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Proc. nº 62/97
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Em processo que correu termos no Tribunal de Círculo e da Comarca de Oeiras, J. M. foi condenado pela prática de um crime de desobediência simples, previsto e punível pelas disposições combinadas dos artigos 158º do Código da Estrada e 348º, nº 1, alínea b), do Código Penal, na pena de trinta dias de multa à taxa diária de 1.500$00, o que perfaz a multa global de 45.000$00, com vinte dias de prisão subsidiária
Tendo o Tribunal da Relação de Lisboa negado provimento ao recurso interposto pelo arguido (acórdão de 6 de Novembro de 1996, fls. 31 e seguintes dos presentes autos), foi por ele interposto recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, para apreciação da inconstitucionalidade da norma do artigo 12º do Decreto-Lei nº 124/90, de 14 de Abril, quando interpretada no sentido de que 'constitui recusa a exame a atitude de um condutor que após se submeter por duas vezes ao teste de pesquisa de álcool por expiração de ar em aparelho adequado, não originando qualquer resultado conclusivo, se recuse continuar a submeter-se a tal teste', por violação dos artigos 32º, nºs 1 e 6, da Constituição da República Portuguesa.
O Relator, no Tribunal da Relação de Lisboa, não admitiu o recurso, por entender que a inconstitucionalidade não foi suscitada durante o processo e por considerar que à norma que se pretendia ver apreciada não foi atribuído o sentido inconstitucional mencionado pelo recorrente (despacho de 21 de Novembro de 1996, fls. 40 e seguinte).
2. J. M. reclamou deste despacho para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 76º, nº 4, da Lei nº 28/82.
Neste Tribunal, pelo acórdão nº 215/98, de 4 de Março de 1998 (fls.
87 e seguintes), foi indeferida a reclamação, com fundamento em que a inconstitucionalidade não foi suscitada durante o processo, no sentido que a jurisprudência constitucional tem atribuído a esta exigência, sendo certo que o caso dos autos não configurava uma daquelas situações excepcionais susceptíveis de dispensar o recorrente do ónus de suscitar a questão de inconstitucionalidade a tempo de permitir ao tribunal recorrido pronunciar-se sobre ela.
3. Tendo sido notificado do referido acórdão do Tribunal Constitucional, nº 215/98, veio o reclamante requerer o esclarecimento do mesmo, nos termos do artigo 669º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Civil (requerimento de 16 de Março de 1998, fls. 96 e seguinte), com os seguintes fundamentos:
'1º- Na reclamação deduzida pelo impetrante foi levantada a questão de, face à nova qualificação jurídica imposta pelo Tribunal da Relação, passagem da condenação pelo art. 158 do C. Estrada e art. 348 nº 1 alínea B do Código Penal para art. 12 do DL 124/90, ter existido modificação da sanção aplicada, na sua espécie.
2º- E foi então arguido que tal modificação era totalmente imprevisível, face ao disposto no art. 409 nº 1 do C.P.P., por configurar uma alteração da sanção na sua espécie, o que é manifestamente vedado, em casos de recurso como o dos presentes autos.
3º- Na decisão proferida pelo Tribunal Constitucional que indeferiu a reclamação do recorrente, não se faz alusão a tal invocação, sendo que a mesma foi autonomamente deduzida e a aceitação de que a alteração da sanção na sua espécie está vedada pelo disposto no art. 409 nº 1 do C.P.P. seria um argumento a favor da tese do impetrante no sentido, de ter sido surpreendido pela aplicação de norma com a qual não podia contar. '
Notificado para se pronunciar sobre o requerimento apresentado, respondeu o representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional:
'1º- É manifesta a inadmissibilidade do pedido de aclaração deduzido, já que o douto acórdão proferido nos autos não padece de qualquer ambiguidade ou obscuridade que deva ser esclarecida.
2º- Sendo evidente que só o desconhecimento por parte do recorrente da matéria atinente aos pressupostos de admissibilidade dos recursos de fiscalização concreta, previstos na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82 permitirá explicar a sua dificuldade em compreender perfeitamente o decidido.
3º- Na verdade, não tendo sido suscitada durante o processo qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, e tendo tido o recorrente plena oportunidade processual para o fazer, é por demais óbvio que o recurso interposto não podia ser admitido.
4º- É, por outro lado, evidente que o reclamante identicamente não parece ter na devida conta o âmbito e função do procedimento de reclamação, parecendo supor que neste é ainda possível suscitar novas questões, não incluídas no objecto do recurso interposto.
5º- Nestes termos – e não sendo obviamente o pedido de aclaração um meio idóneo para as partes manifestarem a sua discordância com o decidido – é evidente que deverá manifestamente improceder a pretensão deduzida. '
4. Na sequência de alteração na composição do Tribunal Constitucional, houve mudança de relator.
Através de requerimento entrado neste Tribunal em 2 de Abril de 1998
(fls. 103), J. M. solicitou a remessa dos autos à instância competente, tendo em conta a entrada em vigor do novo Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei nº
2/98, de 3 de Janeiro de 1998.
