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Proc. nº 158/92
2ª Secção Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório
1. F..., ora recorrente, inconformado com o despacho do Secretário da Educação, Juventude e Emprego do Governo Regional da Madeira, de 5 de janeiro de 1990, que o condenou na pena de aposentação compulsiva, interpôs recurso para o Supremo Tribunal Administrativo. Alegou o recorrente, em síntese, que o referido despacho padecia (A) de vício de forma - por falta de articulação na nota de culpa de factos essenciais e por omissão de diligência essencial ao apuramento da verdade material -, (B) de violação de lei – por inidoneidade dos factos que lhe eram imputados para preencher o tipo de infracção por que havia sido condenado e por insuficiência de prova em relação aos factos por que fora punido. Alegou ainda o recorrente, desde logo, que à possibilidade de conhecimento de todos estes vícios não obstava o disposto no artigo 20º do Decreto-Lei nº 40
768, de 8 de Setembro de 1956 (Lei Orgânica do Supremo Tribunal Administrativo), por se tratar de norma inconstitucional.
2. O Supremo Tribunal Administrativo, por acórdão de 6 de Fevereiro de 1992, veio a negar provimento ao recurso, por considerar que não se verificava nenhum dos vícios que o recorrente imputava ao despacho recorrido. Especificamente quanto ao vício de violação de lei por insuficiência de prova dos factos por que o recorrente foi punido, disse-se no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo:
'6 – O último dos vícios arguidos de que importa conhecer é o de violação de lei por erro quanto aos pressupostos de facto, visto o recorrente o fazer derivar da falta de prova da existência material dos factos por que foi punido.
É que ao conhecimento deste vício não obsta o artigo 20º da Lei Orgânica deste Supremo Tribunal, invocado pela autoridade recorrida nesse sentido, onde se dispõe que, em recursos como o presente «o tribunal não poderá conhecer da gravidade da pena aplicada nem da existência material das faltas imputadas aos arguidos, salvo quando a lei fixar expressamente quer a pena quer as condições de existência da infracção ou quando se alegue desvio de poder». Na verdade, uma vez que a Constituição da República garante aos interessados recurso contencioso com fundamento em ilegalidade (art. 268º, nº 2 da redacção actual, como o artigo 268º, nº 3 da redacção anterior, e o artigo 269º, nº 2 da redacção originária) e dado que uma das causas dessa ilegalidade é a violação de lei resultante de erro nos pressupostos de facto de facto para cuja averiguação há que apurar a existência material das faltas, seguro é que, arguido tal vício em recurso contencioso de acto punitivo em processo disciplinar, o respeito por essa garantia constitucional em toda a sua amplitude impõe que se conheça de tal matéria, excluindo-se a aplicação daquele artigo 20º, conforme o disposto no artigo 207º da Constituição e no nº 3 do artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, por ser contrário à referida regra constitucional, como, de resto, este Supremo vem entendendo uniformemente...'. Na sequência desse entendimento passou o Supremo Tribunal Administrativo à análise da prova constante dos autos, para concluir que 'a prova produzida no processo disciplinar é suficientemente elucidativa sobre a conduta e personalidade do arguido, convencendo de que este praticou todos os factos que lhe foram imputados na nota de culpa e por que foi disciplinarmente punido', pelo que, em consequência, negou provimento ao recurso.
3. É deste acórdão que vem interposto pelo Ministério Público, ao abrigo da alínea a), do nº 1, do art. 70º, da Lei do Tribunal Constitucional, o presente recurso, que tem por objecto a questão da constitucionalidade da norma constante do art. 20º do Decreto-Lei nº 40 768, de 8 de Setembro de 1956 (Lei Orgânica do Supremo Tribunal Administrativo).
