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Proc. nº 644/92
2ª Secção Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam na 2ª secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1 – No Tribunal Judicial da Comarca de Mafra, o Ministério Público, em processo comum e com intervenção do Tribunal Colectivo, deduziu acusação contra: V..., Lda, e outros, imputando-lhes, designadamente, a prática de um crime contra a qualidade de géneros alimentícios, previsto e punido pelos artigos 24º, nº 1, alínea c); 3º, nº 1, e 82º, III, alínea c), do Decreto-Lei nº 24/84, de 20 de Janeiro.
2 – Finda a fase da instrução foi proferido despacho a pronunciar os arguidos pelos factos que já constavam da acusação e, designadamente, pela prática do crime previsto e punido pelos preceitos supra referidos.
3 – Após a distribuição foi o processo submetido à apreciação do Juiz-Presidente do Círculo Judicial que, em 24 de Junho de 1992, proferiu o seguinte despacho:
'Sujeitar a Sociedade V..., Lda, a um julgamento criminal – e sem prejuízo do devido respeito pelo despacho de pronúncia oportunamente proferido – seria afrontar directamente a Constituição (artigo 12º, nº 2) – o que ela taxativamente nos proíbe: artigos 277º, nº 1 e 207º. Por isso – e pelas razões que adiante mais desenvolvidamente se arrolam – como Presidente do Tribunal Colectivo – artigo 311º, nº 1, do Código de Processo Penal – não designo dia para julgamento da referida sociedade'.
Na sequência e em complemento deste despacho segue-se um texto (fls. 187 a 190), assinado pelo mesmo Juiz-Presidente do Círculo Judicial, sobre o problema da responsabilidade criminal das pessoas colectivas, do qual destacamos as seguintes passagens:
'Pode uma pessoa colectiva ser responsabilizada criminalmente ?
É conhecido o brocardo: 'Societas delinquere non potest' – a sociedade não pode delinquir. Tradicionalmente a responsabilidade criminal tem sido exclusivamente atribuída à pessoa humana. Nem podia ser de outro modo, sem embargo de a História nos fornecer exemplos pontuais de responsabilização de pessoas falecidas ou animais. Não obstante isso, temos lei positiva – o artigo 3º do Decreto Lei 28/84, de 20 de janeiro – que consagra a responsabilidade criminal das pessoas colectivas e equiparadas. E ante a objectividade da lei parece que todas as considerações se deveriam calar, nada mais havendo que fazer senão obedecer ao direito positivo legislado
(...). Este positivismo jurídico defronta-se, porém, com tais escolhos que se prende nas malhas com que constrói a sua teia. E o primeiro deles é o próprio Direito Constitucional que lhe serve de suporte. Na hierarquia das fontes de Direito, nenhuma lei ordinária se poderá manter actuante, se estiver em contradição ou litígio com a norma fundamental. Ora, sobre este ponto dispõe o artigo 12º, nº 2 da Constituição: As pessoas colectivas gozam dos direitos e estão sujeitas aos deveres compatíveis com a sua natureza'. Nesses deveres se compreendem, evidentemente, os de natureza criminal. É dever do cidadão não delinquir... Delinquir acarreta responsabilidade criminal. E será compatível com a natureza de um ente que não passa de uma ficção jurídica, criada em função das necessidades económico sociais do mundo moderno, a sua responsabilização criminal ? Se tivermos uma ideia precisa do que significa ser sujeito de responsabilidade criminal a resposta é óbvia (...). Não é concebível responsabilizar criminalmente alguém se esse alguém não tiver actuado com dolo, ou, pelo menos, com negligência, nos casos em que o respectivo tipo se basta com tal modalidade de culpa. Dolo e culpa são ingredientes de natureza psicológica e, por isso, são inseparáveis da pessoa humana (...). O Decreto.Lei 28/84 deveria ter-se ficado dentro dos limites deste bom senso e razoabilidade, não enveredando por soluções que, além de espúrias, afrontam a Lei Fundamental (...). Agora, o que não pode é enveredar-se por caminhos que vão dar a um beco sem saída. Será o caso de se falar em responsabilidade criminal das pessoas colectivas, quando de antemão se sabe que tal tipo de responsabilidade supõe a existência de um elemento de natureza psicológica (a culpa) que só pode existir