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Procº nº 1004/98.
2ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
1. Nos presentes autos, lavrou o relator, de fls. 310 a 322, decisão sumária com o seguinte teor:-
'1. Por acórdão de 12 de Janeiro de 1998, proferido pelo tribunal colectivo da 2ª Vara Criminal de Lisboa, foi a acusação deduzida pelo Ministério Público contra J... julgada ‘parcialmente procedente e provada’, em consequência sendo o mesmo absolvido do crime de homicídio qualificado na forma tentada por que vinha acusado, vindo a ser condenado, pela autoria de um crime de ofensas corporais graves, previsto e punível pela alínea c) do artº 143º do Código Penal, na redacção conferida pelo Decreto-Lei nº 400/82, de 29 de Setembro, na pena de três anos de prisão.
Na acta da sessão de julgamento realizada nesse dia consta que foi ditado, pelo presidente do tribunal colectivo, um despacho em que, após se enunciar que resultaram da causa e da prova produzida em julgamento determinados factos, se discorreu do seguinte modo:-
‘Perante tal factologia, o Tribunal entende ponderar a alteração substancial decorrente da subsunção do artº 143º al. C) do C.P.82, pelo que questiona o Mº Pº e o defensor do arguido para os efeitos do artº 359º do C.P.P.’
Nessa mesma acta consta também que ‘[p]elos ilustres representantes da acusação e defesa foi dito nada terem a opor a tal alteração substancial dos factos, prescindindo de qualquer prazo, mormente aquele referido no artº 359º do C.P.P.’.
Não se conformando com a decisão condenatória, dela recorreu o arguido para o Supremo Tribunal de Justiça.
Na motivação que apresentou, o arguido disse, por entre o mais e no que ora releva:-
- ‘O disposto no nº 2 do art. 359º do Cod. Proc. Penal, na fase processual em que foi accionado, fez-se em desconformidade com as disposições do Código de Processo Penal, sendo, assim, violado o princípio da legalidade (artº
2º do Cod. Proc. Penal)’;
- ‘Resulta da acta de fls. 200 à 203, a observância do disposto no nº
2 do art. 359º do Cod. Proc. Penal fez-se após o encerramento da audiência de julgamento.
Com efeito,
Como já atrás se disse, vê-se pelas actas de fls. 184 a 186 e de fls.
200 a 203 que na data em que se accionou aquele dispositivo legal – 12/01/98 – se iria, só e tão só, proceder à leitura do acórdão final. Assim,
Naquela fase processual não podia, em princípio, ter lugar a aplicação do disposto no art. 359º do Cod. Proc. Penal, porquanto '... a continuação do julgamento (leia--se audiência de discussão) pelos novos factos...' era impossível pela comezinha, passe o plebeísmo, razão de que a audiência já estava encerrada’;
- ‘Resulta do que se vem alegando, e do que se lê nas antecedentes duas notas de rodapé que se não deu cumprimento ao disposto no nº 2 do art. 359º do Cod. Proc. Penal – preceito este, que constitui mediação semântica dos princípios constitucionais do acusatório, do contraditório e do princípio da plenitude de garantias de defesa (n.ºs 5 e 1 do art. 32º da CRP) – razão pela qual a sentença sub judicio é nula, nos termos do disposto no art. 359º deste diploma adjectivo. Consequentemente,
Está o tribunal ad quem vinculado a decretar a nulidade da sentença, sob pena de interpretação e aplicação do disposto no citado nº 2 do art. 359º em desconformidade com o disposto '...na Constituição ou os princípios nela consignados' (art. 204º da CRP)’;
- ‘Perante a prova, feita pelo teor da acta de fls. 200 a 203, do encadeamento cronológico de tais actos processuais, inequívoco se torna que:
Por um lado, ao arguido, ora recorrente, não foram asseguradas todas as garantias de defesa, como era exigido pelo preceituado no nº 1 do art. 32º da CRP. Por outro lado,
Foi preterido o princípio da oficialidade e, necessariamente, o princípio da legalidade. É que,
Se por hipótese académica – que se não concede – se fosse de entender que depois de um despacho que designou audiência para leitura de acórdão (fls.