4. No Tribunal Constitucional apenas o Procurador-Geral Adjunto apresentou alegações, que concluiu assim:
'1º. A garantia de recurso contencioso com fundamento em ilegalidade, consagrada no artigo 268º, nº 5, da Constituição, implica a possibilidade de arguir, relativamente a cada acto, todos os vícios de que possa enfermar e não apenas algum ou alguns deles;
2º. A norma do artigo 20º da Lei Orgânica do Supremo Tribunal Administrativo – que proíbe este Supremo Tribunal de conhecer, nos recursos das decisões proferidas em processos disciplinares em que sejam arguidos agentes administrativos, quer da gravidade da pena aplicada quer da existência material das faltas imputadas aos arguidos -, na medida em que impede a arguição de algum ou alguns dos vícios do acto, designadamente o vício de violação de lei por erro quanto aos pressupostos de facto, é, assim, inconstitucional, por violação do artigo 268º, nº 5, da Constituição. Termos em que deve ser confirmada a decisão recorrida, na parte impugnada'.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II – Fundamentação
5. A norma cuja apreciação da constitucionalidade constitui o objecto do presente recurso dispõe da seguinte forma:
Artigo
20º
(recursos das decisões disciplinares) Nos recursos das decisões proferidas em processos disciplinares em que sejam arguidos agentes administrativos, o Tribunal não poderá conhecer da gravidade da pena aplicada nem da existência material das faltas imputadas aos arguidos, salvo quando a lei fixar expressamente quer a pena quer as condições da existência da infracção ou quando se alegue desvio de poder.
6. A garantia constitucional de recurso contencioso dos actos administrativos, definitivos e executórios, foi introduzida no nosso sistema jurídico, pela primeira vez, pela Lei nº 3/71, de 16 de Agosto, que reviu a Constituição de
1933. A revisão de 1971 veio aditou o nº 21 ao então artigo 8º da Constituição, que passou dessa forma a incluir no elenco dos direitos liberdades e garantias dos cidadãos portugueses o 'recurso contencioso dos actos administrativos definitivos e executórios que sejam arguidos de ilegalidade'. Nessa sequência, desde logo se suscitou na doutrina e na jurisprudência portuguesa a questão de saber qual o alcance a dar ao novo preceito constitucional - nomeadamente se a nova garantia constitucional impedia unicamente que a lei ordinária excluísse o recurso contencioso de determinados actos administrativos, ou se, além disso, proibia também a restrição legal dos fundamentos do recurso - bem como a questão da compatibilidade com a nova garantia constitucional de várias normas de direito ordinário vigentes à data - entre as quais a do artigo 20º do Decreto-Lei nº 40 768, de 8 de Setembro de
1956, que agora constitui objecto do presente recurso de constitucionalidade. Nas suas alegações o Procurador-Geral Adjunto dá-nos conta, de forma bastante completa – citando, a propósito, a doutrina administrativista mais conceituada bem como as principais decisões jurisprudenciais sobre o tema - dos termos em que essa discussão se processou. Razão porque seguiremos nesta parte, de muito perto, o que então se escreveu. O Prof. MARCELLO CAETANO, ponderando sobre o alcance a dar ao novo nº 21 do art.
8º da Constituição, referia, a dado passo: (in Manual de Direito Administrativo, vol. II, 9ª ed., 2ª reimpressão, pág. 1336 a 1339):
'Como interpretar este preceito ? Em primeiro lugar, é fora de dúvida que dele resulta automaticamente a inconstitucionalidade de quaisquer normas anteriormente publicadas que declarem a irrecorribilidade de determinados actos administrativos definitivos e executórios, ficando igualmente proibida para o futuro a publicação de diplomas com o mesmo objecto (...). Problema mais delicado é, no entanto, o de saber se a garantia constitucional impede unicamente que a lei ordinária exclua o recurso contencioso de determinados actos administrativos ou se, além disso, proíbe também a restrição legal dos fundamentos do recurso. Por outras palavras: poderá a lei ordinária estabelecer que de certo acto definitivo e executório só cabe recurso contencioso com fundamento em algum ou alguns dos vícios do acto administrativo
? A resposta tem de ser negativa .(...) Claro que, abrangendo o recurso contencioso apenas a apreciação da ilegalidade, e não a da injustiça ou inconveniência, do acto recorrido, o bom ou mau uso do poder discricionário não pode ser fiscalizado pelos tribunais; mas a restrição do recurso a questões de legalidade é conforme ao preceituado no nº 21 do artigo
8º da Constituição, que expresamente condiciona a garantia contenciosa à arguição de ilegalidade. Também aqui, por conseguinte, não pretende a lei ordinária, no plano processual, excluir da apreciação contenciosa uma ilegalidade efectivamente praticada, mas sim, no plano substantivo, demarcar com nitidez a fronteira entre o domínio da vinculação e o da discricionaridade. A fiscalização do respeito pela primeira tem de ser feita pelos tribunais; a apreciação dos critérios da segunda é matéria reservada à Administração activa.
