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Processo nº 1067/98
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. C..., AM... e N..., todos menores, representados por sua mãe M..., vieram interpor recurso para este Tribunal Constitucional, 'nos termos dos artºs 75º-A e 76º da Lei nº 28/82 de 15 de Novembro', do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 16 de Junho de 1998, 'pretendendo que seja apreciada a inconstitucionalidade das normas constantes do art. 64º nº 2 al. C) do D/L nº
321-B90, de 15 de Outubro e dos artºs 351º al. A), 26º e 27º, todos do C. P. Civil, na anterior redacção' e invocando que 'a interpretação dada àquelas normas pelo Tribunal de 1ª instância, confirmada pela Relação, no sentido de que sendo instaurada uma acção de despejo por falta de pagamento das rendas e falta de residência permanente do arrendatário, não podem os seus descendentes em linha recta, que permaneceram no locado, intervir nos autos de forma a poderem defender o seu direito à casa de morada de família, é claramente inconstitucional, violando o disposto nos arts. 65º e 36º nº 4 da C.R.P.'
2. Nas suas alegações concluem assim os recorrentes:
'A interpretação dada pelo Tribunal da Relação à norma constante do art. 64º, nº
2 al. C) do D.L. nº 321-B, de 15 de Outubro conjugada com o disposto nos artºs
351º al. A), 26º e 27º do Código de Processo Civil (na versão anterior ao DL
329-A/95 de 12.12.), no sentido de que sendo instaurada uma acção de despejo por falta de pagamento das rendas e falta de residência permanente, não podem os filhos menores do arrendatário, que continuaram a viver no locado, intervir nos autos de forma a defenderem o seu direito à casa de morada de família é inconstitucional, violando o disposto nos art. 65º e 36º nº 4 da Constituição da República Portuguesa. Termos em que o presente recurso deve merecer provimento, declarando-se a inconstitucionalidade da interpretação dada pelo acórdão do Tribunal da Relação
à norma constante do art. 65º nº 2 al. C) do D/L nº 321-B de 15 de Dezembro, conjugada com as normas dos artºs 351º a), 26º e 27º do C.P.Civil (versão anterior ao DL nº 329-A/95, de 12 de Dezembro) com todas as consequências legais'.
1. Também apresentou alegações o ora recorrido M..., com os sinais identificadores dos autos, sustentando que 'deve ser negado provimento ao recurso, mantendo-se integralmente a decisão contida no douto acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa'.
1. Tudo visto, cumpre decidir. No acórdão recorrido, proferido em recurso de agravo que subiu em separado, retrata-se claramente a situação fáctica dos autos nos seguintes termos:
'O ora agravado (e aqui recorrido) propôs no Tribunal Cível da comarca de Lisboa, acção de despejo contra MM... e MG..., pedindo, com fundamento na falta de residência permanente e na falta de pagamento de renda (alíneas i) e a) do artº 64º do RAU), que se decretasse a resolução do contrato de arrendamento e que os réus fossem condenados a despejar imediatamente o 1º andar, lado esquerdo, do prédio sito na Avenida Padre Himalaia, nº..., , freguesia da Damaia, concelho da Amadora, e ainda a pagar ao autor as rendas vencidas e vincendas até efectivo despejo, alegando que o autor deu de arrendamento ao réu pela renda mensal de 3 500$00 (actualmente de 9 428$00), para habitação, o referido andar, acontecendo que há cerca de 2 anos os réus não comem, não dormem, nem recebem as suas visitas na casa arrendada, não tendo também o réu pago as rendas vencidas em 1-7-93 e seguintes. O réu foi citado na sua própria pessoa e não contestou. Pelo facto de o réu ser divorciado, o autor desistiu da instância, relativamente
