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Processo n.º 816/98 Conselheiro Messias Bento
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional: I. Relatório:
1. A PROCURADORA DA REPÚBLICA no Círculo Judicial das Caldas da Rainha interpõe o presente recurso, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, do despacho do Juiz do Tribunal de Círculo das Caldas da Rainha, de 1 de Junho de 1998, que desaplicou, com fundamento na sua inconstitucionalidade, a 'norma constante do artigo 313º, n.º 2, do Código de Processo Penal, na redacção conferida pelo artigo 1º do Decreto-Lei n.º 317/95, de 28 de Novembro, na parte em que, por remissão para a alínea c) do n.º 1 do artigo 113º (do mesmo Código), ordena a notificação edital ao arguido ausente em parte incerta do despacho que designa dia para a audiência'.
Alegou o PROCURADOR-GERAL ADJUNTO em exercício neste Tribunal, concluindo do modo que segue:
1º. A norma constante da última parte do n.º 2 do artigo 313º do Código de Processo Penal, na redacção emergente do Decreto-Lei n.º 317/95, de 28 de Novembro, ao prescrever que o despacho que designa dia para julgamento, estando o arguido ausente em parte incerta, deve ser-lhe notificado editalmente, configura-se como inovatória, relativamente à redacção originária do preceito, que só comportava a possibilidade de notificação pessoal de tal despacho.
2º. Tal alteração legislativa, respeitante à disciplina dos actos processuais e notificações a operar em processo penal, situa-se no âmbito da competência legislativa reservada da Assembleia da República, que abarca toda a matéria respeitante ao processo criminal, nos termos do artigo 168º, n.º 1, alínea c), da Constituição da República Portuguesa, na redacção vigente à data em que foi editado tal diploma.
3º. A autorização legislativa concedida pela Lei n.º 90-B/95, de 1 de Setembro, não comportava, atento o seu sentido e extensão, a possibilidade de o legislador editar, mediante decreto-lei, tal solução legislativa, pelo que padece o citado segmento normativo de inconstitucionalidade orgânica.
4º. Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida.
O recorrido (arguido CARLOS MANUEL DOS SANTOS LOURENÇO) não alegou.
2. Cumpre decidir.
II. Fundamentos:
3. A norma sub iudicio: O artigo 313º, n.º 2, do Código de Processo Penal, referindo-se ao despacho que designa dia para a audiência de julgamento, dispunha como segue, na sua versão originária:
2. O despacho, acompanhado de cópia da acusação ou da pronúncia, é notificado ao Ministério Público, bem como ao arguido, ao assistente, às partes civis e aos seus representantes, pelo menos catorze dias antes da data fixada para a audiência. A notificação do arguido e a do assistente têm lugar nos termos do artigo 113º, n.º 1, alíneas a) e b).
O artigo 113º do mesmo Código contém as regras gerais sobre notificações. No seu n.º 1, previam-se as seguintes formas de notificação:
(a). contacto pessoal com o notificando: alínea a);
(b). via postal: alínea b);
(c). editais e anúncios, nos casos em que a lei expressamente admitir essa forma de notificação: alínea c).
Como o n.º 2 do artigo 313º, na sua versão originária, apenas remetia para as alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 113º, a notificação ao arguido do despacho que designava dia para a audiência de julgamento fazia-se, obrigatoriamente, por contacto pessoal do funcionário judicial ou por via postal. Nunca por editais e anúncios. Mesmo que o arguido estivesse ausente em parte incerta, esta última forma de notificação (a notificação por editais e anúncios), que era considerada excepcional pela própria lei, estava excluída. Se, em virtude de o arguido se encontrar ausente em parte incerta, não fosse possível notificar-lhe pessoalmente o despacho que designava dia para a audiência de julgamento, dava-se tal despacho sem efeito e ordenava-se a notificação do arguido, por editais e, se necessário, também por anúncios, para ele se apresentar em juízo num prazo até 30 dias, sob pena de ser declarado contumaz (cf. artigo 335º, nºs
1 e 4).