186) seria admissível accionar-se o dispositivo do n.º 2 do art. 359º do Cod Proc. Penal, tal não dispensava que, oficiosamente, o Juiz Presidente concedesse a palavra ao Ministério Público e ao defensor do arguido, para produzirem alegações orais, e isto porque como está demonstrado, houve alteração substancial do objecto do processo. De resto,
É esse o regime consignado para o caso excepcional, mas paralelo, previsto no art. 371º do Cod. Proc. Penal (cfr. seu n.º 4)
Com efeito,
Só com novas alegações orais, primeiro, por parte do Ministério Público – impostas pelo princípio do acusatório, face à mudança do objecto do processo – e, posteriormente, pelo defensor do arguido, é que se daria cabal cumprimento aos princípios constitucionais do acusatório e do contraditório.
Entender-se de outro modo, isso implicaria que, além da acusação e da decisão ficarem única e exclusivamente na dependência do julgador – em clara violação do princípio ne procedat iudex ex officio – o que não é consentido pelo princípio do acusatório (nº 5 do art. 32º da CRP) – também a defesa ser inevitavelmente prejudicada, em clara violação do princípio do contraditório (nº
5 do art. 32º da CRP) e do princípio de que o processo criminal assegura todas as garantias de defesa (nº 1 do art. 32º da CRP). Mas,
Tal entendimento é vedado ao tribunal ad quem por força do disposto no art. 204º da CRP’;
- ‘Mostra-se praticada a nulidade insanável prevista na al. b) do art. 119º do Cod. Proc. Penal. Deste modo,
Deve declarar-se nula a sentença e ordenar-se novo julgamento;
Rematou o arguido a sua motivação com as «conclusões» que, para o que ora interessa, a seguir se transcrevem:-
‘1ª - O disposto no nº 2 do art. 359º do Cod, Proc. Penal, tal como resulta do próprio texto do preceito, só pode ter lugar enquanto não estiver encerrada a audiência de julgamento;
2ª - Tal interpretação resulta ainda da sua colocação sistemática no Código de Processo Penal;
3ª - No caso dos autos, aquele dispositivo legal foi accionado depois de encerrada a audiência de discussão. Desta forma,
4ª - Mostra-se violado aquele preceito legal, pelo que a sentença é nula (al. b) do art. 379º do Cod. Proc. Penal).
5ª - Ainda que assim se não entenda, o acordo do Ministério Público e do arguido para a continuação do julgamento não dispensava que o juiz presidente do tribunal «a quo», oficiosamente, desse a palavra ao Ministério Público e ao arguido, para alegações orais, face à «alteração do objecto do processo».
6ª - Não o tendo feito, mostram-se violados os princípios constitucionais constantes dos nºs 1 e 5 do art. 32º da CRP. Como
7ª - Violado se mostra o princípio da oficialidade (al. c) do nº 2 do art. 53º do Cod. Proc. Penal) e praticada a nulidade insanável prevista na al. b) do art. 119º do Cod, Proc. Penal.
8ª - Se assim se não entender, resulta da acta de fls. 200 a 203 que o assistente não deu o seu acordo para a «... continuação de julgamento...», nos termos do nº 2 do art. 344º do Cod. Proc. Penal, razão pela qual, sempre e em todo o caso, a decisão recorrida é nula (al. b) do art. 379º do Cod. Proc. Penal)’.
Em alegações escritas junto do Supremo Tribunal de Justiça, o arguido formulou, por entre outras, as «conclusões» seguintes:-
‘1ª. A advertência a que se refere o nº 2 do art. 359º do Cod. Proc. Penal não foi dada de modo inequívoco, não tendo logrado, por isso, a obtenção de um consentimento válido.
2ª. O preceito legal referido na conclusão precedente tem como «ratio legis» evitar que o arguido seja alvo de mais do que um inquérito pelos mesmos factos, no caso de mera convolação da acusação, como é o caso dos autos.
3ª. O mecanismo constante daquele comando legal, consagrado, única e exclusivamente, em benefício do arguido, para lhe assegurar a paz jurídica, foi aplicado de modo preverso.
4ª. A paz jurídica do arguido, assegurada nos termos daquele preceito legal, não
é incompatível com a prossecução dos princípios da economia e celeridade processual. Porém,
5ª. A prossecução dos princípios da economia e celeridade processual já poderão ser incompatíveis com a paz jurídica se o disposto no art. 359º do Cod. Proc. Penal não foi aplicado de forma solene e perfeita.
