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Proc. nº 176/99
2ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. R..., SA, deduziu impugnação contra a liquidação adicional da contribuição industrial - grupo A, referente ao exercício de 1981. O Tribunal Tributário de 1ª Instância do Porto, por decisão de 3 de Fevereiro de 1999, recusou a aplicação da norma constante dos artigos 1º e 3º, nº 2, do Decreto-Lei nº 128/82, de 23 de Abril, que veio extinguir parcial e retroactivamente a isenção de tributação dos rendimentos das obrigações do tesouro, curto prazo,
1981, 1ª série. O tribunal a quo considerou que o parâmetro de constitucionalidade seria o texto resultante da 4ª Revisão Constitucional, não obstante tratar-se de rendimentos auferidos em 1981. Em consequência, e em virtude da consagração constitucional expressa da proibição da retroactividade da lei fiscal, julgou a norma inconstitucional. Concomitantemente, considerou, também, tal norma violadora do princípio da confiança.
2. O Ministério Público interpôs recurso de constitucionalidade, ao abrigo do disposto nos artigos 280º, nº 1, alínea b), da Constituição, e 70º, nº
1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade
à Constituição das normas contidas nos artigos 1º e 3º, nº 2, do Decreto-Lei nº
128/82, de 23 de Abril, que vieram dar nova redacção ao artigo 23º do Código da Contribuição Industrial.
Junto do Tribunal Constitucional, o Ministério Público apresentou alegações que concluiu do seguinte modo:
1º
É materialmente inconstitucional a norma constante do nº 2 do artigo 3º do Decreto-Lei nº 128/82, de 23 de Abril, enquanto elimina, com efeitos retroactivos, reportados ao ano de 1981, a isenção da contribuição industrial de que beneficiavam os rendimentos de títulos da dívida pública, limitando tal isenção apenas à parcela dos rendimentos que não excedesse 20.000 contos.
2º A aplicação de tal norma, realizada por sentença proferida após a consagração constitucional do princípio da proibição da retroactividade da lei fiscal, deverá ter em conta o texto constitucional em vigor à data da prolação da decisão recorrida, conformando-se com a inovatória redacção atribuída ao nº 3 do artigo 103º da Constituição pela Lei Constitucional nº 1/97.
3º Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade material constante da decisão recorrida.
A recorrida não contra-alegou.
3. Tudo visto, cumpre decidir.
II Fundamentação
4. Os preceitos impugnados têm a seguinte redacção: Artigo 1º Os artigos 23º (...) do Código da Contribuição Industrial passam a ter a seguinte redacção: Art. 23º
Consideram-se proveitos ou ganhos realizados no exercício os provenientes de quaisquer transacções ou operações efectuadas pelos contribuintes em consequência de uma acção normal ou ocasional, básica ou meramente acessória, e designadamente os derivados:
(...)
3º De rendimentos de bens ou valores mantidos como reserva ou para fruição;
(...)
Artigo 3º
(...)
2 - A alteração introduzida no artigo 23º é aplicável aos rendimentos de títulos da dívida pública auferidos durante o exercício de 1981, mas apenas à parte desses rendimentos que exceda 20.000 contos.
O artigo 23º, nº 3, na redacção inicial, ressalvava expressamente os rendimentos provenientes 'de quaisquer títulos de dívida pública'. A alteração legislativa operada pelo diploma de 1982 traduziu-se, portanto, na supressão desta ressalva.
5. O Ministério Público considera, no mesmo sentido, aliás, da decisão recorrida, que o parâmetro de constitucionalidade, in casu, deve ser o texto resultante da 4ª Revisão Constitucional que, no artigo 103º, nº 3, consagrou expressamente a proibição de retroactividade em matéria fiscal.
Porém, um dos fundamentos da recusa de aplicação por inconstitucionalidade da norma em apreciação não se prende directamente com tal questão. Com efeito, o Tribunal Tributário de 1ª Instância do Porto, na decisão recorrida, considerou que a norma em causa viola o princípio da confiança,
ínsito no princípio do Estado de direito democrático.
Confrontar-se-á, nessa medida, e em primeiro lugar, a norma que constitui objecto do presente recurso com o princípio da confiança.
6. O Decreto-Lei nº 228/80, de 16 de Julho, que veio regulamentar as condições de emissão do empréstimo público denominado 'Obrigações do Tesouro FIP 1980', consagrou, no artigo 4º (na redacção do Decreto-Lei nº 323/80, de 23 de Agosto), a garantia do pagamento dos reembolsos e dos juros dos títulos e certificados representativos das obrigações emitidas e a isenção de todos os impostos.
Por seu turno, o artigo 4º do Decreto-Lei nº 198/81, de 9 de Julho, veio estabelecer idêntico regime fiscal para o empréstimo público denominado
'Obrigações do Tesouro, curto prazo, 1981, 1ª série'.
Verifica-se, assim, que um dos incentivos que o Estado criou para levar o público a subscrever os referidos empréstimos públicos foi isentar os respectivos rendimentos de todos os impostos.