O mencionado artigo 313º, n.º 2, foi, no entanto, alterado pelo Decreto-Lei n.º
317/95, de 28 de Novembro. Após essa alteração, ficou assim redigido:
2. O despacho, acompanhado de cópia da acusação ou da pronúncia, é notificado ao Ministério Público, bem como ao arguido, ao assistente, às partes civis e aos seus representantes, pelo menos trinta dias antes da data fixada para a audiência. A notificação do arguido e a do assistente têm lugar nos termos do artigo 113º, n.º 1.
Significa isto que o artigo 313º, n.º 2, cujo segmento final aqui está sub iudicio, nesta sua redacção, ao remeter também para a alínea c) do n.º 1 do artigo 113º, enquanto que antes apenas remetia para as alíneas a) e b), passou a prever, no que concerne à notificação ao arguido do despacho que designa dia para julgamento, que, estando ele ausente em parte incerta, a mesma lhe seja feita por editais e anúncios. Ou seja: o despacho que designa dia para a audiência de julgamento, que anteriormente só era notificado ao arguido se fosse possível a sua notificação pessoal, passou agora a ter que ser-lhe sempre notificado, mesmo que ele esteja ausente em parte incerta, lançando-se mão, neste caso, da notificação por editais e anúncios. Alargou-se, assim, o número de casos em que esse despacho tem que ser notificado ao arguido.
Regista-se que o Código de Processo Penal voltou a ser alterado pela Lei n.º
59/98, de 25 de Agosto, tendo o artigo 313º, n.º 2, passado a remeter, de novo, apenas para as alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 113º, e não também para a alínea d), que é a correspondente à anterior alínea c).
Para o que aqui importa, interessa reter que o artigo 313º, n.º 2, do Código de Processo Penal, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 317/95, de 28 de Novembro, na parte em que remete para o artigo 113º, n.º 1, do mesmo Código, é inovatório em relação ao texto anterior.
4. A questão de constitucionalidade:
4.1. É inquestionável que a norma sub iudicio versa matéria de processo penal, que se inscreve na reserva parlamentar constante da alínea c) do n.º 1 do artigo
168º da Constituição, na redacção de 1989, em vigor à data da edição do Decreto-Lei n.º 317/95, de 28 de Novembro. Dispõe, de facto, este artigo 168º, n.º 1, alínea c):
1. É da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização ao Governo: c). definição dos crimes, penas, medidas de segurança e respectivos pressupostos, bem como processo criminal.
(Cf., após a Revisão de 1997, a alínea c) do n.º 1 do artigo 165º da Constituição, cujos dizeres são os que se deixam transcritos).
O processo penal situa-se todo ele no 'nível mais exigente' da reserva de competência legislativa da Assembleia da República (cf. J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, Coimbra,
1993, páginas 670/672). Por isso, toda a regulamentação legislativa da matéria tem que ser parlamentarmente produzida ou autorizada.
4.2. Pois bem: o Decreto-Lei n.º 317/95, de 28 de Novembro, que deu ao n.º 2 do artigo 313º do Código de Processo Penal a redacção que aqui está sub iudicio, foi editado ao abrigo da autorização legislativa concedida pela Lei n.º 90-B/95, de 1 de Setembro.
Pergunta-se, então: a alteração introduzida no n.º 2 do mencionado artigo 313º estará coberta por tal autorização legislativa ? Ou, como se decidiu no despacho recorrido, o Governo não estava legitimado para assim legislar ?
A dita autorização legislativa foi concedida para rever o Código de Processo Penal (artigo 1º); o seu 'sentido essencial' era 'o de proceder à adequação' de tal Código 'às alterações introduzidas no Código Penal pelo Decreto-Lei n.º
48/95, de 15 de Março' (artigo 2º); e, de harmonia com esse sentido, definiu-se, no artigo 3º, a extensão da autorização. Ora, percorrendo as várias alíneas deste artigo 3º - alíneas a) a z) e aa) a gg)
-, em nenhuma delas se descortina a mínima referência ao artigo 313º, n.º 2, do Código de Processo Penal ou à notificação ao arguido do despacho que designa dia para a audiência de julgamento. A inovação legislativa aqui em análise não pode, pois, encontrar arrimo no mencionado artigo 3º.