É típica no nosso direito a matéria disciplinar, onde há aspectos reservados à discricionaridade da Administração (existência material dos factos, gravidade das penas) a par de outros vinculados: a decisão punitiva é, pois, discricionária quanto a alguns aspectos do seu conteúdo e vinculada quanto à competência, objecto e forma.' Em sentido contrário se pronunciou ANDRÉ GONÇALVES PEREIRA ('A Garantia de Recurso Contencioso no Texto Constitucional de 1971', em Estudos de Direito Público em Honra do Professor Marcello Caetano, 1973, pág. 24a a 248):
'VI – De maior complexidade se revestem os casos em que a lei, embora não vede o recurso, limita o seu âmbito, circunscrevendo a fiscalização contenciosa a uma parte do acto administrativo, com exclusão de outras: é o que se dá quer no contencioso disciplinar (artigos 817º do Código Administrativo e 20º da Lei Orgânica do Supremo Tribunal Administrativo) quer no contencioso bancário
(artigo 97º, § 4, do Decreto-Lei nº 42 641, de 12 de Novembro de 1959). a) Quanto ao primeiro ponto, entende, já depois da publicação da lei de revisão constitucional, o Prof. Marcello Caetano que se mantém as restrições constantes da lei ordinária, pois seriam regras de ordem substancial, que separariam a zona discricionária do acto da zona vinculada, e não regras adjectivas.
É, na verdade, pela cuidadosa separação entre as duas categorias de regras que se pode configurar o âmbito de aplicação da garantia do artigo 8º, nº 21, que em nada afecta as condições de validade do acto administrativo. Mas a nossa análise separa-nos aqui da opinião expressa na 9ª edição do Manual de Direito Administrativo, (tomo II, págs. 1311 e ss.). O problema consiste em saber se, quando o artigo 20º da Lei Orgânica do Supremo Tribunal Administrativo proíbe ao tribunal o conhecimento da «gravidade da pena aplicada» ou da «existência material das faltas imputadas», está a implicar que tal apreciação é sempre irrelevante para a validade intrínseca do acto, que seria válido ainda que: a) tivesse havido excesso na pena aplicada ou b) não existissem materialmente as faltas imputadas (sempre com a ressalva da parte final do texto referido). Ora, o primeiro aspecto prende-se com o desvio de poder, pelo que dele trataremos mais adiante: o seu conteúdo útil é impedir o tribunal de conhecer ex oficio do desvio de poder: pois se a medida da pena é discricionária, nada mais de novo se acrescenta à regra do artigo 19º. Quanto ao segundo ponto, não temos dúvida, porém, que a inexistência material da infracção imputada provoca a invalidade do acto disciplinar; quer por simples aplicação dos princípios gerais de direito; quer porque a restrição só se aplica ao Supremo Tribunal Administrativo, pelo que se o recurso for da competência das auditorias o acto será anulado se tal inexistência material for demonstrada; quer porque o próprio artigo 20º, ao admitir a anulação por desvio de poder consistente na inexistência material da infracção, mostra bem que é a validade do acto que é afectada. Trata-se aqui de regra adjectiva, semelhante a tantas outras da legislação ordinária que vedam ou limitam o recurso contencioso. A inexistência material da infracção bem pode dar-se por erro que não materialize desvio de poder mas sim – segundo a lição do Prof. Marcello Caetano, seguida pelo Supremo Tribunal Administrativo e pela unanimidade da doutrina salvo o signatário – violação de lei por erro sobre os pressupostos. Quando a lei impede que seja alegado tal vício, mas só permite a alegação de desvio de poder, a sua inconstitucionalidade perante o artigo 8º, nº 21, é manifesta – aplicando-se de pleno a observação contida na 9ª edição do Manual de Direito Administrativo (tomo II, p. 1312):
«...poderá a lei ordinária estabelecer que de um certo acto definitivo e executório só cabe recurso contencioso com fundamento em algum ou alguns dos vícios do acto administrativo? A resposta tem de ser claramente negativa.» Pensamos portanto que o Supremo Tribunal Administrativo não deve aplicar o artigo 20º da Lei Orgânica do Supremo Tribunal Administrativo e não poderá, quando for alegada em juízo, abster-se de conhecer da existência material das faltas imputadas ao arguido.' (sublinhado nosso).
