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Proc. nº. 358/97
1ª Secção Rel.: Consº Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. S... foi condenado, por acórdão do Tribunal Militar Territorial de Coimbra, de 11 de Julho de 1996, pela prática de cinco crimes de insubordinação, sendo dois de insubordinação por desobediência p. e p. pelo artigo 72º, alínea c) do Código de Justiça Militar na pena de cinco meses de prisão militar, dois de insubordinação por palavras e ameaças p. e p. pelo artigo 79º, nº. 1, alínea a) do Código de Justiça Militar na pena de cinco meses de prisão militar e um crime de insubordinação por ofensa corporal em tempo de paz p. e p. pelos artigos 75º, alínea a) e 76º do Código de Justiça Militar na pena de sete meses de prisão militar. Calculado o cúmulo das penas aplicadas nos termos dos artigos 40º do Código de Justiça Militar e 78º do Código Penal, foi o arguido condenado na pena única de oito meses de prisão militar. O arguido interpôs recurso para o Supremo Tribunal Militar, apresentando nas alegações as seguintes conclusões:
' 1. Em conformidade com o relatório de exame às faculdades mentais, o arguido actuou sem dolo pelo que não são puníveis os factos de que é acusado, pedindo pois a sua absolvição.
2. Se assim não for decidido, entende, no entanto, relativamente aos dois crimes de insubordinação por desobediência, que a acusação deverá ser julgada improcedente.
3. Mais entende que nos factos em questão não se verifica a circunstância agravante de 'Tropa Reunida', ou a mesma improcede em virtude de não se encontrar suficientemente explicitada no libelo acusatório.
4. As diferentes infracções deverão ser consideradas um único crime continuado.
5. A pena disciplinar de 20 (vinte ) dias de prisão disciplinar agravada já aplicada ao arguido equivale a 40 (quarenta) dias de prisão disciplinar, pelo que é este quantitativo que deverá ser descontado na pena criminal que eventualmente venha a ser decidida.
6. Em consideração do exposto considera excessiva a pena de 8 (oito) meses de presidio militar que lhe foi aplicada, entendendo o arguido que ela deverá ser reduzida, caso não seja decidida a sua absolvição, como julga ser de justiça'(...). O Supremo Tribunal Militar, por acórdão de 28 de Novembro de 1996, revogou o acórdão recorrido, reconhecendo, na sequência do alegado pelo recorrente, que não podia ter-se por verificada a circunstância qualificativa 'em presença de tropa reunida' e procedeu, nos termos do artigo 418º, nº. 2 do CJM, à convolação da acusação de crime qualificado de insubordinação por ofensas corporais em crime não qualificado, condenando o recorrente por cada um dos dois crimes de insubordinação por desobediência em cinco meses de prisão militar, por cada um dos dois crimes de insubordinação por palavras e ameaças em cinco meses de prisão militar e pelo crime de insubordinação por ofensas corporais em doze meses de presídio militar, aplicando a pena unitária - uma vez efectuado o cúmulo jurídico – de vinte meses de presídio militar, nos quais deverão ser descontados os dias de prisão disciplinar agravada já sofrida pelo arguido. O arguido interpôs recurso de constitucionalidade do acórdão do Supremo Tribunal Militar para o Tribunal Constitucional nos termos dos artigos 69º, 70º, nº. 1, alínea g), 72º, nº. 1, alínea b) e 78º da Lei do Tribunal Constitucional
(anterior redacção) por ter sido aplicada a norma do artigo 418º, nº. 2 do CJM com o sentido em que foi julgada inconstitucional pelo Acórdão do Tribunal Constitucional nº. 173/92, de 7 de Maio de 1992 e ainda para apreciação da conformidade à Constituição da norma contida no artigo 440º, nº. 2, alínea a) do Código de Justiça Militar, aprovado pelo Decreto-Lei nº. 141/77, de 9 de Abril. Por despacho do Juiz Relator, proferido em 7 de Janeiro de 1997, não foi, admitido o recurso com o fundamento, em síntese, de a norma do artigo 418º, nº.
