Imprimir acórdão
Proc. nº 99/97 Plenário Relatora: Cons.ª Maria Helena Brito
Acordam, em Plenário, no Tribunal Contitucional
I
1. No processo em que é arguido C..., o Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 10 de Fevereiro de 1994, concedeu provimento a um recurso interlocutório interposto pelo Ministério Público, declarando nulos todos os actos e termos do processo, desde a primeira sessão da audiência de julgamento até ao termo de remessa do processo ao Supremo Tribunal de Justiça, determinando que se procedesse ao desentranhamento dos documentos apresentados pelo arguido, a fim de lhe serem restituídos, e ordenando a repetição do julgamento do arguido no mesmo tribunal que proferiu a decisão anulada.
Desse acórdão e do acórdão proferido em 21 de Abril de 1994 pelo mesmo tribunal, julgando improcedente o pedido de arguição de nulidades apresentado pelo arguido, interpôs C... dois recursos de constitucionalidade: o primeiro, ao abrigo do disposto no artigo 280º, nº 1, alínea a), da Constituição e no artigo 70º, nº 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional, com fundamento em recusa de aplicação das normas dos artigos 165º, nº 2, e 340º, nº
1, do Código de Processo Penal; o segundo, nos termos do artigo 280º, nº 1, alínea b), da Constituição e do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, pedindo a apreciação da inconstitucionalidade da interpretação dada pelo Supremo Tribunal de Justiça às normas dos artigos 416º, 427º e 407º do Código de Processo Penal.
O Supremo Tribunal de Justiça não admitiu os recursos para o Tribunal Constitucional (despacho do Conselheiro Relator, de 27 de Maio de 1994, confirmado por acórdão da conferência, de 7 de Julho de 1994).
2. O arguido apresentou reclamação perante o Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 76º, nº 4, da Lei nº 28/82. Por acórdão de 17 de Abril de
1996 (acórdão nº 584/96, Diário da República, II, nº 251, de 29 de Outubro de
1996, p. 15037 ss), este Tribunal decidiu:
'a) - indeferir a reclamação quanto à norma do artigo 165º, nº 2, do Código de Processo Penal; b) - deferir a reclamação quanto à norma do artigo 340º, nº 1, do Código de Processo Penal; c) - deferir a reclamação quanto à norma do artigo 416º do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de não impor a notificação do arguido para responder quando, no visto, o Ministério Público se pronuncia pela anulação de julgamento absolutório da 1ª instância; d) - indeferir a reclamação quanto às normas dos artigos 407º e 427º do Código de Processo Penal'.
3. No Supremo Tribunal de Justiça, o Conselheiro Relator não ordenou a subida dos autos ao Tribunal Constitucional, tendo proferido despacho em que determinou a anulação do processado posterior ao visto do Ministério Público junto do Supremo e a notificação do arguido para, no prazo de cinco dias, produzir alegações, querendo, relativamente à promoção do Ministério Público que se pronunciara no sentido do provimento do recurso.
Arguida a nulidade de tal despacho, tanto pelo Ministério Público como por C..., foram os respectivos pedidos indeferidos através de novo despacho do Conselheiro Relator, depois confirmado por acórdão da conferência, de 7 de Novembro de 1996.
4. Veio então o arguido, 'ao abrigo do disposto na lei em geral e, em particular, nos artigos 76º, nº 4, e 77º da Lei nº 28/82, reclamar para o Tribunal Constitucional, da não subida dos 2 recursos por si oportunamente interpostos' (simultaneamente, o arguido interpôs recurso de constitucionalidade, nos termos do artigo 70º, nº 1, alíneas b) e a), da Lei do Tribunal Constitucional, que constitui objecto dos autos de recurso nº 19/97, deste Tribunal).
No seu requerimento, o reclamante apresenta as seguintes conclusões:
'1ª. O STJ colocou-se numa situação de desobediência expressa e inequívoca à decisão do Tribunal Constitucional, que constitui caso julgado, a qual decretou a admissibilidade e subida dos 2 recursos de constitucionalidade oportunamente interpostos pelo arguido.
2ª. Efectivamente, o STJ – ao proferir a decisão de 07.11.96 que não acata a decisão do Tribunal Constitucional de admissibilidade e subida dos 2 referidos recursos sob a alegação de 'vício de excesso de pronúncia' e de excesso dos
'seus poderes cognitivos' – criou, ao fim deste seu comportamento sequencial, uma situação de retenção dos recursos decorrente, necessária e implicitamente, da sua própria decisão.