na pessoa singular. E sem ele não há crime – e eis tudo ! Por isso, coerentemente, e não por acaso (as palavras da lei pesam como diamantes) o artigo 12º, nº 2 da Constituição circunscreve os deveres das pessoas colectivas (e é na área do dever que a responsabilidade criminal se sedeia) ao âmbito da sua compatibilidade com a respectiva natureza. Dir-se-á que o elemento psicológico se haverá de buscar precisamente nos representantes da pessoa colectiva... Certo. Só que à conta do respectivo dolo ou negligência delituais já esses representantes são responsabilizados nos termos do artigo 12º do C.P. Será que, então, numa como que violação do princípio 'non bis in idem', à conta de um só e mesmo elemento psicológico (o dolo do gerente) vamos responsabilizar criminalmente dois sujeitos de direito (ele e a sociedade), ou, eventualmente, três ou mais, se se der o caso de aquela sociedade ser subsidiária de uma outra de onde emanam as directrizes gerais ? Como ninguém pode ser responsabilizado duas vezes pelo mesmo facto, também pelo mesmo facto (e salvos os casos de comparticipação que aqui não se verificam) não podem responder vários sujeitos, se o elo essencial que os conecta à responsabilidade (a culpa) apenas existe num só deles (o gerente) (...). O artigo 3º do Decreto-Lei nº 28/84 ao dispor nesse sentido viola flagrantemente o artigo 12º, nº 2 da Constituição e, por isso não pode ser aplicado pelos Tribunais: - art. 277º, nº 1 e 207º da Constituição.'
4 – É desta decisão, que recusou a aplicação do disposto no artigo 3º do Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro, com fundamento na sua inconstitucionalidade por violação dos artigos 12º, nº 2, e 29º, nº 5, da Constituição, que foi interposto pelo Ministério Público, ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º e do artigo 72º, nº 3, ambos da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, o presente recurso de constitucionalidade.
5 – Neste Tribunal apenas o Sr. Procurador-Geral Adjunto apresentou alegações. Sustentou aí, a concluir extenso parecer, que 'a norma do artigo 3º, nº 1, conjugada com o artigo 7º, nº 1, do Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro, enquanto prevê que as pessoas colectivas são responsáveis pelas infracções previstas neste diploma quando cometidas pelos seus órgãos ou representantes em seu nome e no interesse colectivo, sendo-lhes aplicáveis as penas principais de admoestação, multa e dissolução, não são inconstitucionais, pois não violam nenhum princípio ou preceito constitucional, designadamente os artigos 12º, nº 2 e 29º, nº 5, da Constituição.'
Corridos os vistos legais, cumpre decidir. II – Fundamentação
6 – A questão que agora se coloca é a se saber se é constitucionalmente legítima a imputação de responsabilidade criminal às pessoas colectivas e equiparadas
(tal como faz o artigo 3º do Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro) bem como a aplicação a essas mesmas pessoas colectivas das penas constantes do artigo 7º, nº 1, do mesmo diploma. Entendeu a decisão recorrida que a previsão, pelos artigos supra referidos, da possibilidade de responsabilizar criminalmente a pessoa colectiva pelas infracções previstas no Decreto-Lei nº 28/84, de 10 de Janeiro, é inconstitucional por violação do disposto nos artigos 12º, nº 2 e 29º, nº 5 da Constituição. Porém, como vai ver-se, sem razão. As questões que agora são colocadas à consideração do Tribunal Constitucional não são novas. De facto, este Tribunal foi já, por diversas vezes, confrontado com as questões que agora constituem objecto do recurso - a da inconstitucionalidade, por violação dos artigos 12º, nº 2, e 29, nº 5 da Constituição, das normas que se extraem do artigo 3º, nº 1, e 7º, nº 1, do Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro, enquanto prevêem que as pessoas colectivas são responsáveis pelas infracções previstas neste diploma quando cometidas pelos seus órgãos ou representantes em seu nome e no interesse colectivo, sendo-lhes aplicáveis as penas principais de admoestação, multa e dissolução - existindo já hoje uma jurisprudência uniforme no sentido de que as normas em análise não são, naquelas dimensões, inconstitucionais.