6ª. A audiência que teve lugar no dia 12 de Janeiro de 1988 violou a força de caso julgado formal do despacho proferido na anterior audiência de julgamento, em 15 e Dezembro de 1997 e nos termos do qual foi designado o dia 12 de Janeiro de 1998 para leitura do acórdão final.
7ª. Foi na «ficcionada audiência de julgamento» de 12 de Janeiro de 1998 que foram accionados os dispositivos do art. 359º do Cod. Proc. Penal.
8ª. O assistente não deu o consentimento referido no nº 2 do preceito legal referido na conclusão anterior.
9ª. Na audiência de 12 de Janeiro de 1998 o tribunal «a quo» não podia ir além do fim para o qual essa audiência foi designada – leitura do acórdão final’.
Por acórdão de 2 de Julho de 1998, o Supremo Tribunal de Justiça negou provimento ao recurso.
Disse-se nesse aresto, inter alia:-
‘.........................................................................................................................................................................................
A) A primeira conclusão que se tira da comparação entre os factos constantes da acusação e aqueles que foram dados como provados, é que não houve, com efeito, alteração do objecto do processo quanto a esses mesmos factos, apenas tendo havido uma alteração da qualificação jurídica, na medida em que – estando o arguido acusado de homicídio qualificado de forma tentada, acabou por ser condenado como autor material de um crime de ofensas corporais graves, p. e p. pelo artigo 143º, alínea c), do C.P. de 82, na pena de três anos de prisão.
B) Muito embora o arguido tenha sido condenado por um crime diferente do que constava da acusação, embora menos grave, a sua defesa não foi surpreendida por novos factos, já que a mesma foi organizada contra todos os factos.
Desta forma, não tem razão o arguido no que alega nas conclusões da motivação da 1ª à 8ª e insiste a este respeito nas alegações escritas.
C) Vejamos, agora, a questão levantada pelo arguido, baseada em que não deu o seu acordo para a continuação do julgamento, nos termos do nº 2 do artigo 359º do Código de Processo Penal, pelo que sempre a decisão seria nula, nos termos do artigo 379º, alínea b), do mesmo diploma.
Ora, nesta parte, o Exmº Magistrado do Mº Pº dá testemunho que o Exmº Juiz Presidente leu perante os presentes todo o conteúdo do despacho de fls.
200, e finda a leitura, dirigindo-se a todos, nomeadamente aos representantes do arguido, do assistente e do Mº Pº, - por todos foi dito que nada tinham a opôr e que prescindiam de qualquer prazo.
Mas, por lapso nessa parte, não se fez constar na acta a não oposição do assistente.
Também, o Exmº Juiz, a fls. 251, veio atestar que a acta de fls. 202
é equívoca na indicação dos 'Ilustres Representantes da acusação', quando todos os mandatários presentes foram questionados no sentido de – deduzirem ou não oposição, carecerem ou não de prazo e pretenderem produzir alegações suplementares, e todos, sem excepção, manifestaram a respectiva não oposição e prescindiram de qualquer prazo.
Não se pode, pois, com base num mero lapso de uma acta, superado pelas declarações fidedignas de alguns intervenientes no acto a que a mesma se referia, pôr em causa as garantias de defesa do arguido e a aplicação do disposto no nº 2 do artigo 359º, do Código de Processo Penal, - o que preclude totalmente a nulidade do artigo 379º, alínea b), do mesmo diploma.
D) A questão das alegações e mais formalidades depois do questionado despacho de fls. 200 e seguintes, impõe ainda que se produzam algumas considerações.
Em primeiro lugar, os intervenientes processuais, tal como consta da acta, não só se não opuseram à alteração substancial dos factos, como ainda prescindiram de qualquer prazo, com especial referência ao contemplado no artigo
359, do Código de Processo Penal.
Isto, em nosso entender, significa, só pode significar, que prescindiram das alegações e do mais que poderiam requerer.
Pelo que se nos não afigura ter existido aqui sequer qualquer irregularidade.
Repare-se, para finalizar este ponto, que, embora em bom rigor se possa admitir que houve lapso na acta por não se referir expressamente a não oposição do assistente, este bem poderia considerar-se englobado nos
'Representantes da acusação', a que a mesma alude.
.........................................................................................................................................................................................'
Notificado deste aresto, fez o arguido juntar aos autos requerimento onde manifestou a sua vontade de interpor recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.