7. Também a Constituição de 1976 garante aos interessados, já desde a sua versão originária - então no nº 2 do artigo 269º -, a possibilidade de interposição de
'recurso contencioso, com fundamento em ilegalidade, contra quaisquer actos administrativos definitivos e executórios'. Garantia que se manteve – tendo mesmo sido sucessivamente ampliada - ao longo das sucessivas revisões constitucionais. Comentando o alcance do então nº 2 do art. 269º da Constituição de 1976, ponderava já CARDOSO DA COSTA (em 'A Tutela dos Direitos Fundamentais', em Boletim do Ministério da Justiça – Documentação e Direito Comparado, nº 5, 1981, p. 209):
'Sejam quais forem as criticas que, no plano dogmático, se possam fazer à terminologia ou aos conceitos utilizados pelo legislador constituinte – sabe-se, na verdade, como os conceitos de «definitividade» e «executoriedade» do acto administrativo são hoje objecto de profundo reexame, e como a delimitação do
âmbito do recurso contencioso através dessas duas notas, tradicional no nosso direito, é objecto de viva contestação – creio, no entanto, que o artigo 269º, nº 2, da Constituição, pode e deve ser interpretado como estabelecendo uma garantia completa de recurso, quer dizer, uma garantia que assegura aos particulares a possibilidade de impugnarem judicialmente todos os actos singulares e concretos da Administração Pública que produzam efeitos jurídicos externos, e sejam susceptíveis, portanto, de lesar os seus direitos. Assim, quaisquer normas legais que excluam esta possibilidade de impugnação relativamente a certos actos ou a certas categorias de actos administrativos, ou que restrinjam os possíveis fundamentos de tal impugnação apenas a alguns dos vícios susceptíveis de gerar a antijuridicidade desses actos, têm de ser havidas como inconstitucionais, e, por via de consequência, como inteiramente irrelevantes'. No mesmo sentido escreveu SÉRVULO CORREIA (Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos, p. 290, nota 492), '... é inquestionável que a garantia de recurso contencioso com fundamento em ilegalidade implica a possibilidade de arguir, relativamente a cada acto, todos os vícios de que possa enfrentar e não apenas algum ou alguns deles.'. Ainda no mesmo sentido se pronunciou, igualmente na vigência da redacção originária da Constituição de 1976, a Comissão Constitucional, no acórdão nº
156, de 29 de Maio de 1979 (Boletim do Ministério da Justiça, nº 291, p. 297). Aí se disse:
'A palavra «ilegalidade» de qualquer das ditas formulações abarca todos os vícios ou ilegalidades de que o acto definitivo e executório da Administração Pública pode enfermar, os quais, a melhor doutrina administrativista, aliás baseada na legislação positiva ordinária, engloba nas seguintes categorias: incompetência, usurpação ou desvio de poder, vício de forma ou violação de lei, regulamento ou contrato administrativo (artigo 15º da Lei Orgânica do Supremo Tribunal Administrativo). Não pode, portanto, a lei ordinária excluir o recurso com fundamento em algum ou alguns desses vícios.' (sublinhado nosso). Em anotação a este acórdão salientou depois AFONSO RODRIGUES QUEIRÓ (Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 113º, pp. 32 e 34-35):
'2. Convém também anotar – e anotar à parte – que a Comissão Constitucional
(como aliás também se deveria entender ante o nº 21 do artigo 8º da Constituição de 1933) considera que se deverão considerar inconstitucionais as normas que não admitem a defesa jurisdicional dos direitos legitimos dos administrados
«relativamente a certos vícios ou ilegalidades». Não pode, portanto, a lei ordinária excluir o recurso com fundamento em alguma dessas ilegalidades ou algum desses vícios. Julgamos ser quanto basta para nos devermos fixar em que, considerando o disposto no artigo 293º, nº1, da Constituição da República Portuguesa, não se mantém em vigor, por exemplo, o artigo 20º da Lei Orgânica do Supremo Tribunal Administrativo (Decreto-Lei nº 40 768, de 8 de Setembro de 1956)(...). O erro de facto (violação de lei) é, em todos os casos, susceptível de controlo contencioso do Supremo Tribunal administrativo'. (sublinhado nosso). Quanto à jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo sobre esta questão, foi no acórdão de 15 de Novembro de 1979 (1ª Secção), publicado no Boletim do Ministério da Justiça, nº 294, p. 190, que, pela primeira vez, se afirmou a inconstitucionalidade da norma em causa. Aí se afirmou:
'O certo, porém, é que, nessa parte (isto é: na parte em que impede a apreciação da prova acerca da existência material das faltas), aquele artigo 20º (da Lei Orgânica do Supremo Tribunal administrativo) ficou inconstitucionalizado desde que foi atribuída a dignidade constitucional à garantia do recurso contencioso contra ilegalidades de actos definitivos e executórios (artigo 8º, nº 21, da Constituição de 1933 e artigo 269º, nº 2, da Constituição da República). Mercê desta garantia da Lei Fundamental não pode subsistir aquele artigo 20º, na parte em análise, porquanto, de outra forma, ficaria subtraída à sindicabilidade contenciosa o vício de violação de lei de fundo por erro na nos pressupostos de facto (...)'. No mesmo sentido – agora já depois da primeira revisão constitucional - o acórdão do pleno da 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo, de 22 de Abril de 1986 (Acórdãos Doutrinais, nº 300. P. 1548). Aí se disse:
'Tem este Tribunal entendido que o artigo 20º da Lei Orgânica do Supremo Tribunal Administrativo, na parte em que proíbe o conhecimento pelo Tribunal da existência material das infracções disciplinares, tornou-se inconstitucional, desde que, na Constituição de 1933, ao recurso contencioso contra actos administrativos definitivos e executórios foi atribuída a dignidade de garantia constitucional (artigo 8º, nº 21) sendo certo que a actual Constituição, primeiro no artigo 269º, nº 2, e, depois da Lei Constitucional nº 1/82, no artigo 268º, nº 3, reitera tal garantia. Com efeito, a subsistir essa parte do artigo 20º da lei orgânica do Supremo Tribunal administrativo, ficaria subtraída
à tutela jurisdicional, contra o disposto na norma constitucional, a ofensa de direitos e interesses protegidos por lei, derivada de uma violação de lei do acto administrativo: o erro nos pressupostos de facto (...)'.
8. Também o Tribunal Constitucional já tem feito apelo à garantia constitucional ora em discussão para declarar a inconstitucionalidade de diversas normas de direito ordinário: cfr., entre outros, os acórdãos nºs 114/89, 437/89 e 312/92
(in Colectânea de Acórdãos do Tribunal Constitucional, 13º vol., Pp. 641 e ss, e
1291 e ss., e 23º vol., pp. 303 e ss., respectivamente) a propósito de normas do artigo 138º do Código da Contribuição Industrial que vedavam o recurso contencioso de actos do Ministro das Finanças e, muito especialmente, o acórdão nº 429/89 (Colectânea de Acórdãos do Tribunal Constitucional, 13º vol., pp. 1237 e ss), sobre a norma do § 4 do artigo 97º do Decreto-Lei nº 42 641, de 12 de Novembro de 1959, que restringe à discussão sobre o quantitativo da multa o
âmbito da impugnação contenciosa da decisão sancionatória do Ministro das Finanças em processo instaurado por infracção aos diplomas reguladores do comércio bancário e cambial. Disse o Tribunal Constitucional neste último acórdão:
'Logo na versão originária da Constituição, o artigo 269º, nº 2, estabelecia o direito de recurso contencioso como um dos direitos fundamentais do cidadão enquanto administrado. Sendo de natureza análoga aos «direitos , liberdades e garantias» (artigo 17º), beneficiava por isso mesmo do mesmo regime, incluindo a aplicabilidade directa e a possibilidade de restrição apenas nos casos previstos na Constituição, através de lei geral e abstracta (cfr. artigo 18º). Daí decorria a ilegitimidade de qualquer disposição da lei ordinária que declarasse irrecorrível determinado acto administrativo definitivo e executório, ou restringisse o direito de impugnação contenciosa desse acto, ou de parte desse acto, ou o limitasse a alguns dos seus vícios. A primeira revisão constitucional, operada pela Lei Constitucional nº 1/82, de