7 - Sobre a questão da alegada incompatibilidade com o artigo 12º, nº 2, da Constituição dos artigos 3º, nº 1, e 7º, nº 1, do Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro, disse-se, por exemplo, no Acórdão nº 302/95 (Diário da República, II Série, de 29 de Julho de 1995):
'Já se disse que não há norma ou princípio constitucional que impeça o legislador de, neste domínio das infracções contra a economia e contra a saúde, prever a responsabilidade criminal das pessoas colectivas (e equiparadas). O Direito Penal moderno está, é certo, construído sobre o princípio da culpa, como, aliás, não podia deixar de ser nos quadros de um Estado de Direito, todo ele assente na dignidade da pessoa humana. Ora, quando se fala em culpa, tem-se em vista o homem individual (o homem considerado em si mesmo), pois que só ele, enquanto ser livre, dotado de inteligência e vontade próprias, pode cometer infracções penais ser «centro
ético-social de imputação jurídico-penal» (a expressão é de Figueiredo Dias). A doutrina e a jurisprudência nacionais entendiam, por isso, maioritariamente, que societas de linquere non potest, só aceitando a responsabilidade das pessoas colectivas a título excepcional. Assim, Eduardo Correia (Direito Criminal, I, Coimbra, 1963, p. 32) escrevia:
«Igualmente se deve respeitar, em regra, o princípio da individualização da responsabilidade, negando-se imputabilidade penal às pessoas colectivas, com o que não queremos dizer que não seja possível aplicar-se-lhes certas medidas administrativas, como v.g., a dissolução, quando a sua actividade, em determinado momento, se tornou prejudicial à sociedade». E, mais adiante, a p. 234, acrescentava o mesmo autor: «Assim, por um lado, só o comportamento humano, a negação de valores pelo homem pode considerar-se uma acção no sentido descrito (...). O comportamento de que se parte é o comportamento humano e, em princípio – ao contrário do que acontece em todos os outros ramos de direito, nomeadamente no civil -, só o dos indivíduos e não o das colectividades: societas deinquere non potest. Pelo que a irresponsabilidade criminal das pessoas colectivas deriva assim logo da sua capacidade de acção e não apenas, como querem alguns, da sua incapacidade de culpa». Mais recentemente, Manuel Cavaleiro de Ferreira (Direito Penal Português, I, Verbo, 1981, p. 261) escreveu: «O facto voluntário é actividade privativa dos homens; qualquer homem pode praticar factos voluntários. Não existe capacidade penal das pessoas colectivas, só os órgãos individualmente considerados de pessoas colectivas podem ter responsabilidade criminal. Societas de linquere non potest». No mesmo sentido também João de Castro Sousa (As pessoas colectivas em face do Direito Criminal e do Chamado Direito de Mera Ordenação Social, Coimra, 1972, pp. 163 e seguintes). Quanto à jurisprudência, veja-se, por todos, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28 de Abril de 1976 (Boletim do Ministério da Justiça, nº 256, p. 55) e a respectiva anotação; e, no mesmo Boletim, nº 275º, p. 276, o sumário do Acórdão da Relação do Porto de 17 de Janeiro de 1978. Todo este tema deve, no entanto, de ser repensado, fundamentalmente face aos elevados danos materiais e morais provocados pela criminalidade económica (em resultado, designadamente, de certas formas de superindustrialização e da multinacionalidade de muitas empresas), aliados à circunstância de a