2 do CJM não ter sido aplicada com o sentido em que foi julgada inconstitucional no mencionado acórdão do Tribunal Constitucional e pelo facto de a desconformidade da norma do artigo 440º, nº. 2, alínea a) do mesmo Código não ter sido suscitada, podendo e devendo sê-lo, anteriormente à decisão recorrida. Deste despacho reclamou o arguido para o Tribunal Constitucional que, pelo seu Acórdão nº 386/97, deferiu, parcialmente, a reclamação, admitindo o recurso, quanto à questão da constitucionalidade do artigo 440º nº 2 alínea a) do CJM, na interpretação que lhe foi dada pelo STM. Nas suas alegações, o recorrente formulou as seguintes conclusões:
'(...) 1ª - O recorrente foi julgado e condenado no Tribunal Militar Territorial de Coimbra em concurso real de infracções em cinco meses de prisão militar pela prática de cada um dos dois crimes de insubordinação ou desobediência, p. e p. pelo Artº 72º al. c); cinco meses de prisão militar pela prática de cada um dos dois crimes de insubordinação por palavras e ameaças, p. e p. pelo Artº 79º nº 1 al. a); em sete meses de prisão militar, pela prática do crime de insubordinação por ofensa corporal, p. e p. pelos Artºs 75º al. a) e 76º, todos do CJM , e, em cúmulo jurídico, destas penas, foi aplicada ao réu recorrente a pena unitária de oito meses de prisão militar.
2ª - O Tribunal da 1ª Instância considerou estas infracções como praticadas perante tropa reunida e, em conformidade, enquadrou a condenação pela prática de crimes qualificados.
3ª - O réu sofre de debilidade mental, sem crítica nem avaliação suficiente dos seus actos, tendo uma imputabilidade atenuada.
4ª - Mais entendeu aquele Tribunal militarem a favor do réu as atenuantes 5ª - confissão parcial espontânea e 11ª - imperfeito conhecimento do mal do crime e dos seus maus resultados – do Artº 20º do CJM e que o especial valor desta
última circunstância, por mitigar de forma acentuada a culpa do réu, justificava o uso da faculdade de atenuação extraordinária da pena prevista no Artº 39º do Código em referência.
5ª - Porém, o recorrente e entendeu e entende que nos factos em questão não se verifica a circunstância agravante 'tropa reunida' ou a mesma improcede, não só porque não se encontra suficientemente explicitada no libelo acusatório como o local onde ocorreram, num transporte público, não tem qualquer nexo de ligação com o serviço militar.
6ª - Entretanto foi publicado o Acórdão nº 967/96, de 11/07/1996, proferido no Pº nº 166/95 – 1ª Secção que julgou inconstitucional, por violação dos Artºs 18º nº 2 da CRP, a norma do Artº 16º do CJM, na interpretação do Acórdão recorrido, segundo o qual o conceito tropa reunida é preenchido pela simples presença, ainda que ocasional e fortuita, no local da prática do crime, de dez ou mais militares, mesmo quando tal local não seja local de serviço – no caso em apreço um jantar de confraternização entre militares levado a efeito num restaurante de todo alheio à Instituição Militar.
7ª - O STM veio a decidir que efectivamente não se verificava no caso a agravante de 'tropa reunida', por razões diversas da falta de conexão com o serviço do local e dos factos praticados, mas por considerar que constituindo a referida circunstância qualificativa um verdadeiro elemento típico do crime, torna-se necessário que o agente, em relação a ela, tal como em relação com os demais elementos constitutivos do crime, tenha actuado com dolo ou seja, que tenha agido voluntária e conscientemente que dez ou mais militares se estavam a aperceber dos seus comportamentos ilícitos quando os levava a cabo.
8ª - Em consequência, em todos os crimes imputados ao réu recorrente e pelos quais foi condenado não se verificava a circunstância qualificativa 'em presença de tropa reunida' pelo que a conduta do réu ora recorrente integra tão só os crimes de insubordinação simples, p. e p. pelos artºs 72º nº 1 d), 79º nº 1 al. b) e 75º al. b) e 76º do CJM, para os quais convolou a acusação.