Em 23 de Setembro de 1998, o Tribunal da Relação de Lisboa proferiu o seguinte acórdão (a fls. 111 e seguinte, onde por lapso foi aposta a data de
23 de Setembro de 1997, mais tarde rectificada – cfr. acórdão de fls. 129):
'Vieram os autos os autos à conferência apenas para se determinarem quais os efeitos, consequências ou implicações que a revogação do D.L. 124/90 de 14.4 operada pelo art. 20º do D.L. nº 2/98 de 3-1 – que introduziu alterações ao Cód. Est. e entrou em vigor em 31-3-98 – produz no Acórdão desta Relação de 6-11-96 fls. 28 e segs., tudo isto na sequência do que foi requerido pelo reclamante a fls. 60 e ordenado pelo T.C. a fls. 61. A nossa resposta é: De facto e, em termos práticos, nenhuns. De direito, apenas isto: – retirar do Acórdão a diversa qualificação jurídico-penal atribuída aos factos provados e recuperar o que fora firmado na
1ª instância. Significa isto que a conduta do arguido passou a ser punida pelo art. 348º nº 1 do C.P./95 tal como se decidiu no tribunal «a quo»: e, não pelo art. 12º do D.L. 124/90 (entretanto revogado) como se entendeu no Acórdão desta Relação.
É porém certo que neste aresto se manteve incólume a pena «concretamente» aplicada na sentença recorrida, em virtude da proibição da «reformatio in pejus»
– não tendo havido qualquer alteração nem quanto à sua medida nem quanto à sua natureza. Com a revogação do D.L. nº 124/90 não se verificou qualquer hiato legislativo na previsão e descrição típica do ilícito penal imputado ao arguido. Havendo apenas sucessão de Leis no tempo, é por demais evidente que na sentença recorrida, se aplicou desde logo, o regime (art. 348 C.P.), concretamente mais favorável ao arguido. Nada mais resta senão manter na integra tal decisão.
É caso para se dizer que se «escreveu direito por linhas tortas», não se vendo na citação desta máxima, qualquer menosprezo pelo decidido. Bem pelo contrário, o julgador ao aplicar o citado art. 348º, como que vislumbrou ou intuiu, desde logo, a posterior revogação do D.L. 124/90. E sobre este ponto consideramos despiciendos quaisquer outros comentários. Sobre a invocada inconstitucionalidade:
É óbvio para nós, ao contrário do que defende o recorrente, que a interpretação dada aos arts. 158º C. Est. e 348º nº 1 CP, na 1ª instância não enferma de qualquer inconstitucionalidade. Na verdade, tendo-se provado, «inter alia», que o arguido, condutor, depois de esclarecido e advertido com a cominação de desobediência, se recusa por várias vezes a fazer teste para pesquisa de álcool e, sabendo que estava obrigado a fazê-lo, e, não se tendo provado qualquer causa de exclusão de culpa ou de justificação do facto, a que título e com que fundamento se pode falar em inconstitucionalidade na aplicação e interpretação da norma! O recorrente, obnubilando o essencial da questão, isto é, os factos provados e o preenchimento do «tipo» quer no aspecto objectivo quer no aspecto subjectivo, entretém-se com meras especulações inteiramente alheias à decisão. A desobediência verifica-se depois de o arguido ter sido informado de como deveria proceder e de ter sido alertado para as consequências da recusa e, mesmo assim, recusa-se por várias vezes em submeter-se ao teste, sem qualquer causa justificativa. Esta, a essência do ilícito. Não se percebe pois a que título se vem falar na maior ou menor capacidade de sopro; na eventualidade de qualquer doença (asma?) impeditiva; ou na obrigação de repetir o teste «as vezes que a autoridade entender conveniente». Sobre tais pontos nenhuma prova foi produzida e nem eles foram objecto de discussão e apreciação na sentença recorrida. Redunda pois em pura perda e inocuidade o que sobre tal matéria vem alegado. O que se provou é por demais eloquente quanto ao preenchimento do «tipo» pelo qual o arguido foi condenado. Nada a censurar à decisão recorrida. São termos em que pelos fundamentos expostos se mantém agora – face à revogação do D.L. 124/90 – a sentença recorrida.'
5. Este acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa transitou em julgado, tendo sido invocado como acórdão fundamento em recurso extraordinário de uniformização de jurisprudência (cfr. requerimentos de fls. 126 e seguinte e 131 dos presentes autos).
Por despacho de 13 de Dezembro de 1999, foi determinado, no Tribunal Judicial da Comarca de Oeiras, o arquivamento dos autos (fls. 190 v.).
6. Desconhecendo a circunstância referida no número anterior, a Secretaria do Tribunal Constitucional solicitou ao Tribunal de Oeiras a remessa do processo que tinha sido enviado a título meramente devolutivo, tendo os presentes autos dado novamente entrada neste Tribunal em 18 de Janeiro de 2000.
Ora, a extinção do processo com decisão transitada em julgado inutiliza a apreciação do pedido de aclaração que se encontrava pendente.
7. Nestes termos, e em conclusão, não se conhece, por inutilidade, do referido pedido e julga-se extinta a instância de recurso.
Lisboa, 22 de Fevereiro de 2000 Maria Helena Brito Vítor Nunes de Almeida Artur Maurício Paulo Mota Pinto Maria Fernanda Palma Alberto Tavares da Costa José Manuel Cardoso da Costa