«transferência da responsabilidade, que, verdadeiramente, caiba à pessoa colectiva qua tale, para o nome individual de quem actue como seu órgão ou representante» conduzir muitas vezes - «sobretudo nos delitos económicos das grandes empresas, v.g., multinacionais com diversificadas esferas de administração, donde deriva uma acentuada repartição de tarefas e de competência» - «à completa impunidade, por se tornar impossível a comprovação do nexo causal entre a actuação de uma ou mais pessoas individuais e a agressão do bem jurídico produzida ao nível da pessoa colectiva» (cf. Figueiredo Dias, «Para uma dogmática do direito penal secundário», Revista cit., p. 74). Eduardo Correia, em escrito mais recente («Notas críticas à penalização das actividades económicas», in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 116º, pp. 361 e seguintes), pôde, por isso, afirmar: «A possibilidade da responsabilidade colectiva das sociedades, de que hoje tanto se fala, constituirá, eventualmente, um caminho para alargar as reacções contra delitos antieconómicos». Aliás, Eduardo Correia afirmara já, no decurso dos trabalhos preparatórios do Código Penal de 1982, justamente a propósito do artigo 8º do projecto
(correspondente ao artigo 11º do Código) o seguinte: «Em homenagem a razões particulares e, em todo o caso, excepcionais, pode admitir-se que haja lugar à aplicação de certas reacções a sociedades ou outras pessoas colectivas, reacções que podem ter a natureza de penas ou de medidas de segurança». (Cf. Actas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal, parte geral, p. 110). O mesmo autor, num outro escrito (cf. «Introdução ao Direito penal Ecónómico», Revista de Direito e Economia, ano III, nº 1 (1977), pp. 3 e seguintes) – depois de referir que «nos sistemas continentais tem sido, desde longa data, consagrado o princípio societas de linquere non potest, sem que tal exclua a possível responsabilidade de quem age como titular dos órgãos de qualquer sociedade, pessoa colectiva ou como representante de outrem, ainda que lhe faltem pessoalmente certos requisitos previstos na lei ou o princípio da apreensão das vantagens, recompensas e proveitos do crime de que, mesmo quando pessoa colectiva, beneficie» - acrescenta: «Por outro lado, reconhece-se, hoje – importa lembrá-lo -, a responsabilidade por infracções de mera ordenação social de pessoas jurídicas. Há também quem proponha a criação de um direito penal, constituído pela violação de deveres de fiscalização. Para além disso importa considerar a possibilidade de aplicação de medidas de segurança a pessoas colectivas». Ainda na doutrina nacional – para além de Figueiredo Dias («Para uma dogmática do direito penal secundário», já citado, e, juntamente com Costa Andrade,
«Problemática geral das infracções antieconómicas», in Boletim do Ministério da Justiça, nº 262, pp. 5 e seguintes) e de Manuel António Lopes Rocha (A Responsabilidade Penal das Pessoas Colectivas, já citada) – também José Francisco Faria e Costa (O Perigo em Direito Penal – Contributo para a Sua Compreensão e Fundamentação Dogmáticas, Coimbra, 1992) e Alberto Esteves Remédio
(«Sobre a responsabilidade criminal das pessoas colectivas», in Revista do Ministério Público, ano 14º, nº 53, pp. 68 e seguintes) – aceitam a responsabilidade criminal das pessoas colectivas. Faria e Costa escreve, a propósito, na p. 451: «Foi dentro deste traçado dogmático que o diploma penal relativo às infracções contra a economia veio consagrar – aliás no seguimento da mais moderna doutrina e legislação que o direito comparado nos concede – o princípio da responsabilidade penal das pessoas colectivas como um dos axiomas centrais desta específica área da normatividade penal. Em suma: temos a vigorar no direito penal comum o princípio orientador de que a responsabilidade penal deve, tanto quanto possível, restringir-se ao domínio da comunicabilidade do ser-pessoa (física), enquanto vigora, do direito penal económico, o princípio regra de que as pessoas colectivas são também penalmente responsáveis. Dito de forma sincopada: em termos analíticos, a excepção permitida pelo direito penal comum transforma-se em regra nesta particular área do direito penal secundário (direito penal económico)».
