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Processo n.º 924/98 Conselheiro Messias Bento
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. J... interpõe recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, do acórdão do Supremo Tribunal Militar, de 1 de Outubro de 1998.
Pretende o recorrente que se julgue inconstitucional o artigo 193º, n.º 1, do Código de Justiça Militar, que prevê o crime de infidelidade (peculato militar), pelo qual o tribunal militar de 1ª instância o condenou na pena de seis meses de prisão (substituída por igual tempo de prisão militar, nos termos do artigo 1º da Lei n.º 58/77, de 5 de Agosto), lançando, para tanto, mão do artigo 375º do Código Penal.
É a seguinte a conduta do recorrente, que o tribunal militar de 1ª instância puniu: tendo-lhe sido confiado, na qualidade de fiel de abastecimento do Aquário Vasco da Gama, um cartão GALP, para o utilizar em serviço do dito Aquário, utilizou-o para, com ele, pagar gasolina, no valor de 191.400$00, para abastecer o seu próprio automóvel - automóvel que, assim abastecido, utilizou, de umas vezes, em proveito próprio, e, de outras, ao serviço do Aquário, mas sempre sem autorização. O Supremo Tribunal Militar, porém, anulou o julgamento da 1ª instância, com fundamento na existência de 'deficiências e/ou obscuridades no apuramento da matéria de facto' que integram 'a nulidade essencial prevista na alínea c) do artigo 458º do Código de Justiça Militar'.
O recorrente concluiu como segue as alegações que apresentou neste Tribunal: a). O artigo 193º, n.º 1, do Código de Justiça Militar cria um tipo legal de crime autónomo exclusivamente em função da qualidade de militar dos seus potenciais destinatários, ignorando, em absoluto, o conteúdo funcional das tarefas que lhes são cometidas; b). gerando uma situação de desigualdade, em termos punitivos, mais gravosa, para aqueles, comparativamente com o regime geral inerente ao estatuído no artigo 375º do Código Penal, onde se prevê e pune o crime de peculato; c). desigualdade de tratamento essa que se funda exclusivamente na condição social dos seus destinatários, não recolhendo qualquer um dos elementos viabilizadores e legitimadores de aplicação de tratamento desigual; d). confrontando, em consequência, o citado artigo 193º, n.º 1, do Código de Justiça Militar, o princípio da igualdade e, inerentemente, a letra e o espírito do artigo 13º da Constituição da República Portuguesa; e). situação que, aliás, se alastra ao n.º 2 do mesmo artigo 193º do mesmo Código de Justiça Militar, como já foi profusamente afirmado, razão pela qual se excluiu o mesmo do objecto do presente recurso; f). revelando-se absolutamente infundados os temores revelados nos autos pelo Supremo Tribunal Militar de, com a declaração de inconstitucionalidade preconizada, se criar um vazio sancionatório; g). temores que, salvo melhor opinião, escondem outros, esses sim reais - o da demonstração da efectiva incompetência em razão da matéria do tribunal militar para apreciação da presente causa. Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso, declarando-se inconstitucional a norma do artigo 193º, n.º 1, do Código de Justiça Militar, com as legais consequências [ ...] .
Alegou também o Procurador-Geral Adjunto em exercício neste Tribunal, que suscitou a questão prévia do não conhecimento do recurso nos seguintes termos:
1º. Tendo o Supremo Tribunal Militar anulado o julgamento efectuado em 1ª instância, com fundamento em deficiência da matéria de facto apurada, é prematura e inútil a apreciação da constitucionalidade da norma incriminadora, já que só após a realização do novo julgamento será possível - fixada que seja a matéria de facto - enquadrar e qualificar juridicamente esta.
2ª. Termos em que - atenta a inquestionável função instrumental dos recursos de constitucionalidade - não deverá conhecer-se do recurso interposto pelo arguido.
Ouvido o recorrente sobre a referida questão prévia, veio ele dizer: a) o presente recurso revela-se absolutamente imprescindível em termos de evitar a formação de caso julgado sobre a pronúncia de não inconstitucionalidade vertida no Acórdão recorrido proferido pelo Supremo Tribunal Militar; b) o que faria, desde logo, precludir um dos mais elementares meios de defesa do ora recorrente; c) sendo certo que, a consequência de uma possível declaração de inconstitucionalidade da norma, como peticionado no presente recurso, teria por efeito e por mérito, evitar que o recorrente fosse submetido a julgamento, pois que a mesma norma é a invocada como determinante da dedução de acusação – nunca se podendo, desde logo, cognominar de potencial ou efectivamente inútil o julgamento do recurso que nos ocupa. Termos em que deve o presente recurso seguir os seus legais tramites até final, negando-se, em consequência, provimento à questão prévia suscitada pelo Ministério Público nas suas contra-alegações.
