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Procº nº 617/99.
2ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
I
1. J... apresentou ao Ministério Público denúncia criminal contra AF..., MG... e MH..., imputando-lhes o cometimento de factos que subsumiu à prática de crimes de burla agravada, dano, burla tentada, auxílio material ao criminoso, receptação, infidelidade, abuso de confiança, uso de documento falso, falsificação, recusa ilícita de informações, impedimento de fiscalização e falsas informações.
Tendo, por despacho proferido em 19 de Junho de 1998 pelo representante do Ministério Público do Departamento de Investigação e Acção Penal de Lisboa, sido determinado o arquivamento do processo, veio o denunciante a constituir-se assistente e requerer a abertura da instrução.
Por despacho de 16 de Junho de 1999, prolatado pelo Juiz do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, foi proferida decisão instrutória, por intermédio da qual se não pronunciaram as arguidas.
Nesse despacho, a final, exarou-se:-
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O Art. 83º nº 2 do C.C.J. impunha a condenação da assistente em taxa de justiça no final da instrução.----------------------------------------------------------------------- Contudo, por se entender este Art. inconstitucional não se aplicará. Com efeito, a condenação que pode ir até 10 UCs. da assistente ou do assistente que requereu a instrução e não obteve vencimento de causa contrasta flagrantemente e em violação do princípio da igualdade com a inexistência de qualquer condenação em taxa de justiça no final da instrução requerida pelo arguido.---------------------------------------------------
O assistente, tal como o arguido, que requerem a abertura da instrução têm de pagar o preparo do artigo 83º, nº 1 do CCJ. Acontece, porém, que se o arguido não for pronunciado por todos ou alguns dos crimes constantes do requerimento do assistente, o assistente é condenado na taxa prevista no artigo 515º, nº 1, al. a) do CPP e no artigo 85º, nº 3 al. e) do novo CCJ. Mas mais: para alguns, essa taxa nada tem a ver com a fixada no artigo 83º, nº 2 do CCJ e é com ela cumulável, pelo que o assistente teria de suportar ambas (assim, Salvador da Costa, Código das Custas Judiciais, 1997, p. 281 e 281)! Ou seja, a sanção do assistente no caso de não pronuncia (parcial ou total) podia elevar-se a 15 UCs, isto é, 210.000$00, e o arguido, no caso de pronuncia, não seria pura e simplesmente tributado!! Tão gritante discriminação vai totalmente ao arrepio da filosofia do Código de Processo Penal, que atribui relevo especial à figura da vítima e ao exercício dos seus direitos no processo e não é minimamente justificada aos olhos da nova lei de custas que é movida pelo ‘princípio da causalidade’, isto é, ‘as custas devem ser suportadas por quem ficou vencido na lide’, como consta do preâmbulo do novo CCJ.---------------------------------------------------------------------------------------------
Assim, não aplico o art. 83º nº 2 do CCJ e declaro-o inconstitucional, razão pela qual não condeno a assistente em taxa de justiça.----------------------------------------
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2. É da transcrita parte do despacho de 19 de Junho de 1999 que, pelo Ministério Público, vem interposto o vertente recurso, estribado na alínea a) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.
O Representante daquela magistratura junto deste Tribunal rematou a sua alegação com as seguintes «conclusões»:-
'1º . Por força do princípio constitucional das garantias de defesa, não vigora no domínio do processo penal um princípio de estrita e formal parificação de todos os sujeitos processuais, que permita formular um juízo de inconstitucionalidade, com base na violação do princípio da igualdade, relativamente a todos os regimes adjectivos que comportem um tratamento diferenciado (e aparentemente mais favorável) para o arguido.
2º - Não viola os princípios da igualdade e da proporcionalidade a interpretação normativa do nº 2 do artigo 83º do Código das Custas Judiciais que se traduz em
- subsumindo tal norma a dedução pelo assistente do requerimento de abertura da instrução - lhe cominar o pagamento da taxa de justiça devida por tal fase processual, sempre que o arguido não venha a ser pronunciado - e podendo o juiz adequar, em termos de proporcionalidade, o montante das custas por aquele devidas'.