30 de Setembro, veio, aliás, alargar o âmbito de protecção dos administrados, admitindo-se, agora, o direito de recurso contencioso contra quaisquer actos administrativos independentemente da sua forma e, para além do recurso anulatório, o recurso para o reconhecimento de direitos ou interesses juridicamente protegidos – artigo 268º, nº 3 da Constituição. (sobre o alcance destas alterações, ver rui Machete, 'A Garantia Contenciosa para Obter o Reconhecimento de um Direito ou Interesse Legalmente Protegido', em Nos Dez Anos da Constituição, pp. 227 e seguintes). Caracterizando o direito de recurso contencioso, em anotação ao nº 3 do artigo
268º da Constituição, escrevem J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (obra citada, p. 432): «A garantia do recurso contencioso (nº 3) constitui, por um lado, um corolário do princípio estruturante do Estado de direito, pois o cidadão deve ter garantido o direito de manter e defender as suas posições jurídicas perante a administração e, por outro lado, é uma concretização do direito de recurso à via judiciária (artigo 20º), dado que se trata de possibilitar ao particular a defesa, perante e através dos tribunais, das suas posições jurídicas.» E, particularmente, quanto ao recurso de anulação de actos administrativos ilegais, acrescentam aqueles autores(obra citada, pp. 432 e 433): «Na sua vertente clássica, o recurso contencioso visa a invalidação de actos administrativos com fundamento na sua ilegalidade. Trata-se de um conhecimento suficientemente sedimentado na doutrina e na jurisprudência, não havendo razão para admitir que a Constituição o não tenha recebido com esse sentido. De acordo com o conceito corrente, integram a noção de ilegalidade, a incompetência, a usurpação e o desvio de poder, o vício de forma e, finalmente, a violação de lei. A ilegalidade tanto pode consistir na violação de uma lei em sentido próprio, como na de qualquer outra norma a que a administração deva obediência, desde o regulamento à própria Constituição. Com efeito, existe a possibilidade de actos administrativos que, sem infringirem qualquer lei, violem directamente a Constituição, lesando-se direitos ou interesses juridicamente protegidos dos cidadãos. Estando excluído o recurso ao sistema de fiscalização da constitucionalidade – que não admite recursos directos e que, de resto, vale apenas para as norma -, a ilegitimidade do acto só pode ser atacada em sede de contencioso administrativo, pelo que o conceito de ilegalidade tem de abarcar a violação da própria lei fundamental (...). A conclusão sobre a ilegitimidade constitucional da norma em apreciação, ao restringir o âmbito da impugnabilidade contenciosa de uma certa espécie de actos administrativos sancionatórios à discussão sobre o quantitativo da multa, aparece assim como evidente, por ser flagrante, como observa o Ministério Público, a violação que ela representa do disposto no artigo 269º, nº 2, da Constituição (a que corresponde actualmente o artigo 168º, nº3, da mesma Lei Fundamental).
É óbvio que, constitucionalmente, o recurso não pode deixar de abranger todos os aspectos juridicamente relevantes para apurar da legalidade do acto administrativo em causa, pelo que a decisão recorrida não fez mais que cumprir o disposto no artigo 207º da Lei Fundamental, segundo o qual «nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados».' (sublinhado nosso).
13. É, pois, esta linha de orientação, e pelos mesmos fundamentos, que agora há que reiterar, determinando, em consequência, a inconstitucionalidade do artigo
20º do Decreto-Lei nº 40 768, de 8 de Setembro de 1956 (Lei Orgânica do Supremo Tribunal Administrativo), por violação do disposto no nº 4 do artigo 268º da Constituição.
III – Decisão Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar o acórdão recorrido, na parte impugnada. Lisboa, 12 de Janeiro de 1999 José de Sousa e Brito Messias Bento Bravo Serra Guilherme da Fonseca Maria dos Prazeres Beleza (com dispensa de visto) Luis Nunes de Almeida