3ª. Assim, à absurda situação criada pelo STJ é aplicável a regulamentação jurídica que concede o direito de reclamação, previsto na Lei nº 28/82 (artº
76º, nº 4) e bem assim na própria lei processual civil (artº 688º, nº 1, do CPC).
4ª. A 'reclamação tem a natureza jurídica de um direito potestativo do reclamante que o juiz reclamado não pode deixar de observar', nas surpreendentemente lúcidas palavras do despacho de fls. 3541.
5ª. Termos em que se requer que o Tribunal Constitucional, face à situação de retenção criada, decida que o STJ deve ordenar a subida imediata ao Tribunal Constitucional dos 2 recursos de constitucionalidade do arguido já oportunamente mandados admitir.'
5. O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional expôs a sua posição nos seguintes termos:
'O processo de reclamação, previsto nos arts. 76º, nº 4, e 77º da Lei nº 28/82 – e a que é subsidiariamente aplicável o estatuído no art. 688º do CPC – pressupõe a existência de um despacho que indefira ou retenha o recurso de fiscalização concreta oportunamente interposto pelo reclamante, não podendo ser utilizado como meio ou forma de levar este Tribunal Constitucional a sindicar o modo como a decisão precedentemente proferida – no âmbito de uma primeira reclamação deduzida – foi ou não acatada no tribunal a quo – em termos de eventualmente conduzir a determinar a este tribunal o estrito e preciso acatamento do acórdão proferido – e transitado em julgado – na primeira reclamação deduzida. Na verdade, perante a situação criada com a invulgar tramitação seguida no STJ, na sequência da prolação do acórdão nº 584/96, só vemos duas possibilidades processuais de actuação das partes: a) a primeira delas – seguida, aliás, pelo ora reclamante – consiste em, perante a decisão proferida pelo STJ na sequência do deferimento da primeira reclamação interposta, suscitar novas questões de constitucionalidade, que possam fundar a interposição de um novo e autónomo recurso de fiscalização concreta, tendo como objecto a interpretação inconstitucional das normas em que aquele Supremo Tribunal se alicerçou para não acatar, nos seus precisos termos, o decidido no acórdão que julgou procedente a reclamação deduzida pelo arguido; b) a segunda possibilidade – que aliás tivemos oportunidade de referenciar sumariamente na resposta à douta exposição prévia em que se propugnava pelo não conhecimento do recurso de constitucionalidade interposto pelo representante do Ministério Público junto do STJ – consistiria em considerar que a decisão proferida por este Supremo Tribunal, na sequência do acórdão nº 584/96, traduziu um possível desrespeito pelo caso julgado formal associado ao deferimento da reclamação (art. 77º, nº 4, da Lei nº 28/82), devendo – em consequência – determinar-se no processo o acatamento do decidido na primeira decisão que passou em julgado, nos termos prescritos no nº 2 do art. 675º do CPC: só que tal questão não deve, a nosso ver, ser colocada no âmbito de um novo (e repetitivo) procedimento de reclamação, interposto de uma espécie de despacho 'tácito' de indeferimento 'continuado' dos recursos de fiscalização concreta oportunamente interpostos. Em suma: não tendo ocorrido – como, aliás, reconhece o reclamante – a prolação de qualquer despacho de indeferimento ou retenção dos recursos de constitucionalidade já mandados admitir pelo acórdão nº 584/96 deste Tribunal, carece de objecto idóneo a presente reclamação, pelo que não deverá dela conhecer-se'.
II
6. O reclamante fundou a sua reclamação para o Tribunal Constitucional no 'disposto na lei em geral e, em particular, nos artigos 76º, nº 4, e 77º da Lei nº 28/82'.
6.1. A primeira questão suscitada pela presente reclamação diz respeito, em geral, à possibilidade de reclamar para o Tribunal Constitucional dos despachos que retenham os recursos de constitucionalidade.
Na verdade, o artigo 76º, nº 4, da Lei do Tribunal Constitucional, na redacção anterior à entrada em vigor da Lei nº 13-A/98, de 26 de Fevereiro, dispunha:
'Do despacho que indefira o requerimento de interposição do recurso cabe reclamação para o Tribunal Constitucional'.