Cumpre decidir.
II
1. Dispõe-se no artº 83º do Código das Custas Judiciais aprovado pelo Decreto-Lei nº 224-A/96, de 26 de Novembro, e de cujo nº 2 foi recusada a aplicação no despacho ora sindicado:- ARTIGO 83º Taxa de justiça devida pela instrução
1-Pela abertura da instrução é devida taxa de justiça correspondente a 1 UC.
2 - Se o arguido não for pronunciado por todos ou alguns crimes constantes da acusação que haja deduzido ou com que se haja conformado, é devida taxa de justiça pelo assistente, fixada pelo juiz no final da instrução, entre 1 UC e 10 UC.
Na perspectiva daquele despacho, a norma em apreço representaria a consagração de uma solução normativa que acarretava uma violação do princípio da igualdade, já que impunha a condenação em taxa de justiça do assistente que, requerendo a instrução, não almejou a pronúncia do arguido por algum ou alguns dos crimes de que foi acusado (pelo mesmo assistente ou pelo Ministério Público com cuja acusação aquele se conformou), enquanto que, se for o arguido a requerer a instrução e vier a ser pronunciado, não tem o mesmo que proceder ao pagamento de qualquer taxa.
Vejamos, pois, se uma tal argumentação será procedente.
2. Tem de há muito este Tribunal seguido uma jurisprudência impressiva de harmonia com a qual o princípio da igualdade não proíbe o estabelecimento de distinções, vedando, isso sim, a consagração de soluções normativas que, ao se aplicarem a situações idênticas, conduzam a distinções sem fundamento material bastante, ou seja, que soluções representativas de arbítrio.
Por isso se tem dito que tal princípio da igualdade não aponta no sentido de que igualdade corresponda a igualitarismo, antes correspondendo a uma igualdade proporcional, ou seja, exige que se tratem por igual situações substancialmente iguais, e que situações substancialmente dissemelhantes sofram diverso tratamento, embora proporcionadamente diferente (cfr., neste passo, o Acórdão nº 76/95, publicado na 2ª Série do Diário da República de 14 de Junho de
1995 e, sobre o princípio da igualdade, por entre muitos, o Acórdão nº 186/90, mesmos jornal oficial e série, de 12 de Setembro de 1990).
Retomando esta mesma ideia, pode ler-se no Acórdão nº 157/88 (in Diário da República, 2ª Série, de 26 de Junho de 1988) que, para se aferir do alcance do princípio da igualdade 'na sua função ‘negativa’ de princípio de
‘controle’(...), que tudo estará em saber se, ao estabelecer a desigualdade de tratamento em causa, o legislador respeitou os limites à sua liberdade conformadora ou constitutiva (...), ou seja, se a 'desigualdade se revela como
‘discriminatória’ e arbitrária, por desprovida de fundamento racional (ou fundamento racional bastante), atenta a natureza e a especificidade da situação e dos efeitos tidos em vista (...) e, bem assim, o conjunto dos valores e fins constitucionais (isto é, a desigualdade não há-de buscar-se num ‘motivo’ constitucionalmente impróprio)'.
3. Assente esta parametrização convirá, por um lado, não passar em claro que, como tem sublinhado este Tribunal, não impõe a Constituição que o serviço de justiça tenha de ser algo que, ainda que tendencialmente, implique gratuitidade (cfr., por entre outros, o Acórdão nº 307/90 publicado na 2ª Série do Diário da República de 4 de Março de 1991), pelo que se não afigura como desconforme à Lei Fundamental que quem solicite a prestação dos serviços de administração de justiça preste uma sua contrapartida (ponto é, como se torna líquido, que essa contrapartida se não poste em termos tais que, na prática, venha dificultar acentuadamente o acesso aos tribunais e, mesmo relativamente a quem não disponha de meios suficientes para a custear, que sejam previstos mecanismos que permitam ultrapassar a dificuldade da exigência da prestação de custas).