9ª Decidiu ainda o STM, tal como havia decidido o TMT de Coimbra , que concorrem a favor do réu as atenuantes 5ª (confissão parcial espontânea) e 11ª (imperfeito conhecimento do mal do crime e dos seus maus resultados) do Artº 20º do CJM; o especial valor e o relevo da última, por mitigar de forma acentuada a culpa daquele, justifica que se faça uso da faculdade de atenuação extraordinária das penas aplicáveis, susbstituindo-as pelas dos escalões imediatamente inferiores.
10ª - Contudo, o STM tendo considerado menos graves os crimes praticados pelo réu recorrente, acabou por condená-lo em quatro desses crimes com igual pena que havia sido condenado pelo TMT de Coimbra e no crime de insubordinação por ofensa corporal, agora p. e p. pelo Artº 75º al. b) e 76º do CJM decidiu agravar a pena de 7 meses de prisão aplicada ao crime qualificado para 12 meses de presídio militar, pelo crime não qualificado e, em cúmulo jurídico, agravar a pena unitária de 8 meses de prisão militar para 20 meses de presídio militar.
11ª - Para tanto, o STM lançou mão da norma do Artº 440º nº 2 al. a) do CJM com uma interpretação que é claramente inconstitucional, por violação do Artºs 13º nº 1 e 32º nº 1 da Constituição, face ao disposto na proibição de reformatio in pejus constante do Artº 409º do C.P..
12ª - O réu recorrente viu-se assim confrontado com uma condenação surpresa, quando só ele recorreu por que não por não se conformar com a pena aplicada pelo Tribunal de 1ª Instância, onde o Ministério Público (aqui Promotor de Justiça) se conformou com o acórdão recorrido.
13ª - Com base nos mesmos factos, mantendo-se as mesmas condições de punibilidade por imputabilidade atenuada e as mesmas circunstâncias atenuantes dadas como provadas pelo Tribunal 'a quo' que justificariam a atenuação extraordinária da pena, é um absurdo que a uma convolação para um crime menos grave por não se verificar a circunstância qualificativa 'em presença de tropa reunida' resulta uma gravíssima agravação da pena.
14ª - Em conformidade com o disposto no Artº 409º do CPP sobre a proibição da reformatio in pejas, o Tribunal Superior, actualmente, só pode agravar a pena de multa, se a situação económica e financeira do arguido tiver entretanto melhorado de forma sensível e a aplicação de medida de segurança de internamento e nunca agravar penas de privação da liberdade.
15ª - As normas constantes nas alíneas a) e d) do nº 2 do Artº 440º do CJM são inconstitucionais, embora neste recurso apenas esteja em causa a citada norma da alínea a), por violação do princípio da igualdade e da proporcionalidade, constitucionalmente garantidas nos Artºs 13º, 18º nº 2 e 32º nº 1.
16ª - O ordenamento jurídico-penal da Nação é um todo, não obstante a especificidade dos seus diversos ramos, mas como prevalência do direito processual comum, como matriz que é.
17ª - A norma do Artº 440º nº 2 al. a) do CJM permite um tratamento desigual aos cidadãos sujeitos a julgamento nos Tribunais Militares, pelo que é inconstitucional por violação do Artº 13º da Constituição.
18ª - Esta supra citada norma colide igualmente com o direito de defesa constitucionalmente consagrado, pois a simples possibilidade constante da sua previsão de o arguido poder ver a sua pena agravada, é uma verdadeira ameaça, inibidora do recurso a todos os meios de defesa constitucionalmente consagrados, entre eles o recurso para o Tribunal Superior, sem medo ou receio de ser por isso prejudicado, sendo por isso inconstitucional por violação do Artº 32º nº 1 da Constituição .
19ª - O sentido da proibição da reformatio in pejus é o de obstar a que o arguido veja alterada a sentença penal, em seu prejuízo, quando só a defesa recorreu, ou quando também o MP recorreu, mas no exclusivo interesse do arguido.
20ª - Mesmo no caso de diversa qualificação jurídico-criminal dos factos pelo Tribunal Superior não é agora possível a reformatio in pejus.
E se tal proibição se aplica mesmo no caso da qualificação de fazer para crime mais grave, por maioria de razão tem de aplicar-se quando a diversa qualificação foi para crime menos grave.