Referiu nesse requerimento:-
‘1 – Consta da acta de audiência de julgamento de 15/12/1997 e fls. 184 e 185 que foram ouvidos o arguido, as testemunhas de acusação e que depois de produzida a prova foi dada a palavra aos representantes da acusação e da defesa para alegações orais.
2 – Mais consta que, após o Meritíssimo Juiz Presidente ter perguntado ao arguido se tinha algo mais a alegar em sua defesa, este alegou o que teve por conveniente e que, seguidamente, foi proferido o seguinte despacho: «Para leitura do acórdão designo o dia 12 de Janeiro de 1997 pelas 10:00 horas.» (por lapso escreveu-se 12 de Janeiro de 1997 quando devia-se ter escrito 12 de Janeiro de 1998).
3 – Da acta de fls. 200 a 203, consta o despacho que se transcreve parcialmente:
«Perante tal factologia, entende o Tribunal ponderar a alteração substancial decorrente da subsunção do art. 143º, al. c) C.P. 82, pelo que questiona o Mº Pº e o defensor do arguido para os efeitos do art. 359º do CPP.»
4 – Nessa mesma acta consta igualmente o seguinte: «Pelos ilustres representantes da acusação e defesa foi dito nada terem a opôr a tal alteração substancial dos factos, prescindindo de qualquer prazo mormente aquele referido no art. 359º do C.P.P.».
5 – Perante tal factualismo, documentado nos autos, o ora recorrente sustentou quer na motivação do recurso, quer nas alegações do mesmo, que o mecanismo previsto no art. 359º do Cod. Proc. Penal foi accionado intempestivamente, violando o disposto nos nºs 1 e 5 do art. 32º da Constituição da República Portuguesa.
6 – Mais sustentou naquelas peças processuais que a ter sido válido o consentimento previsto no nº 2 do art. 359º do Cod. Proc. Penal incumbia ao Juiz Presidente do Tribunal de 1ª Instância, sob pena de violação do disposto nos nºs
1 e 5 do art. 32º da C.R.P., conceder, oficiosamente, ao Digno Agente do Ministério Público e ao defensor do arguido, ora recorrente, a palavra para produzirem alegações orais face à «alteração substancial do objecto do processo».
7 – Esta posição de que, implicitamente, resultava conceder-se, igualmente, a palavra ao arguido para últimas alegações (art. 361º do Cod. Proc. Penal) foi desatendida pelo tribunal a quo.
8 – Em parte alguma da acta, referente aos actos processuais ocorridos em 12 de Janeiro de 1998, se encontra menção de que o Tribunal de 1ª Instância obteve o consentimento do assistente nos termos do disposto no nº 2 do art. 359º do Cod. Proc. Penal, tendo-se por isso alegado que «Ainda que por hipótese – que se não verificou – a continuação do julgamento, nos termos do nº 2 do art. 359º do Cod. Proc. Penal, tivesse sido consentida pelo assistente, a verdade é que tal não pode ser tomado em conta pelo tribunal ad quem em virtude de, repete-se, a acta prevista no art. 362º do Cod. Proc. Penal constituir uma formalidade ad probationem onde se aplica o princípio quod non est in actis non est in mundo».
9 – O ora recorrente, quanto a esta questão, foi positivamente surpreendido pelo facto de o tribunal recorrido ter considerado que a falta de menções que, obrigatoriamente, devam constar da acta, possam ser supridas por atestados» constantes de peças processuais produzidas pelo Juiz Presidente da 1ª instância e/ou pelo Digníssimo Agente do Ministério Público.
10 – Entende o ora recorrente que tal entendimento faz tábua rasa do «estatuto do arguido» consignado no nº 1 do art. 32º da C.R.P.’
O recurso veio a ser admitido por despacho prolatado em 4 de Outubro de 1998 pelo Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça.
2. Não obstante esse despacho, porque o mesmo não vincula este Tribunal (cfr. nº 3 do artº 76º da Lei nº 28/82) e porque se entende que o recurso não deveria ter sido admitido, elabora-se, ex vi do nº 1 do artº 78º-A daquela Lei, a presente decisão sumária por intermédio da qual se não tomará conhecimento do objecto da vertente impugnação.