à ré. Os ora agravantes, representados por sua mãe M..., requereram a sua intervenção principal, alegando serem filhos do réu e continuarem a viver no andar arrendado e terem sido depositadas as rendas referidas na petição inicial, com o acréscimo legal de 50%, pelo que têm um direito próprio e paralelo ao do réu. A deduzida intervenção principal foi rejeitada liminarmente, por se ter entendido no douto despacho recorrido que os menores não têm qualquer direito próprio, paralelo ao do réu, na relação locatícia em causa. O andar despejando foi dado de arrendamento ao réu pelo ora agravado. Os agravantes são filhos do réu da acção de despejo (docs. de fls. 37 a 39'. A temática versada no presente caso relaciona-se com o incidente da instância da intervenção principal, espontânea, à luz do Código de Processo Civil, na versão anterior a 1977 (a 'intervenção principal em causa foi requerida nos termos da alínea a) do artº 351º do C.P. Civil, na anterior redacção, aplicável a estes autos (aquele pedido foi deduzido em 6-12-93)' - lê-se no aresto), e o acórdão recorrido, depois de se considerar que a relação material controvertida não diz respeito aos recorrentes e que estes 'não têm um direito próprio, paralelo ao do auto ou do réu' expraia-se com o seguinte discurso:
'O direito ao arrendamento tem natureza essencialmente pessoal (acórdão do STJ, de 21-12-1982, BMJ, 322º, pág. 338), sendo incomunicável (artº 83º do RAU) e só se transmite nos termos dos arts. 84º e 85º do mesmo diploma, nenhum deles aplicável ao caso dos autos. Os filhos do arrendatário não têm qualquer direito próprio a permanecer na sua casa arrendada, se o pai não pretende a subsistência do contrato de arrendamento, deixando de contestar a acção. A alínea c) do nº 2 do artº 64º do RAU pressupõe que o arrendatário pretende a subsistência do contrato de arrendamento e contestou a acção invocando essa excepção. A tese defendida pelos agravantes conduziria a que o réu permanecesse como arrendatário contra a sua própria vontade, o que não tem obviamente qualquer suporte legal. Os artigos da Constituição citados pelo agravantes não impõem aos senhorios que resolvam as carências de habitação, e menos ainda dos filhos daqueles que não querem continuar a ser inquilinos. Impõe, sim, ao Estado que adopte as medidas necessárias para assegurar a todos os cidadãos o direito à habitação, o que é muito diferente. No caso dos autos não há qualquer discriminação pelo facto de os agravantes terem nascido fora do casamento, visto que a solução seria a mesma, se os pais dos agravantes fossem casados um com o outro e a acção não tivesse sido contestada. Não foram, pois, ofendidas as normas constitucionais citadas pelos agravantes. O facto de alguém ter de deixar de residir numa casa, em consequência da procedência de uma acção de despejo, não significa que passe a ter interesse directo em contradizer nessa acção. Não se trata de uma acção de reivindicação. Na acção de despejo, pede-se que se decrete a resolução do contrato de arrendamento e que o arrendatário seja condenado a despejar a casa. Ora, os agravantes não tiveram intervenção no contrato de arrendamento, pelo que não têm interesse directo em contradizer. Não foi pois violada nenhuma das normas por eles referidas nas conclusões das alegações'. Para os recorrentes, e no essencial, eles 'têm um direito próprio que resulta do gozo e fruição da casa de morada de família, pois, o contrato de arrendamento para habitação é um contrato com eficácia de protecção de terceiros, como se depreende de todos os dispositivos do RAU que visam proteger os familiares do arrendatário habitacional', e a 'intenção do legislador de preservar a habitação permanente da família nuclear, mesmo quando o arrendatário deixa de aí residir, não pode ser defraudada por motivos de ordem formalista, nomeadamente com a assunção da ideia de que apesar de os menores terem direito a permanecer na casa de morada de família, a lei não lhes faculta meios de defenderem esse direito'
('O interesse dos filhos menores do arrendatário na manutenção do locado como casa de morada de família, quer por forma a possibilitar-lhes residência quer a assegurar-lhes a manutenção do ambiente em que têm vivido, impõe que estes sejam admitidos a intervir na acção de despejo que tem por objecto a casa de morada de família' - é outra afirmação dos recorrentes). Quid juris?