Cobertura parlamentar para essa inovação legislativa também a não fornece o artigo 4º da dita Lei n.º 90-B/95, que preceitua como segue: Fica ainda o Governo autorizado a rever a redacção das disposições do Código cujo conteúdo permanece inalterado para adequada harmonização com a técnica de articulação e terminologia resultante do Código Penal revisto e das restantes disposições do Código de Processo Penal.
Neste artigo 4º, não pode, na verdade, ler-se uma autorização para modificar o conteúdo preceptivo de qualquer normativo do Código de Processo Penal. Nele, autoriza-se apenas a proceder à revisão da 'redacção das disposições do Código cujo conteúdo permanece inalterado', a fim de se conseguir uma 'adequada harmonização' 'com a técnica de articulação e terminologia resultante do Código Penal revisto e das restantes disposições do Código de Processo Penal'. Ou seja: este artigo 4º apenas serve de credencial para alterações de pura forma. Ora, a inovação legislativa de que aqui se trata é bem mais do que isso, pois que - recorda-se - tratou-se de ampliar os casos de notificação do despacho que designa dia para a audiência de julgamento, impondo essa notificação também ao arguido ausente em parte incerta - notificação que a lei antes não exigia.
4.3. Com a edição do Decreto-Lei n.º 317/95, de 28 de Novembro - a mais do que adaptar o Código de Processo Penal às alterações que, havia pouco tempo, tinham sido introduzidas no Código Penal - o Governo - lê-se no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 317/95 - quis aproveitar a oportunidade para mexer nalgumas
'disposições cuja melhoria a experiência de aplicação do Código revelou conveniente', sendo que essas alterações se prenderam 'com o fortalecimento das garantias de defesa do arguido e da sua dignidade, o que assenta em claros imperativos constitucionais'.
Pode, assim, perfeitamente admitir-se que tenha sido neste espírito que o Governo se determinou a introduzir a mencionada inovação legislativa.
É que, tendo a acusação do Ministério Público - por força do que se decidiu no acórdão obrigatório do Supremo Tribunal de Justiça, de 25 de Março de 1992, publicado no Diário da República, I série-A, de 10 de Julho de 1992 - que ser notificada ao arguido ausente em parte incerta, mediante editais e anúncios, pode ter-se sentido a necessidade de harmonizar com esse o regime da notificação ao arguido do despacho que designa dia para julgamento, impondo-se, também aí, a notificação edital, quando ele estiver ausente em parte incerta.
É, porém, irrelevante que as coisas se tenham passado assim ou de outro modo. Como irrelevante é também que - como sublinha o Ministério Público - 'da necessidade de notificar sempre - se necessário, por editais - a acusação ao arguido' não decorra 'a necessidade de impreterivelmente notificar aquele mesmo arguido, quando ausente em parte incerta, do despacho que designa dia para julgamento - e cuja data ficará, aliás, sem efeito, logo que se venha a constatar a efectiva ausência em parte incerta do arguido, passando-se à aplicação das normas próprias do regime da contumácia'. Relevante é apenas que, com a edição da Lei n.º 90-B/95, de 1 de Setembro, o Governo, ao publicar o Decreto-Lei n.º 317/95, de 28 de Novembro, não ficou autorizado a introduzir a mencionada alteração legislativa no n.º 2 do artigo
313º do Código de Processo Penal.
4.4. Conclusão: O artigo 313º, n.º 2, do Código de Processo Penal, no segmento atrás identificado, porque editado pelo Governo sem credencial parlamentar, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 317/95, de 28 de Novembro, é, assim, inconstitucional.
III. Decisão: Pelos fundamentos expostos, decide-se:
(a). julgar inconstitucional - por violação do disposto da alínea c) do n.º 1 do artigo 168º da Constituição da República Portuguesa (versão de 1989) - a norma constante da última parte do nº. 2 do artigo 313º do Código de Processo Penal, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 317/95, de 28 de Novembro, na parte em que determina que o despacho, que designa dia para a audiência de julgamento, seja notificado, editalmente, ao arguido que esteja ausente em parte incerta;
(b). em consequência, negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida quanto ao julgamento da questão de constitucionalidade.
Lisboa, 16 de Dezembro de 1998 Messias Bento José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Beleza Luis Nunes de Almeida