2. Cumpre decidir. E decidir, desde logo, se deve conhecer-se do recurso.
II. Fundamentos:
3. O artigo 193º, n.º 1, do Código de Justiça Militar (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 141/77, de 9 de Abril), que o recorrente pretende ver julgado inconstitucional, dispõe como segue:
1. Aquele que, integrado ou ao serviço das forças armadas, tendo em seu poder ou
à sua responsabilidade, em razão das suas funções militares, permanentes ou acidentais, dinheiro, valores ou objectos que lhe não pertençam, os distrair de suas legais aplicações em proveito próprio ou alheio, será condenado: a). A prisão maior de dezasseis a vinte anos, se o prejuízo for superior a
1.500.000$00; b). A prisão maior de doze a dezasseis anos, se o prejuízo, não excedendo
1.500.000$00, for superior a 120.000$00; c). A prisão maior de oito a doze anos, se o prejuízo, não excedendo 120.000$00, for superior a 40.000$00; d). A prisão maior de dois a oito anos, se o prejuízo, não excedendo 40.000$00, for superior a 8.000$00; e). A presídio militar de dois a quatro anos, se o valor não exceder 8.000$00.
2. Se o prejuízo não exceder 1.000$00, apenas haverá lugar a procedimento disciplinar.
Regista-se que os valores constantes das transcritas alíneas a) a e) do n.º 1 são os fixados pelo artigo 3º do Decreto-Lei n.º 81/82, de 15 de Março.
O crime de infidelidade no serviço militar (previsto e punido pelo referido artigo 193º) tem paralelo no crime de peculato, previsto e punido pelo artigo
375º do Código Penal, que está assim redigido:
1. O funcionário que ilegitimamente se apropriar, em proveito próprio ou de outra pessoa, de dinheiro ou qualquer coisa móvel, pública ou particular, que lhe tenha sido entregue, esteja na sua posse ou lhe seja acessível em razão das suas funções, é punido com pena de prisão de um a oito anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2. Se ao valores ou objectos referidos no número anterior forem de diminuto valor, nos termos da alínea c) do artigo 202º [ ou seja: se não exceder uma unidade de conta avaliada no momento da prática do facto] , o agente é punido com pena de prisão até três anos ou com poena de multa.
3. Se o funcionário der de empréstimo, empenhar ou, de qualquer forma, onerar os valores ou objectos referidos no n.º 1, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
O conceito de funcionário para os efeitos do artigo 375º do Código Penal é dado pelo artigo 386º do mesmo Código, cuja redacção é a seguinte:
1. Para efeitos da lei penal a expressão funcionário abrange: a). O funcionário civil; b). O agente administrativo; e c). Quem, mesmo provisória ou temporariamente, mediante remuneração ou a título gratuito, voluntária ou obrigatoriamente, tiver sido chamado a desempenhar ou a participar no desempenho de uma actividade compreendida na função pública administrativa ou jurisdicional, ou, nas mesmas circunstâncias, desempenhar funções em organismos de utilidade pública ou nelas participar.
Não obstante o recorrente indicar, pedindo que seja julgado inconstitucional, todo o artigo 193º do Código de Justiça Militar, atrás transcrito, apenas a alínea b) do n.º 1 desse artigo 193º foi aplicada pela sentença da 1ª instância. E, ainda assim, tão-só na sua previsão, que não na sua estatuição. No tocante à estatuição da norma, a sentença desaplicou a referida alínea b), com fundamento na sua inconstitucionalidade, pois, como ela contém 'uma moldura penal de tal modo distanciada da moldura penal estabelecida pelo Código Penal para o crime de peculato praticado por funcionário' - disse a sentença - não pode a mesma
'deixar de considerar-se violadora do princípio da igualdade estabelecido no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa'. E, por isso, como atrás se referiu, a dita sentença, lançou mão do artigo 375º do Código Penal, que também se transcreveu, e aplicou ao recorrente a pena de seis meses de prisão, que substituiu por igual tempo de prisão militar, nos termos do artigo 1º da Lei n.º
58/77, de 5 de Agosto. Para o efeito de saber qual a pena aplicável, socorreu-se, assim, a sentença da penalidade prevista no referido artigo 375º, e não da cominada pela mencionada alínea b) do n.º 1 do artigo 193º do Código de Justiça Militar, em que enquadrou a conduta do recorrente.
4. Dito isto, cabe perguntar: deverá o Tribunal conhecer do presente recurso? Para responder à pergunta assim formulada, não basta constatar que a sentença da
1ª instância aplicou, na medida apontada, a mencionada alínea b) do n.º 1 do artigo 193º do Código de Justiça Militar. Tem antes que verificar-se se o acórdão recorrido (o acórdão do Supremo Tribunal Militar, de 1 de Outubro de
1998) também a aplicou nessa mesma medida ou noutra.