Apesar de se encontrar omitida no texto do preceito a referência ao despacho de retenção do recurso, o Tribunal Constitucional pronunciou-se, ainda durante a vigência da norma com a sua versão inicial, no sentido de que deveria ser 'admitida a reclamação de despachos que retenham recursos de constitucionalidade' (acórdão nº 193/91, Diário da República, II, nº 210, de 12 de Setembro de 1991, p. 9183 ss). A decisão fundamentou-se na analogia com o regime geral estabelecido no artigo 688º, nº 1, do Código de Processo Civil, na caracterização da retenção do recurso como um 'caso especial de indeferimento', e no argumento segundo o qual 'o Tribunal que pode o mais – sindicar a não admissibilidade – deve poder sindicar o menos – a mera retenção do recurso'.
Na sua versão actual, o artigo 76º, nº 4, da Lei do Tribunal Constitucional passou a dispor:
'Do despacho que indefira o requerimento de interposição do recurso ou retenha a sua subida cabe reclamação para o Tribunal Constitucional'.
Pode discutir-se qual o âmbito temporal de aplicação da norma, com a redacção que lhe foi dada pela Lei nº 13-A/98. Tendo em conta, porém, que a alteração introduzida constitui mera clarificação ou interpretação do direito anterior, entende-se que tal norma é aplicável a todas as situações apreciadas pelo Tribunal Constitucional após a sua entrada em vigor, ainda que o despacho de retenção do recurso ou o requerimento através do qual é deduzida a reclamação sejam anteriores.
6.2. A segunda questão que importa decidir diz respeito à possibilidade de reclamar para o Tribunal Constitucional de um acto que apenas de modo implícito tenha o sentido de reter um recurso de constitucionalidade.
O regime estabelecido pelo Código de Processo Civil sobre os requisitos a que devem obedecer as decisões judiciais e sobre os vícios das decisões judiciais não se compatibiliza facilmente com a admissibilidade de
'decisões judiciais tácitas ou implícitas', mas também não parece afastar de todo a possibilidade de se atribuir um sentido ou de se reconhecer um efeito indirecto ou implícito a um acto praticado por um órgão jurisdicional. Em causa está um problema de interpretação do acto praticado.
Assim sendo, não pode responder-se em termos gerais à questão formulada. Só caso a caso será possível determinar se a decisão proferida tem ou não o sentido ou o efeito de reter um recurso de constitucionalidade.
7. O reclamante reconhece expressamente que o pedido por ele formulado neste processo não é típico, no sentido de que não corresponde à situação directamente prevista e regulada nos artigos 76º, nº 4, e 77º da Lei do Tribunal Constitucional.
Na verdade, C... reclamou para o Tribunal Constitucional da 'não subida dos 2 recursos por si oportunamente interpostos' e invocou como fundamento do seu pedido a circunstância de 'o STJ – decorridos quase 8 meses sobre a data do julgamento, em plenário, do Tribunal Constitucional – te[r] agido de modo a que os respectivos recursos não subam'.
Nas palavras do reclamante,
'Não se trata, note-se, da existência de qualquer despacho do STJ que tenha indeferido um requerimento de interposição de recurso, para o Tribunal Constitucional. Também não se trata da existência de qualquer despacho de retenção de recurso de constitucionalidade. Trata-se, sim, de uma mera situação criada pelo aludido acórdão do STJ de que decorre, automaticamente e de modo implícito, a retenção dos recursos.'.
É pois necessário delimitar o objecto do pedido formulado pelo reclamante e analisar a actuação do Supremo Tribunal de Justiça a fim de concluir se ela tem o sentido ou se dela resulta o efeito de retenção dos recursos.
7.1. O reclamante pede que 'o Tribunal Constitucional, face à situação de retenção criada, decida que o STJ deve ordenar a subida imediata ao Tribunal Constitucional dos 2 recursos de constitucionalidade do arguido já oportunamente mandados admitir'.
Torna-se assim claro que, através da presente reclamação, C... pretende, afinal, que venham a ser decididos pelo Tribunal Constitucional os recursos de constitucionalidade por ele anteriormente interpostos e já admitidos, em parte, por este Tribunal – quanto às normas dos artigos 416º e
340º, nº 1, do Código de Processo Penal.
7.2. O reclamante entende que o acórdão Supremo Tribunal de Justiça, de 7 de Novembro de 1996, 'contém, inequivocamente, uma decisão implícita de retenção dos 2 recursos oportunamente interpostos pelo arguido e já mandados subir pelo Tribunal Constitucional'.
