando que a decisão do Supremo Tribunal de Justiça era imprevisível para as partes, o recorrente tanto poderia ter invocado a questão de inconstitucionalidade no requerimento em que respondeu ao pedido de aclaração formulado pelo Ministério Público, e em que aderiu a tal pedido – o que, de resto, fez –, como no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional. De qualquer modo, encontrava-se já esgotado o poder jurisdicional do tribunal recorrido. Mas o recurso de constitucionalidade teria de ser admitido precisamente porque o recorrente não teve oportunidade processual para, antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal recorrido, suscitar a questão.
Neste sentido, há que reconhecer que, nas circunstâncias do processo, não era razoável exigir ao recorrente o ónus de considerar antecipadamente a interpretação normativa adoptada na decisão, atento o seu cariz imprevisível, anómalo ou insólito. E, por outro lado, face ao teor do acórdão que indeferiu o pedido de aclaração, tornou-se evidente que a questão não se podia reconduzir a uma nulidade por omissão de pronúncia, pelo que também não era exigível a suscitação da questão de constitucionalidade em requerimento que invocasse tal nulidade.
9. Tal como delimitado pelo ora reclamante no requerimento de interposição de recurso, o recurso de constitucionalidade teria como objecto a interpretação dada pelo Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão de 17 de Junho de 1999, às normas dos artigos 33º, nº 1, 427º, 428º, nº 1, 432º, alínea d), do Código de Processo Penal.
Trata-se, com efeito, do complexo normativo subjacente à decisão do Supremo Tribunal de Justiça no acórdão recorrido; a interpretação perfilhada pelo Supremo quanto a esse complexo normativo fundamentou a decisão nos termos da qual, tendo havido erro do arguido-recorrente na identificação do tribunal para o qual o recurso fora interposto, tal recurso deve considerar-se precludido, pois o Supremo não pode dele conhecer nem deve determinar a remessa do processo para o tribunal que para o efeito seria competente – o Tribunal da Relação.
Conclui-se, assim, que as normas invocadas constituíram o fundamento da decisão sob recurso e que a questão de constitucionalidade foi enunciada pelo recorrente de modo suficientemente perceptível, tendo em conta a especificidade do caso.
10. Podem portanto dar-se como verificados os pressupostos de admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, não procedendo as razões invocadas pelo Supremo Tribunal de Justiça para a rejeição do recurso de constitucionalidade interposto por J...
III
11. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide deferir a presente reclamação.
Lisboa, 21 de Março de 2000 Maria Helena Brito Vítor Nunes de Almeida Luís Nunes de Almeida