Veja-se entre outros, o Acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ de 7/6/1995; DR I-A Série de 6/7/95 e o Acórdão do STJ de 24/1/90; CJ, XV, Tomo I, 19.
21ª - O Tribunal Superior dará aos factos o tratamento jurídico-criminal que julgar adequada, mas se só o arguido tiver recorrido, ou o MP mas no exclusivo interesse da defesa, as sanções constantes da decisão recorrida não poderão ser modificação em prejuízo do arguido.
22ª - Para que possa operar-se nos recursos penais a modificação das sanções em prejuízo dos arguidos terá que haver agora recurso interposto pela acusação.
23ª - Efectivamente a norma do Artº 440º nº 2 al. a) do CJM é manifestamente inconstitucional, por violação dos Artºs 12º nº 1, 13º, 18º, 32º nº1 e 207º da Constituição, pois ofende os princípios da universalidade, de igualdade e da proporcionalidade, atento o exposto no correspondente Artº 409º do CPP.
24ª - A citada norma da al. a) do nº 2 do Artº 440º do CJM, permite, por um lado, tratamento desigual para os cidadãos submetidos ao CJM, violando o Artº
13º da Constituição e, por outro, colide com o direito de defesa constitucionalmente consagrado do Artº 32º da Constituição, introduzindo um factor inibidor da utilização do meio de defesa que é o recurso para o Tribunal Superior, em virtude do medo ou receio, por parte do arguido, de poder ver a sua pena agravada.
25ª Um cidadão, só pelo facto de ser militar ou estar sujeito ao foro militar, não pode ver restringidos os seus direitos constitucionalmente protegidos, pelo que a norma do Artº 440º nº 2 al. a) do CJM, desrespeitada aos princípios da universalidade, da igualdade e da proporcionalidade, violando os Artºs 12º nº 1,
13º 18º, 32º nº 1 e 207º da Constituição '(...).
Em contra-alegações, o Ministério Público sustenta a procedência do recurso, concluindo:
'Deve julgar-se inconstitucional, por violação do disposto no artigo 32º, nºs. 1 e 5 da Constituição, a norma constante do artigo 440º, nº. 2, alínea a), do Código de Justiça Militar, na interpretação acolhida na decisão recorrida.'
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
2. O recorrente sustenta a inconstitucionalidade da norma constante do artigo
440º, nº. 2, alínea a) do Código de Justiça Militar, aprovado pelo Decreto-Lei nº. 141/77, de 9 de Abril, segundo a interpretação que permite a agravação da pena concreta aplicada pelo tribunal recorrido quando o tribunal superior qualifique diversamente os factos, quer a qualificação respeite à incriminação, quer a circunstâncias modificativas da pena, e ainda que em termos mais favoráveis para o arguido, nos casos em que o recurso tenha sido interposto somente pelo arguido, pelo promotor de justiça no exclusivo interesse da defesa ou pelo arguido e pelo promotor nesse exclusivo interesse.
Nas suas alegações o recorrente invoca que a norma impugnada viola as garantias de defesa do arguido, o princípio da igualdade e da proporcionalidade (artigos 32º, nºs. 1 e 5, artigo 13º e 18º, nº. 2 da Constituição).
Dispõe a norma em apreço que não se verifica a proibição da reformatio in pejus, tal como ela é caracterizada no nº 1 do mesmo preceito,
'quando o tribunal qualifica diversamente os factos, quer a qualificação respeite à incriminação, quer a circunstâncias modificativas da pena'.
Pode, assim , o tribunal agravar a pena imposta ao arguido, em recurso apenas interposto por este e/ou pelo Ministério Público no exclusivo interesse daquele.