O acórdão de 7 de Novembro de 1996 do Supremo Tribunal de Justiça – recorda-se – confirmou o despacho proferido pelo Conselheiro Relator, em 7 de Junho de 1996, na sequência da devolução dos autos ao Supremo Tribunal de Justiça pelo Tribunal Constitucional, após a decisão deste Tribunal que atendeu em parte a reclamação deduzida pelo arguido (acórdão nº 584/96, de 17 de Abril de 1996).
Nesse despacho, o Conselheiro Relator interpretou a decisão do Tribunal Constitucional como um acórdão que se tivesse pronunciado directamente sobre a inconstitucionalidade das normas que o arguido pretendia viessem a constituir objecto de recurso de constitucionalidade e que o Supremo não tinha admitido. Assim, lê-se no despacho:
'No caso dos autos, das diversas arguições de inconstitucionalidade invocadas pelo recorrente, o Tribunal Constitucional declarou ocorrerem duas:
– a respeitante à interpretação dada por este Supremo ao regime de junção de documentos na audiência de primeira instância;
– e a respeitante à decisão deste mesmo Supremo em relação aos termos do visto inicial do Exmº Procurador-Geral-Adjunto, quando o processo subiu a esta instância.'.
No mesmo despacho, o Conselheiro Relator, invocando razões de repartição de competência – entre o relator do processo e o órgão colegial – e invocando também razões relacionadas com a sequência da tramitação dos actos processuais, determinou a anulação do processado posterior ao visto do Ministério Público junto do Supremo e a notificação do arguido para, no prazo de cinco dias, produzir alegações relativamente à promoção do Ministério Público que se pronunciara pela anulação do julgamento absolutório de 1ª instância.
O Conselheiro Relator colocou expressamente fora do âmbito da sua decisão, por entender que pertencia à competência do órgão colegial, a questão relativa à eventual inconstitucionalidade da recusa de aplicação da norma do artigo 340º, nº 1, do Código de Processo Penal, sobre a produção da prova. Fê-lo nos seguintes termos:
'No que se refere à [inconstitucionalidade] indicada em primeiro lugar [nas palavras utilizadas no próprio despacho, «a respeitante à interpretação dada por este Supremo ao regime de junção de documentos na audiência de primeira instância»], parece manifesto que a posição a assumir na sequência do decidido pelo Tribunal Constitucional tem de ter lugar através de uma decisão colectiva, em julgamento neste Supremo.'.
Indiscutivelmente decorre do despacho – e portanto do acórdão que o confirmou – a consequência de não mandar subir os recursos de constitucionalidade admitidos por acórdão do Tribunal Constitucional no processo de reclamação anterior: quanto à norma do artigo 416º do Código de Processo Penal, porque o Conselheiro Relator, partindo do princípio de que o Tribunal Constitucional tinha julgado inconstitucional a interpretação que o Supremo fez no processo, optou por antecipar o suprimento da nulidade processual daí resultante e facultou logo o contraditório ao arguido; quanto à norma do artigo
340º, nº 1, do Código de Processo Penal, porque o Conselheiro Relator, considerando que se tratava de questão subtraída à sua competência, relegou para julgamento do órgão colegial e para momento posterior a posição a assumir.
Ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça pode, portanto, pelo menos implicitamente, atribuir-se o sentido de retenção dos recursos de constitucionalidade anteriormente admitidos pelo Tribunal Constitucional, ou seja, dos recursos quanto às normas dos artigos 416º e 340º, nº 1, do Código de Processo Penal.
8. Assim, e tal como no acórdão nº 271/98 (Diário da República, II, nº
271, de 23 de Novembro de 1998, p. 16623 ss), este Tribunal conclui que 'a reclamação é um meio processual admissível para apreciar a legalidade de uma situação como a dos autos, já que tem de ser o Tribunal Constitucional a sindicar de forma completa a ilegalidade de quaisquer decisões proferidas' no tribunal recorrido 'e que possam afectar a subida e o momento oportuno de apreciação do recurso de fiscalização concreta já admitido'.
III
9. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide deferir a presente reclamação, a fim de que os autos lhe sejam remetidos para julgamento dos dois recursos interpostos pelo ora reclamante.
Lisboa, 17 de Dezembro de 1998 Maria Helena Brito Alberto Tavares da Costa José de Sousa e Brito Messias Bento Guilherme da Fonseca Vitor Nunes de Almeida Maria Fernanda Palma Bravo Serra Paulo Mota Pinto Maria dos Prazeres Beleza Artur Maurício Luis Nunes de Almeida