Situamo-nos perante um recurso estribado na alínea b) do nº 1 do artº
70º da Lei nº 28/82, o qual, por entre o mais, pressupõe dois requisitos, justamente aqueles que consistem na suscitação, «durante o processo», da questão da incompatibilidade da norma que constitui objecto desse recurso, e na aplicação dessa mesma norma pela decisão que se intenta censurar.
Como é sabido, tem este Tribunal entendido que o requisito da
«suscitação durante o processo» deve ser perspectivado num sentido de incumbir ao recorrente o ónus de, antes do proferimento da decisão pretendida recorrer, suscitar a questão da desconformidade com a Lei Fundamental da norma (ou de uma sua dimensão interpretativa) sobre a qual pretende a análise a efectuar por este
órgão de fiscalização concentrada da constitucionalidade normativa. E entende também que casos podem surgir em que o recorrente pode ser dispensado de um tal
ónus quando, verbi gratia, na decisão querida impugnar é efectuada uma interpretação da norma de tal sorte inusitada ou imprevisível, com a qual o recorrente não poderia razoavelmente contar e que foi trazida, pela primeira vez, ao processo por aquela decisão.
Perante esta parametrização, haverá, in casu, que saber se, de um lado, o Supremo Tribunal de Justiça fez da norma ínsita no artº 362º do Código de Processo Penal a interpretação que o impugnante considera desconforme ao Diploma Básico por «fazer» 'tábua rasa do «estatuto do arguido» consignado no nº
1 do art. 32º da C.R.P.', interpretação essa, bem vistas as coisas, consistente em, não constando da acta de audiência determinada descrição de ocorrências, o suprimento dessa audição poder ser levado a cabo 'por atestados» constantes de peças processuais produzidas pelo Juiz Presidente da 1ª instância e/ou pelo Digníssimo Agente do Ministério Público'; e , de outro, se, sendo dada resposta afirmativa a essa questão, a aludida interpretação foi algo de inusitado ou imprevisível, não podendo, perante o que se assiste nos autos, exigir-se ao recorrente que, razoavelmente, viesse a contar com uma aplicação normativa baseada nessa interpretação.
2.1. Tocantemente à primeira questão, depara-se claro que a interpretação da indicada norma do artº 362º não foi levada a efeito pelo aresto desejado pôr sob a censura deste Tribunal.
De facto, há que sublinhar que aquele preceito comanda que a acta de audiência contém o lugar, a data e hora de abertura e de encerramento da audiência e das sessões que a compuseram, o nome dos juízes, dos jurados e do representante do Ministério Público, a identificação do arguido, do defensor, do assistente, das partes civis e dos respectivos dos advogados, a identificação das testemunhas, dos peritos, dos consultores técnicos e dos intérpretes, as decisões e quaisquer outras indicações que, por força da lei, dele deverem constar e a assinatura do presidente e do funcionário de justiça que a lavrar.
Esgrime o recorrente que, não constando expressamente da acta que o mandatário do assistente deu o seu acordo com a continuação do julgamento nos termos e para os efeitos do nº 2 do artº 359º do Código de Processo Penal, não poderia, essa omissão ser «suprida» por posições assumidas no processo pelo juiz presidente do tribunal de 1ª instância e pelo Ministério Público, sob pena de uma interpretação inconstitucional do artº 362º do mesmo corpo de leis.
Simplesmente, o Supremo Tribunal de Justiça não fez uma aplicação normativa esteada em tal interpretação.
Como resulta inequivocamente da transcrição do acórdão lavrado por aquele Alto Tribunal, o que ali foi entendido foi que, ao mencionar a acta que pelos representantes da acusação foi dito nada terem a opor e que prescindiam do prazo, uma tal menção haveria de comportar também o representante do assistente, embora, expressamente, a acta, por lapso, não tenha aludido a este. E, para reforço dessa interpretação, haveria que atentar-se no que, pelo juiz presidente do tribunal de 1ª instância e pelo representante do Ministério Público foi dito, a esse propósito, nos autos.
Neste contexto, não pode, minimamente, sustentar-se que o Supremo Tribunal de Justiça interpretou e aplicou a norma constante do artº 362º por forma a dever-se concluir que, não constando determinada ocorrência de uma acta de audiência, essa omissão possa ser «suprida» por posições processuais assumidas nos autos, posteriormente, pelo juiz presidente do tribunal de 1ª instância ou pelo representante do Ministério Público.