1. O artigo 64º, nº 2, c), do Decreto-Lei nº 321-B/90 de 15 de Outubro, que aprovou o RAU, excepciona a aplicação do disposto na alínea i) do número anterior, relativamente ao fundamento para a resolução do contrato derivado da falta de residência permanente, dispondo como se segue:
'Se permanecerem no prédio o cônjuge ou parentes em linha recta do arrendatário ou outros familiares dele, desde que, neste último caso, com ele convivessem há mais de um ano'. Por sua vez, os artigos questionados do Código de Processo Civil têm a ver com o incidente da intervenção principal e com o pressuposto processual da legitimidade e litisconsórcio pelas partes. A intervenção principal espontânea pretendida pelos recorrentes, do lado passivo da acção de despejo em causa, permitiria, em demanda pendente, o litisconsórcio de terceiros, aqui os recorrentes, com o réu nessa acção, e o direito dos intervenientes haveria de ser paralelo ao réu, assumindo eles a posição de co-réus. Esse litisconsórcio inicial, na óptica dos artigos 26º e 27º do mesmo Código, tem lugar quando sejam dois ou mais os sujeitos activos ou passivos da relação jurídica controvertida, mas o pedido seja o mesmo relativamente a todos eles, sendo necessário ou facultativo, consoante a lei ou o contrato o exijam ou apenas o consintam, de modo expresso (há ainda uma terceira forma de litisconsórcio, o litisconsórcio quase necessário, quando a lei ou o contrato nada digam, declaradamente, sobre a possibilidade de o direito ser exercido por um só dos titulares ou de a obrigação comum ser pedida a um só dos obrigados). Em todos esses casos a falta de litisconsórcio determina sempre a ilegitimidade da parte que estiver desacompanhada dos seus co-interessados e a intervenção principal tem, por isso, o efeito de legitimar a parte inicialmente desacompanhada.
Só que, as normas em causa consideradas no acórdão recorrido, tal como aí foram interpretadas e aplicadas, e com o desenho que se inscreve no regime material e processual do arrendamento urbano para a habitação, mostram-se de todo em todo alheias ao fundamento que serviu para julgar procedente a acção de despejo e que foi também o da falta de pagamento das rendas, como se colhe da sentença final da primeira instância, datada de 15 de Novembro de 1996, que, a par de indeferir
'liminarmente a deduzida intervenção principal', declarou resolvido o contrato de arrendamento em causa, condenando o réu (condenação de preceito) 'a despejar imediatamente o locado' e a pagar ao senhorio as rendas vencidas e vincendas, até se efectivar o despejo. Tal significa que, ainda que pudesse vingar um juízo de inconstitucionalidade dessas normas, por eventual violação de normas ou princípios constitucionais, nomeadamente os apontados artigos 65º e 36º, nº 4, da Lei Fundamental, quando é o caso de garantir o direito à habitação dos filhos nascidos fora do casamento - e a habitação aqui reporta-se a uma situação de união de facto -, o certo é que não poderia nunca esse juízo projectar-se na decisão que decretou a resolução do contrato de arrendamento, assente também no fundamento derivado da falta de pagamento de rendas pelo inquilino (o fundamento da alínea a) do nº 1 do mesmo artigo 64º, norma que não vem aqui questionada pelos recorrentes). Pois que sempre subsistiria tal decisão e o despejo consumado por essa via, desde logo por falta de pagamento das rendas vencidas e vincendas. Daí que, com o enquadramento normativo dado pelos recorrentes ao presente recurso de constitucionalidade, não se possa falar rigorosamente em utilidade prática ou interesse juridicamente relevante para dele conhecer, sabendo-se que tal recurso assume um carácter instrumental. Com o que não se pode tomar conhecimento do recurso.
6. Termos em que, DECIDINDO, não se toma conhecimento do recurso e condenam-se os recorrentes nas custas, com a taxa de justiça fixada em 6 unidades de conta. Lisboa, 22 de Março de 2000 Guilherme da Fonseca Paulo Mota Pinto Bravo Serra Maria Fernanda Palma José Manuel Cardoso da Costa