Pois bem: adianta-se já que o acórdão recorrido, que - lembra-se - anulou o julgamento feito pelo tribunal de 1ª instância, com fundamento na existência de
'nulidade essencial de deficiência e/ou obscuridade no julgamento da matéria de facto', não aplicou a norma que consta da mencionada alínea b) do n.º 1 do artigo 193º do Código de Justiça Militar. Na verdade, para concluir pela existência da apontada nulidade, esse aresto argumentou com o facto de, 'na decisão recorrida, se não ter determinado a quantidade de gasolina que foi gasta pelo réu no seu automóvel, em proveito próprio, e o quantum gasto pelo mesmo réu, utilizando a sua viatura ao serviço do Aquário Vasco da Gama, o que se tornava necessário, em seu entender, para o enquadramento da conduta em apreço nas diversas alíneas do n.º 1 do referido artigo 193º do Código de Justiça Militar'. E acrescentou que, 'quando o réu gasta a gasolina em proveito próprio, poderá estar a consumar o crime previsto no citado artigo 193º do Código de Justiça Militar, mas quando a gasta, utilizando, sem autorização, o seu automóvel ao serviço do Aquário Vasco da Gama, estará, eventualmente, a cometer o ilícito previsto no artigo 194º do citado Código'
Como se vê, o acórdão recorrido, de um lado, admitiu que parte da conduta do arguido integrará, muito provavelmente, um outro tipo de ilícito; e, de outro, que, na parte restante, essa mesma conduta pode integrar o crime previsto e punível pelo mencionado artigo 193º. Admitiu que pode integrar; não que integra. Ou seja: não aplicou tal norma no julgamento do caso. Compreende-se que o Supremo Tribunal Militar, não tendo julgado de mérito, se tenha limitado a admitir a possibilidade de o artigo 193º do Código de Justiça Militar vir a ser convocado para o julgamento do caso.
É que, só depois de cabalmente apurados, nos termos por ele indicados, os factos imputados ao arguido, a matéria de facto se pode considerar fixada. E só então chega o momento de proceder ao seu enquadramento jurídico-penal. Até lá, apenas pode admitir-se que a conduta imputada ao arguido no libelo acusatório é susceptível de vir a determinar a sua condenação por determinado crime. Sendo isto assim, não tem qualquer sentido, nem utilidade, apreciar, neste momento, a constitucionalidade da norma constante do artigo 193º do Código de Justiça Militar (designadamente, da alínea b) do seu n.º 1), na parte em que aí se prevê o crime de peculato militar como crime essencialmente militar. Fazê-lo, era julgar uma pura questão académica, pois nenhuma garantia existe de que o julgamento que sobre ela o Tribunal viesse a emitir pudesse vir as repercutir-se na decisão do caso: desde logo, porque, como sublinha o Ministério Público, nada garante que, 'na repetição do julgamento, o arguido venha a ser condenado, e muito menos que se venha a julgar preenchido o referido tipo de crime'. Ora, os recursos de constitucionalidade - tem-no este Tribunal sublinhado repetidamente - desempenham uma função instrumental, por isso que só se justifique que neles se emita um juízo sobre a constitucionalidade de determinada norma legal, se esse seu julgamento for susceptível de vir a influir na decisão do caso de que emergiu o recurso.
A conclusão a extrair de quanto se disse é que o Tribunal não deve conhecer do presente recurso.
5. É certo que o Supremo Tribunal Militar, a dado passo do acórdão aqui sob recurso, se debruçou sobre a questão da constitucionalidade do mencionado artigo
193º, dizendo que nele se 'prevê e pune a infidelidade ao serviço militar, isto
é, a violação dos deveres militares de fidelidade e lealdade, a ofensa à segurança e à disciplina das Forças Armadas, contendo, por isso, um ‘plus’ de censura ética que não cabe na configuração do crime comum'. E acrescentou:
É, pois, evidente e justificada a distinção entre o preceito em referência e o correspondente aplicável aos funcionários públicos nas suas finalidades e nos interesses que visam proteger e acautelar, não havendo, nessa medida, qualquer inconstitucionalidade daquela norma do Código de Justiça Militar.
Esta afirmação sobre a compatibilidade do artigo 193º do Código de Justiça Militar com a Constituição, no contexto do acórdão recorrido, surge, porém, como um mero obiter dictum. Ela é, por isso mesmo, insusceptível de abrir a via do recurso de constitucionalidade. De facto, para o que aqui agora importa, só cabe recurso para este Tribunal, quando a decisão de que se recorre aplica uma norma legal, não obstante ter sido arguida a sua desconformidade com a Constituição, no processo. Num tal caso, o julgamento de constitucionalidade feito pelo tribunal recorrido é, na decisão, uma ratio decidendi da aplicação da norma que constitui objecto do recurso.
A conclusão de que se não deve conhecer do recurso não é, assim, abalada pelo facto de o tribunal recorrido ter afirmado a compatibilidade do referido artigo
193º do Código de Justiça Militar com a Constituição.
III. Decisão: Pelos fundamentos expostos, decide-se:
(a). não conhecer do recurso;
(b). condenar o recorrente nas custas, com 8 unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 13 de Janeiro de 1999 Messias Bento Alberto Tavares da Costa José de Sousa e Brito Maria dos Prazeres Pizarro Beleza José Manuel Cardoso da Costa