Desta arte, não tendo havido, por banda do Supremo Tribunal a quo, a aplicação normativa baseada numa interpretação que o recorrente reputa de inconstitucional, isso é quanto basta para que se deva concluir que falta um dos pressupostos do recurso a que se reporta a alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, o que impedirá o conhecimento do objecto da vertente impugnação.
2.2. Mas, ainda que assim não fosse entendido, o que é certo é que dos autos resultam elementos que apontam no sentido de, no caso sub specie, se não dever dispensar o recorrente do ónus de suscitação, antes da prolação da decisão tomada pelo Supremo Tribunal de Justiça, da inconstitucionalidade de uma interpretação que o mesmo, pela primeira vez no requerimento de interposição do recurso, considera como ofensiva da Lei Fundamental.
Na verdade, após a interposição do recurso do acórdão condenatório proferido pela 1ª instância, na resposta à motivação do arguido o representante do Ministério Público disse que se lhe afigurava útil levar ao conhecimento do Supremo Tribunal de Justiça que o Juiz Presidente do tribunal colectivo ‘leu perante os presentes todo o conteúdo do douto despacho de fls. 200’, tendo-se dirigido ‘a todos, nomeadamente aos ilustres representantes do arguido e do assistente, e também ao Ministério Público’, sendo que ‘por todos foi dito que nada tinham a opôr e que prescindiam de qualquer prazo’ e que na acta só ‘por lapso’ se não referiu expressamente a ‘não oposição do ilustre representante do assistente’.
Também aquele Juiz Presidente, no despacho determinativo do envio dos autos ao Supremo Tribunal de Justiça para apreciação do recurso interposto pelo arguido disse que ‘Importa referir que a acta de fls. 202 é equívoca na indicação 'ilustres representantes da acusação' quando, como refere o Ex.mo Sr. Procurador, todos os mandatários presentes foram questionados no sentido de: 1. Deduzirem ou não oposição; 2. Carecerem ou não de prazo; 3. Pretenderem produzir alegações suplementares. Todos, sem excepção, manifestaram a respectiva não oposição e prescindiram de qualquer prazo’.
Por outro lado, o representante do Ministério Público junto do Supremo Tribunal de Justiça, no «visto» que teve nos autos, discreteou, a dado passo, que ‘pouco interessa para o caso que devido a um mero lapso não tivesse ficado a constar da dita acta que, tomando igualmente conhecimento da comunicação feita pelo tribunal, o representante do Assistente também, não manifestou oposição’.
Ora, após estas intervenções processuais - de onde decorreria eventualmente um posicionamento segundo o qual era possível uma interpretação da norma do artº 362º do Código de Processo Penal do jeito que o recorrente veio agora considerar inconstitucional - o mesmo ainda produziu, no Supremo Tribunal de Justiça, alegação escrita.
Daí que sobre si impendesse o ónus de, nessa alegação, suscitar a questão da inconstitucionalidade daquela interpretação normativa.
O que, manifestamente, não fez.
Consequentemente, e mesmo numa óptica – tão só hipotética, atento o que se veio de expor no antecedente ponto 2.1. – de harmonia com a qual o Supremo Tribunal de Justiça levou a efeito a interpretação normativa arguida de inconstitucional pela primeira vez no requerimento de interposição de recurso, sempre ao impugnante era exigível, para os efeitos da alínea b) do nº 1 do artº
70º da Lei nº 28/82, a suscitação, antes do acórdão intentado recorrer, dessa questão de inconstitucionalidade.
3. Nestes termos, não se toma conhecimento do objecto do recurso, condenando-se o recorrente nas custas processuais, fixando a taxa de justiça em cinco unidades de conta'.
2. Da transcrita decisão sumária reclamou o recorrente para a conferência, peticionando o deferimento da reclamação, com a sua consequente notificação para produzir alegação.
Sustentou, em síntese, o seu pedido esgrimindo com a circunstância de aquela decisão não ter tido em consideração que na motivação do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça e na alegação escrita aí produzida ter, ele recorrente, dado 'especial enfoque' a um 'conjunto de questões relacionadas com o disposto nos nºs 2 e 3 do art. 359º do Cod. Proc. Penal', o que levará a que
'as questões suscitadas à volta da interpretação que o S.T.J. terá dado ao disposto no art. 362º do Cod. Proc. Penal foram alegadas a título subsidiário', para além de que não podia deixar de discordar do decidido naquela peça processual, a qual, no fundo, subvertia 'a ratio legis da exigência da documentação das audiências, com preterição dos princípios gerais das formalidades ad probationem, a ponto tal que a ter-se tal entendimento a acta da audiência de julgamento deixaria de ter a importância que teve no domínio do Cod. Proc. Penal de 1929'.