Porém, o Decreto-Lei nº 128/82, de 23 de Abril, dando nova redacção ao artigo 23º do Código da Contribuição Industrial, veio, com eficácia retroactiva (relativamente aos rendimentos auferidos em 1981), 'isentar' (ainda que por via da alteração da norma de incidência) apenas parcialmente de imposto os rendimentos que, de acordo com o regime anterior, estava totalmente isentos.
7. O Tribunal Constitucional, no Acórdão nº 410/95 (D.R., II, de 16 de Novembro de 1995), apreciou a conformidade à Constituição da norma contida no artigo 2º, nº 1, do Decreto-Lei nº 215/89, de 1 de Julho, quando interpretada no sentido de não salvaguardar a subsistência duma determinada categoria de benefícios fiscais adquiridos antes de 31 de Dezembro de 1988, implicando tal norma, nessa medida, que os mesmos caducassem. Nesse aresto, citando, entre outros, o Acórdão nº 66/84 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 4º vol., 1984, p. 35 e ss.), o Tribunal, depois de admitir que a Constituição, na redacção então em vigor, não proibia toda a retroactividade fiscal, considerou que o princípio da protecção da confiança, ínsito na ideia de Estado de Direito democrático, só exclui a possibilidade de leis fiscais retroactivas, «quando se esteja perante uma retroactividade intolerável, que afecte de forma inadmissível e arbitrária os direitos e expectativas legitimamente fundados dos cidadãos contribuintes». De seguida, e citando agora o Acórdão nº 287/90 (D.R., II Série, de 20 de Fevereiro de 1991), o Tribunal afirmou o seguinte: A ideia geral de inadmissibilidade poderá ser aferida, nomeadamente, pelos dois seguintes critérios: a) Afectação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não possam contar; e ainda b) Quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes (...) Pelo primeiro critério, a afectação de expectativas será extraordinariamente onerosa. Pelo segundo, que deve acrescer ao primeiro, essa onerosidade torna-se excessiva, inadmissível ou intolerável, porque injustificada ou arbitrária.
Em consequência, o Tribunal Constitucional julgou a norma então em apreciação inconstitucional, por violação do princípio da confiança.
8. Ora, no presente caso, a norma em apreciação também viola o princípio da confiança, independentemente de, hoje, se seguirem critérios mais restritivos e mesmo que não se considere que esses critérios mais restritivos já vigorariam, antes da Revisão Constitucional de 1997.
Com efeito, o legislador, depois de consagrar uma isenção total de impostos, para tornar mais apelativa a subscrição de um empréstimo público, veio alterar, retroactivamente, o quadro legal, substituindo a isenção total por uma isenção parcial.
Os subscritores, que formaram a sua decisão, naturalmente, em função do regime favorável em vigor, viram, em face dessa mutação retroactiva, desfavorável e inesperada da ordem jurídica, as suas legítimas expectativas quebradas, sem que para o efeito se descortine qualquer fundamento específico digno de tutela.
Verifica-se, pois, no caso dos autos, uma retroactividade intolerável, porque injustificadamente desfavorável para o contribuinte, e, desse modo, constitucionalmente inadmissível, porque violadora do princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático.
Sublinhe-se que o que se deixa dito não é afectado pela circunstância de a 'isenção' parcial resultar, não da entrada em vigor de uma nova norma de isenção (mais restrita), mas sim da alteração da norma de incidência. Com efeito, a alteração legislativa operada, não obstante situar-se, formalmente, no plano da delimitação do que se considera enquadrável numa dada categoria de proveitos ou ganhos, implica, numa perspectiva substancial, uma verdadeira restrição (derrogação, dir-se-ia) da isenção consagrada no quadro legislativo então em vigor.
Sustentar o contrário, significaria admitir que o Estado pudesse restringir materialmente e com eficácia retroactiva (afrontando, desse modo, as legítimas expectativas dos particulares) o benefício fiscal anteriormente conferido.
9. Alcançada esta conclusão, afigura-se inútil proceder à apreciação da conformidade da norma em questão com o disposto no artigo 103º, nº
3, da Constituição (na redacção resultante da 4ª Revisão Constitucional). III Decisão
10. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide julgar inconstitucional as normas contidas no nº 3 do artigo 23º do Código da Contribuição Industrial, na redacção que lhe foi dada pelo artigo 1º do Decreto-Lei nº 128/82, de 23 de Abril, e no nº 2 do artigo 3º do mesmo Decreto-Lei, por violação do princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de Direito democrático, consagrado no artigo 2º da Constituição, confirmando, consequentemente, o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida. Lisboa, 28 de Março de 2000 Maria Fernanda Palma Paulo Mota Pinto Guilherme da Fonseca Bravo Serra (com a declaração de voto idêntica à aposta pelo Exmº Conselheiro Presidente para a qual, com vénia, remeto) José Manuel Cardoso da Costa (com a declaração junta)