(Também de Faria e Costa, cf., «A responsabilidade jurídico-penal da empresa e dos seus órgãos...», in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, nº 4/92, pp. 537 e seguintes). O legislador, no preâmbulo do Decreto Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro, deu, de resto, conta da novidade que representou a «consagração aberta da responsabilidade penal das pessoas colectivas e sociedades, a que algumas recomendações de instâncias internacionais, como o Conselho da Europa, se referem com insistência». E, acrescentou: «Tratando-se de um tema polémico em termos de dogmática jurídico-penal, nem por isso devem ignorar-se as realidades práticas, pois se reconhece por toda a parte que é no domínio da criminalidade económica que mais se tem defendido o abandono do velho princípio societas deinquere non potest. Em todo o caso, o princípio da responsabilidade penal das pessoas colectivas é consagrado com prudência: exige-se sempre uma conexão entre o comportamento do agente pessoa singular e o ente colectivo, já que aquele deve actuar em representação ou em nome deste e no interesse colectivo. E tal responsabilidade tem-se por excluída quando o agente tiver actuado contra ordens expressas da pessoa colectiva». Até à consagração da responsabilidade penal das pessoas colectivas, que, - repete-se – se fez sob a pressão da necessidade de dar combate eficaz à criminalidade económica (White collar criminality) – houve, no entanto, que vencer imensos obstáculos de ordem teórica. Se alguns dos argumentos, que se esgrimiam a favor da irresponsabilidade das pessoas colectivas, eram pouco consistentes, outros pareciam quase impossíveis de ultrapassar. Assim, o argumento relativo à incapacidade da pessoa colectiva para se arrepender, intimidar, emendar ou para ser reeducada, não resistia à consideração de que as penas não têm só finalidades de intimidação e emenda. Do mesmo modo, o argumento de que as pessoas colectivas não podem ser metidas na cadeia, apenas chama a atenção para o facto de que – como assinala Eduardo Correia (Notas Críticas..., cit.) -, «neste quadro», têm de prever-se
«particulares sanções económicas, como, por exemplo, interdições, sanções pecuniárias, injunções, publicidade, apreensões de bens, etc.». Também o argumento tirado do princípio da pessoalidade das penas, segundo o qual a condenação da pessoa colectiva seria injusta, por atingir membros inocentes do grupo (v.g. accionistas da sociedade que não participaram na infracção ou mesmo administradores que votaram contra a deliberação que esteve na sua origem) se não mostra probante; basta lembrar que quem participa numa sociedade e confere a outrem poderes de administração contrai laços de solidariedade, que o comprometem a aceitar as consequências desse tipo. Mais valioso é o argumento de que não há responsabilidade sem culpa.
É que o ente colectivo enquanto tal, é incapaz de culpa, para além de (para certa doutrina) ser também incapaz de acção. Para ultrapassar esta dificuldade a doutrina fez apelo a ideias como as que vão implicadas no princípio da alter ego (a responsabilidade criminal da pessoa colectiva decorre do facto de se deverem considerar como seus os actos da pessoa física que actuou em sua representação e no seu interesse) ou no adágio respondeat superior (a responsabilidade da pessoa colectiva, em vez de ser directa e pessoal, seria uma responsabilidade delegada, já que o autor da infracção não passava de um agente subordinado seu, de um seu braço). Estas justificações, eram claramente insuficientes. E isso forçou a busca de novas razões para legitimar a consagração da responsabilidade criminal das pessoas colectivas, que se tornava cada vez mais urgente e que, um pouco por toda a parte, s legislações iam acolhendo, com maior ou menor amplitude (cf. sobre isto, o já citado estudo de Lopes Rocha). Entre nós, Figueiredo Dias («Para uma dogmática do Direito Penal secundário», cit) a p. 73 e 74, do ano 117º, da Revista de Legislação e Jurisprudência, - depois de chamar a tenção para que a tese que considera que as pessoas colectivas não podem ser agentes dos tipos de ilícito de direito penal secundário «só pode louvar-se numa ontologificação e autonomização inadmissíveis do conceito de acção, a esquecer que a este conceito podem ser feitas pelo tipo de ilícito exigências normativas que o conformem com uma certa unidade de sentido social» - acrescenta: «E tão pouco me parece impensável ver nas pessoas colectivas destinatárias do possível juízo de censura em que a culpa se traduz. Certo que, na acção como na culpa, tem-se em vista um ser-livre como centro