De outra banda, como já este órgão de fiscalização concentrada da constitucionalidade normativa teve ocasião de dizer, tendo em conta as garantias de defesa que o Diploma Básico confere ao arguido e que se perspectivam como vinculantes para o legislador ordinário, os direitos que, em nome delas, devem ou podem ser exercidos pelo mesmo representam uma realidade necessariamente diferente - e, no que agora releva, para efeitos de garantias constitucionalmente consagradas - reportadamente àqueloutros direitos atribuídos aos demais intervenientes processuais (cfr. Acórdão nº 269/97, no Diário da República, 2ª Série, de 23 de Maio de 1997);
Compreende-se, por isso, que o legislador ordinário, no exercício da sua liberdade de conformação normativa, possa - no caso de se apresentar como infundada a pretensão do assistente em o arguido ser pronunciado pela prática de determinado ou determinados ilícitos, quando, como no caso acontece, o próprio
órgão detentor da acção penal entendeu não existirem indícios dessa prática ou da própria existência do crime - exigir do assistente o pagamento de determinado montante destinado a custear uma actividade jurisdicional que, não fora tal pretensão que, afinal, se veio a mostrar injustificada, não teria sido realizada.
A circunstância de o arguido solicitar, após ter sido acusado, a abertura da instrução e, após esta, caso venha a ser pronunciado, não ficar sujeito ao pagamento de taxa de justiça, não representa, confrontadamente com a situação do assistente, uma desigualdade arbitrária ou injustificada. De facto, a sua pretensão, consubstanciada no pedido de abertura da instrução, não pode deixar de ser considerada como uma das formas de exercício dos seus direitos de defesa, sendo manifestamente atentatório dos mesmos a exigência de tributação nos casos em que da instrução não resultasse a sua não pronúncia, pois que, se assim fosse, isso poderia resultar uma verdadeira inibição quanto a esse exercício, sendo que, como assinala o magistrado recorrente, em processo criminal são frequentes 'as situações em que a especificidade da situação do arguido determina que lhe seja atribuído estatuto processual diferenciado'.
O conjunto de valores e fins constitucionais que se extraem, de uma parte da já assinalada não consagração da não gratuitidade da justiça, e, de outra, do nº 1 do artigo 32º da Constituição, levam, desta sorte, a que a diversidade de soluções quanto ao pagamento da taxa de justiça devida pelo assistente que requereu a instrução no caso de não pronúncia e a não exigência desse pagamento quando, requerida a instrução pelo arguido, este veio a ser pronunciado, se não apresente como arbitrária ou, o que é o mesmo, desprovida de fundamento razoável.
3.1. Para além destas considerações, acrescente-se uma
última.
Consiste ela, justamente, em se considerar, atentos os limites da taxa de justiça cominados na norma em análise, que os mesmos não se apresentam como desproporcionados e, logo por aí, como inibitórios do desencadear de uma actividade processual por parte do assistente.
Na verdade, a taxa de justiça, que deve ser fixada adequadamente à actividade processual que foi desencadeada pelo assistente, tem como limites mínimo e máximo uma e dez unidades de conta, pelo que se não pode considerar que o seu «direito de intervir» processualmente (aliás hoje consagrado constitucionalmente no nº 7 do artigo 32º) seja gravemente afectado.
III
Em face do exposto, concede-se provimento ao recurso, consequentemente se determinando a reforma do despacho impugnado em consonância com o ora decidido sobre a questão de constitucionalidade. Lisboa, 28 de Março de 2000 Bravo Serra Guilherme da Fonseca Maria Fernanda Palma Paulo Mota Pinto José Manuel Cardoso da Costa