Ouvidos sobre a reclamação, o assistente e o Representante do Ministério Público junto deste Tribunal pronunciaram-se no sentido do indeferimento da mesma.
Cumpre decidir.
3. Convém, desde já, referir que, no tocante à matéria conexionada com a norma constante do artº 362º do Código de Processo Penal e àcerca da qual o mesmo diz ter profunda discordância, em face das razões acima transcritas, a reclamação em causa não pode lograr o mínimo atendimento.
Na verdade, a decisão sumária em causa não se debruçou. minimamente que fosse, sobre a compatibilidade ou incompatibilidade com a Lei Fundamental do normativo ínsito naquele preceito, visto que o resultado do julgamento constante dessa decisão foi o do não conhecimento do objecto do recurso.
3.1. Enfrentemos agora aquilo que o reclamante designou pelo
'conjunto de questões relacionadas com o disposto nos nºs 2 e 3 do art. 359º do Cod. Proc. Penal' e que o levaram a afirmar que aqueloutras questões suscitadas no recurso interposto para este Tribunal referentemente à norma do artº 362º do Código de Processo Penal 'foram alegadas a título subsidiário'.
Se, com essas asserções, o reclamante pretende querer dizer que era sua intenção, quanto ao recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, abarcar (só e ou também) questões respeitantes aos números 2 e 3 do artº 359º do Código de Processo Penal, então há que ponderar, desde logo, que não foram essas normas que, verdadeiramente e na realidade das coisas, elegeu como objecto de um tal recurso, visto que no respectivo requerimento de interposição o que é posto em causa é a norma do artº 362º do mesmo corpo de leis.
Mas, ainda que eventualmente se considerasse que do objecto do recurso aqueles normativos do artº 359º faziam parte, o que é certo é que dele não poderia também conhecer este órgão de fiscalização concentrada da constitucionalidade.
Efectivamente, e como resulta das «conclusões» da motivação de recurso apresentada na 1ª instância e da alegação escrita que formulou no Supremo Tribunal de Justiça (acima transcritas), o então recorrente e ora reclamante não assacou qualquer vício de inconstitucionalidade aos falados normativos, mas sim a própria decisão jurisdicional.
Ora, como é sabido, objecto dos recursos de fiscalização concreta da inconstitucionalidade ou da ilegalidade são normas e não outros actos do poder público como, verbi gratia, as decisões judiciais qua tale consideradas.
A isto acrescerá, e decisivamente, que o Supremo Tribunal de Justiça não interpretou as normas dos números 2 e 3 do citado artº 359º de modo a delas se extrair o entendimento segundo o qual, após ter o tribunal entendido verificar-se uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia e depois de o arguido, Ministério Público e o assistente terem dado o seu acordo à continuação do julgamento pelos novos factos, não se deveria dar a palavra para novas alegações orais.
De facto, o que aquele Alto Tribunal fez foi interpretar o que constava da acta como unicamente podendo significar que o arguido, Ministério Público e assistente 'prescindiram das alegações e do mais que poderiam requerer'.
Não houve, consequentemente, no caso e por banda do nosso mais elevado tribunal da ordem dos tribunais judiciais, uma aplicação de norma (ainda que por interpretação) cuja desconformidade constitucional tivesse, antecedentemente à prolação do acórdão desejado recorrer, sido questionada pelo ora reclamante (e suposto que o tivesse feito de forma adequada e operativa).
Razão pela qual, também por aqui, não poderia este Tribunal tomar conhecimento do recurso que tivesse por objecto tais normas, ou seja as constantes dos números 2 e 3 do artº 359º do Código de Processo Penal.
4. Em face do exposto, indefere-se a vertente reclamação, não se tomando conhecimento do recurso e condenando-se o reclamante nas custas processuais, fixando a taxa de justiça em 15 unidades de conta. Lisboa, 13 de Janeiro de 1999- Bravo Serra Maria Fernanda Palma Luís Nunes de Almeida