ético-social de imputação jurídico-penal e aquele é o do homem individual. Mas não deve esquecer-se que as organizações humano-sociais são, tanto como o próprio homem individual, «obras de realidade» ou «realizações do ser livre»; pelo que parece aceitável que em certos domínios especiais e bem delimitados – de acordo com o que poderá chamar-se, seguindo Max Müller, o princípio da identidade da liberdade – ao homem individual possam substituir-se como centros
ético-sociais de imputação jurídico-penal, as suas obras ou realizações colectivas e, assim, as pessoas colectivas, associações, agrupamentos ou corporações em que o ser livre se exprime». O mesmo autor, depois de frisar ser evidente que « se torna necessário usar aqui de um pensamento analógico, relativamente aos princípios do direito penal clássico – onde a máxima da responsabilidade individual deve continuar a valer sem limitações – e de acentuar que fazer apelo a um pensamento analógico não é lançar mão de ficções, acrescenta: «Fica assim aberto, do ponto de vista dogmático, o indispensável caminho para se admitir uma responsabilidade das pessoas colectivas no direito penal secundário, ao lado da responsabilidade das pessoas individuais que agem como seus órgãos ou representantes». Se esta é ou não uma fundamentação teórica satisfatória para a responsabilidade criminal das pessoas colectivas é o que, aqui, não tem de decidir-se. Nesta sede, o que importa considerar é que, sendo o Estado de direito material um Estado de justiça (um Estado que está empenhado, em função de considerações axiológicas materiais de justiça, na promoção das condições económicas, sociais e culturais para o livre desenvolvimento da personalidade do homem, designadamente na sua acção social), deve ele dar combate (se necessário for, pelo recurso a sanções penais) às violações mais graves dos respectivos bens jurídicos. E sendo tais violações cometidas, as mais das vezes, por pessoas colectivas, e não por pessoas individuais, as exigências de justiça que vão implicadas na ideia de Estado de direito não podem deixar de legitimar sub specie constitutionis, normas como as que aqui estão sub judicio, que consagram a responsabilidade criminal das pessoas colectivas.'
No mesmo sentido se pronunciaram, entre outros, os Acórdãos nº 212/95, (Diário da República, II série, de 24 de Junho de 1995) e 214/95, 959/96 e 53/98 (ainda inéditos).
8 - Sobre a questão da alegada incompatibilidade dos preceitos referidos com o artigo 29º, nº 5, da Constituição, disse-se, por exemplo, no Acórdão nº 212/95
(já citado):
'Quanto ao outro fundamento de inconstitucionalidade do artigo 3º em análise e baseado na violação do princípio constitucional do non bis in idem, constante do artigo 29º, nº 5, da Constituição, o mesmo não parece também poder resistir a uma análise minimamente aprofundada (...). No caso do autos, parece manifesto que este princípio não vem posto em causa, em qualquer das suas referidas dimensões, porquanto tal princípio não obsta a que pelo mesmo facto objectivo venham a ser perseguidas penalmente duas pessoas jurídicas diferentes, sendo também passíveis de sanções diferentes (...). Se estes argumentos servem para demonstrar a necessidade da responsabilização das pessoas colectivas, mostram também que a consagração legal da responsabilidade individual ao lado da responsabilidade do ente colectivo pelos mesmos factos não viola o princípio do non bis in idem uma vez que não existe um duplo grau julgamento da mesma pessoa pelo mesmo facto, não se verificando, assim, qualquer violação do artigo 29º, nº 5, da Constituição'.
É esta jurisprudência que, mais uma vez, agora há que reiterar.
III – Decisão Assim, e pelo exposto, decide-se conceder provimento ao recurso e, em consequência, ordena-se a reformulação do despacho recorrido, substituindo-se por outro em conformidade com o que agora se decide sobre as questões de constitucionalidade suscitadas. Lisboa, 12 de Janeiro de 1999- José de Sousa e Brito Messias Bento Bravo Serra Maria dos Prazeres Beleza (com dispensa de vistos) Guilherme da Fonseca Luis Nunes de Almeida