Interessa, preliminarmente e em breve nota, apontar a evolução do instituto da reformatio pejus na justiça penal comum e na justiça militar ( para maiores desenvolvimentos, cfr. Acórdão nº 173/92 in 'Acórdãos do Tribunal Constitucional', 22º vol. p. 357) Dividida a jurisprudência sobre a admissibilidade da reformatio in pejus no domínio do CPP29, o Assento do STJ de 5 de Maio de 1950 firmou a regra de que o tribunal pode agravar a pena em recurso penal ainda que apenas interposto pelo arguido. Para assim entender os poderes de cognição do tribunal superior, o STJ fez sobrelevar o direito punitivo do Estado que imporia que os tribunais superiores pudessem aplicar livremente as sanções julgadas adequadas. Mais tarde, o artigo 667º do CPP, com a redacção que lhe deu a Lei nº 2139 de 14 de Março de 1969, afirmou o princípio da proibição da reformatio in pejus mas dela ressalvou os casos previstos nos §§ 1º e 2º. Finalmente, o CPP actual, no artigo 409º, proibiu a reformatio in pejus em termos mais rigorosos, ressalvando apenas os casos estabelecidos no nº 2 do mesmo artigo. Outra foi a evolução do instituto no âmbito da justiça militar. O CJM de 1925 proibia, no seu artigo 532º, a reformatio in pejus, proibição que se manteve sem ressalvas até que, com a redacção dada àquele preceito pelo DL nº
46206 de 27/2/1965, o regime inflecte e admite a reformatio sem qualquer reserva. Por fim, o actual CJM regulou no artigo 440º a reformatio in pejus em termos muito semelhantes ao que o fizera o CPP29, no citado artigo 667º, na redacção da Lei nº 2139. A tensão entre dois valores - aquele direito punitivo do Estado, de que decorre o poder dos juizes de aplicarem livremente as sanções adequadas, e as garantias de defesa dos arguidos - foi o pano de fundo destas duas linhas de evolução de diferente traçado, como diferentes foram os respectivos pontos de partida e chegada. A sobrevalorização ora de um ora de outro radica nas concepções políticas
(gerais e criminais) dominantes de cada época e, em cada um dos domínios (o da justiça militar e o da justiça penal comum), nas exigências específicas do momento. Se pode estranhar-se a persistência de uma concepção liberal na justiça militar até meados da década de 60 em contraste com a que, na justiça comum, perpassa no Assento do STJ de 5 de Maio de 1950, já melhor se compreende que, na primeira, especiais e conhecidas razões conjunturais tivessem determinado uma alteração radical do regime do instituto, bem mais gravoso para o arguido do que o seria consagrado em 1969 no artº 667º do CPP. De todo o modo, é patente, a partir de então, uma maior limitação das excepções
à proibição da reformatio, o que traduz a acentuação progressiva do peso relativo das garantias dos arguidos, em ambos os domínios, quedando-se hoje, contudo, o da justiça militar num patamar ainda inferior dessa evolução, comparativamente ao da justiça comum, com um regime idêntico ao que neste vigorou de 1969 a 1988. A questão mereceu já pronúncia do Tribunal Constitucional no cotejo entre as garantias de defesa do arguido tuteladas pelo artº 32º nºs 1 e 5 da CRP e a proibição da reformatio in pejus (cfr. Acórdãos nºs 22/96 e 499/97 in Diário da República, II Série, de 17/5/96 e 21/10/97, respectivamente). A apreciação tem passado pela resolução, primeiro, da questão de saber se a CRP proíbe em absoluto a reformatio in pejus e, num segundo momento, adquirida uma resposta negativa, daquela outra de saber que limites ou excepções à proibição - e em que termos - se conformam à Lei Fundamental. Fundamento determinante da tese que rejeita a proibição absoluta da reformatio in pejus é o de que ela conflituaria com o direito ao recurso da acusação e a realização da justiça (cfr. Acórdão nº 499/97) entendimento que se não vê razão aqui para abandonar. Já, porém, se decidiu que os limites à proibição se têm que conter em terreno que não constranja em termos inadmissíveis as garantias de defesa do arguido, o princípio do contraditório e o direito de recurso. Por isso se não julgou inconstitucional a norma do artigo 447º do CPP29, aplicável por força do artigo 667º §1º, nº 1 do mesmo diploma, quando interpretada em termos de vincular o tribunal à audição do arguido sobre a modificação da qualificação jurídica dos factos, em recurso apenas interposto pelo arguido (Acórdão nº 22/96). Deste aresto transcreve-se o seguinte trecho:
'Em síntese, pois, e citando uma vez mais o Acórdão nº 173/92: 'a faculdade de alteração da incriminação constante da acusação, quando consentida sem que o arguido tenha sido oportunamente prevenido da possibilidade de tal alteração, de modo a dar-lhe oportunidade de modificar a sua defesa tendo em conta o novo enquadramento jurídico, pode implicar um grave prejuízo para a defesa, em violação do princípio constante do artigo 32º nº 1 da Constituição'. Tal violação, porém, só existe se não se previr um mecanismo processual capaz de permitir ao arguido que se defenda de uma nova incriminação, muito principalmente quando a esta corresponder pena mais grave do que a que lhe foi aplicada na sentença recorrida. Por conseguinte, desde que o arguido seja prevenido da possibilidade de uma diferente qualificação juridico-penal dos factos constantes da pronúncia, e desde que, quanto a ela, se lhe dê oportunidade de defesa, o tribunal pode proceder a essa diferente qualificação e condená-lo por crime diverso ou em pena mais grave, sem que viole o princípio das garantias de defesa ou qualquer outro princípio ou preceito constitucional
(maxime, o princípio do contraditório ou o artigo 18º da Constituição)'. Se o que estava, então, em causa era, fundamentalmente, o princípio do contraditório, com o objectivo de evitar que o arguido fosse surpreendido com uma alteração da qualificação jurídica dos factos, já no Acórdão. nº 499/97 o caso impôs uma perspectiva parcialmente diversa, com especial acento no direito de recurso, pois a modificação do decidido em 1ª instância não se operara por uma inesperada alteração de uma tal qualificação mas pela supressão de um perdão que fora aplicado no acórdão recorrido. Aí se escreveu:
'Não decorre, obviamente, da Constituição uma proibição absoluta da reformatio in pejus, pois isso seria conflituante com o direito ao recurso da acusação e com a realização da justiça. Mas tem de ser garantida, num certo grau, a estabilidade das sentenças judiciais. A sua revogabilidade não pode ser referida a um plano de justiça absoluta, mas apenas ao plano do recurso e da recorribilidade (cf. Bettiol, ob. Cit. p. 307). O próprio direito ao recurso pressupõe a verificação de requisitos determinados, os quais justificam uma reapreciação dos factos provados ou do direito aplicado dentro da matéria recorrida, sendo o recurso a emanação de um poder não ilimitado de controlo pelos tribunais superiores das decisões proferidas em 1ª instância. Ora, a proibição da reformato in pejas é reclamada pela plenitude das garantias de defesa, quer porque a reformatio in pejus poderia surgir inesperadamente, quer porque restringiria gravemente as condições de exercício do direito ao recurso.'. E mais adiante:
'(...) a possibilidade de uma revogação oficiosa de aplicação de uma amnistia ou um perdão no âmbito de um recurso accionado pela defesa condiciona a interposição desse recurso pelo arguido de modo intolerável, pois torna-o profundamente arriscado, afectando, consequentemente, a possibilidade de realização da justiça no caso'.
À questão que se coloca no presente recurso subjaz uma situação diversa da que foi tratada no Acórdão nº 22/96. Em dois aspectos fundamentais: Por uma lado, a alteração da qualificação jurídica dos factos (as novas incriminações) não foi oficiosamente determinada pelo tribunal de recurso, mas suscitada pelo próprio recorrente na impugnação do acórdão condenatório do Tribunal Militar Territorial de Coimbra. Por outro, tal alteração traduziu-se num enquadramento juridico-criminal dos factos a que o CJM faz corresponder medidas legais da pena com molduras substancialmente mais favoráveis para o arguido do que aquelas a que se reportam as penas concretamente impostas em 1ª instância muito embora as penas parcelares aplicadas tenham sido iguais nos dois primeiros casos e consideravelmente mais elevada no terceiro, determinando, em cúmulo jurídico, uma pena unitária ainda mais acentuadamente gravosa (8 meses de presídio militar na 1ª instância e 22 meses de presídio militar no acórdão recorrido). O STM procedeu, pois, a uma reformatio in melius quanto à qualificação jurídica dos factos (retirando das incriminações as circunstâncias modificativas de
'presença de tropa reunida') e a uma reformatio in pejus no que concerne a uma das penas parcelares e à pena unitária. No quadro que assim se desenha parece evidente que não pode convocar-se - tal como o fez o citado Acórdão nº 22/96 - a exigência de prevenção do arguido perante as novas qualificações, imposta pelas garantias de defesa (e, nestas, pelo direito ao contraditório) que o processo penal deve assegurar de acordo com o disposto no artigo 32º nº 1 da CRP. Isto pela simples razão de ter sido o próprio arguido recorrente quem requereu a convolação efectuada, do mesmo passo que resultaria absurda qualquer advertência ao arguido da plausibilidade da agravação da pena, deferida que fosse a pretendida convolação.
É, pois, noutra dimensão que a questão se deve colocar, próxima da que domina o Acórdão nº 499/97 - a do direito de recurso, inserido nas 'garantias de defesa', como sempre o considerou o Tribunal Constitucional e a revisão constitucional de
97 o veio a consagrar. Ora, a norma do artigo 440º nº 2 alínea a) do CJM, interpretada nos termos em que implicitamente o fez o STM ( e só essa interpretação agora interessa) - em recurso exclusivamente interposto pelo arguido, a agravação da pena é permitida se houver alteração da qualificação jurídica dos factos, mesmo que esta se traduza em incriminações menos graves - afecta gravemente o direito do arguido ao recurso, condicionando-o em termos inadmissíveis e encurtando, em medida intolerável, as garantias de defesa constitucionalmente tuteladas. Atribuir-se esse poder ao tribunal superior - em que a condição da alteração da qualificação dos factos adquire um valor meramente formal - era conferir-lhe um poder incondicionado que não é constitucionalmente admissível face ao disposto no artigo 32º nº 1 da CRP. Que diferença substancial afinal existe entre a confirmação pelo tribunal superior da qualificação feita em 1ª instância e a revogação dessa qualificação no sentido mais favorável pretendido pelo recorrente que, nas mesmas circunstâncias (ou seja em recurso apenas interposto pelo arguido), legitime neste último caso a agravação da pena e não no primeiro ? Quando o tribunal superior reporta determinada conduta a um tipo legal de crime menos grave, mas agrava a pena, não está ele a emitir um juízo de censura mais severa sobre essa conduta que lhe estaria vedado se reportada ao tipo legal, mais grave, confirmado ? A destruição da lógica de a uma incriminação menos grave corresponder, em princípio, uma pena também menos grave (não mais grave) – lógica que determinará o arguido à impugnação do julgado quanto à qualificação feita no tribunal recorrido - cria um constrangimento ao arguido que situaria próximo da temeridade a interposição de recurso, comprometendo não só os direitos de defesa como a própria realização da justiça. Em suma, a norma do artigo 440º nº 2 alínea a) do CJM, interpretada em termos de ressalvar da proibição da reformatio in pejus a agravação da pena se, em recurso apenas interposto pelo arguido, for alterada a qualificação dos factos em sentido abstractamente mais favorável ao arguido, viola, em suma, o direito de recurso, no âmbito das garantias de defesa tuteladas pelo artigo 32º nº 1 da CRP.
3. Decisão
Nestes termos e em conclusão decide-se: a) Julgar inconstitucional a norma do artigo 440º nº 2 alínea a) do Código de Justiça Militar, interpretada no sentido de ressalvar da proibição da reformatio in pejus a agravação da pena se, em recurso apenas interposto pelo arguido, for alterada a qualificação dos factos em sentido abstractamente mais favorável ao arguido, conforme por este requerido, por violação do artigo 32º nº 1 da Constituição da República Portuguesa. b) Conceder provimento ao recurso e determinar a reforma do acórdão recorrido de acordo com o presente juízo de inconstitucionalidade. Lisboa, 12 de Janeiro de 1999- Artur Maurício Maria Fernanda Palma Vitor Nunes de Almeida Alberto Tavares da Costa Maria Helena Brito Paulo Mota Pinto José Manuel Cardoso da Costa