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Procº nº 188/97
1ª Secção Consº VITOR NUNES DE ALMEIDA
Acordam, na 1ª secção do Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO:
1. - C... propôs contra o ESTADO PORTUGUÊS, representado pelo Ministério Público, uma acção emergente de contrato individual de trabalho, pedindo a sua condenação no pagamento de retribuições vencidas e de uma indemnização por danos morais.
A acção veio a ser julgada improcedente quanto ao pedido das retribuições vencidas, pela procedência da excepção peremptória de nulidade do contrato de trabalho e procedente quanto ao pedido de danos morais, sendo o Estado condenado no pagamento à Autora da quantia de Esc.:500 000$00.
Tanto a Autora como o Réu Estado interpuseram recurso da decisão proferida para a Relação de Lisboa, tendo a Autora e apelante suscitado logo nas suas alegações a questão da inconstitucionalidade da interpretação feita na decisão relativamente aos artigos 14º, nº1, alínea a) e 43º, nº1, do Decreto-Lei nº 427/89, de 7 de Dezembro.
2. - A Relação, por acórdão de 15 de Janeiro de 1997, decidiu que procediam as razões do recurso do Estado, julgando improcedente o pedido de indemnização por danos morais. E, quanto à apelação da Autora foi a mesma julgada improcedente.
Desta decisão foi pedida uma aclaração pela Autora, pedido este que veio a ser indeferido pelo acórdão de 26 de Fevereiro de 1997.
A Autora, não se conformando com a decisão da Relação na parte respeitante à questão de inconstitucionalidade, decidiu interpor recurso para o Tribunal Constitucional, invocando o preceituado no artigo 70º, nº1, alínea b) da Lei do Tribunal Constitucional, pretendendo que se aprecie a inconstitucionalidade dos artigos 14º e 43º do Decreto-Lei nº 427/89, de 7 de Dezembro, mas também do artigo 72º do Código de Processo do Trabalho, de acordo com o teor do requerimento de interposição do recurso.
A recorrente apresentou alegações que terminou formulando as seguintes conclusões:
'lª - O presente recurso vem interposto no tocante à inconstitucionalidade oportunamente arguida pela recorrente - quer dos artºs 43º e l4º do Lei 427/89, de 7112, quer do artº 72º do C.P.T..
2ª Quanto a este último, da forma hiper-formalista como foi interpretado e aplicado no Acórdão recorrido, representaria uma compressão manifestamente injusta, injustificada e desproporcionada dos preceitos e princípios dos artºs
2º, 205º e 207º, bem como do artº 20º, todos da C.R.P..
3ª E isto até porque a função aglutinadora e sintetizadora das regras Estado de direito democrático precisamente impõe o asseguramento da protecção dos cidadãos contra a prepotência, o arbítrio e a injustiça, impede o absoluto e injustificado arbítrio que a tese do Acórdão recorrido consubstancia.
4ª Por outro lado, interpretados e aplicados como o foram na decisão recorrida, os artºs 14º e 43º do Dec.- Lei 427/89 significariam desde logo que seria o próprio infractor à lei a beneficiar da ilegalidade que ele próprio criara e mantivera fraudulentamente (através do expediente dos chamados 'recibos verdes').
5ª Ademais, deles derivaria também o absurdo das consequências da violação da lei por parte de quem precisamente deveria ser mais cumpridor (o próprio Estado) recaírem apenas e tão só …sobre a própria vítima!
6ª Tal resultado colocaria, de todo injustificadamente, o Estado prevaricador numa situação totalmente distinta e mais favorável do que a do empregador privado colocado na mesmíssima situação, com ostensiva violação do artº 13º da C.R.P.
7ª Mas tal pretendida e autêntica exclusão de responsabilidades do Estado por esta actuação de escandalosa violação dos direitos, liberdades e garantias da recorrente seria também de todo contrária aos preceitos e princípios quer do artº 20º quer do artº 22º da C.R.P..
8ª Finalmente, a 'disposição' sobre as relações laborais por parte exactamente de quem infringiu a lei e o Direito, e bem assim a admissibilidade quer da completa precariedade da relação de trabalho por parte de quem mais estava obrigado a combatê-la, quer da privação do emprego a um trabalhador por parte de quem beneficiou da ilegalidade em que o colocou, tudo isto violaria, também e frontalmente, o elementar princípio da segurança no emprego, consagrado no artº
53º da C.R.P..'
Pelo seu lado, o Ministério Publico, em representação do Estado Português, também alegou tendo concluído as sua alegações pela forma seguinte:
'1º Tendo a decisão recorrida considerado, em primeiro lugar, manifestamente improcedentes as nulidades da sentença arguidas - pretensas omissões de pronúncia e contradição entre a fundamentação e o decidido, quando o que afinal se questiona é a solução de mérito dada ao litígio e a interpretação feita do regime legal que o Tribunal considerou aplicável ao caso - ao considerar tal sentença 'correcta', carece totalmente de utilidade a apreciação da questão da inconstitucionalidade da interpretação da norma que imporia, do ponto de vista procedimental, a suscitação de tais nulidades no próprio requerimento de interposição do recurso.
2º Limitando a recorrente o âmbito do recurso de constitucionalidade às normas constantes de certo diploma de desenvolvimento dos princípios ou bases gerais dos regimes jurídicos que já constavam de outro precedente diploma legal, desprovidas de carácter inovatório - já que o mesmo regime resultava inteiramente de preceitos que constavam do diploma -base - carece de utilidade a apreciação da constitucionalidade das normas que integram o recurso interposto, por a decisão recorrida - mesmo que a respectiva aplicação fosse afastada - ser sempre a mesma, com fundamento nas normas que constavam daquele diploma - base e que a recorrente não curou de questionar durante o processo.
3º Não viola qualquer preceito ou princípio constitucional a existência, no ordenamento jurídico, de um regime específico para a constituição da relação jurídica de emprego na Administração Pública, traduzido na proscrição do contrato de trabalho subordinado permanente como forma lícita de tal relação, sendo insuprivelmente nulos os contratos de tal natureza que quaisquer órgãos e agentes da Administração venham porventura a celebrar contra as disposições imperativas da lei, com as consequências associadas à nulidade.
4º Termos em que não deverá, por inutilidade, conhecer-se do recurso; ou, se assim se não entender quanto à segunda questão suscitada, deverá o mesmo ser julgado improcedente'.
Suscitada pelo Ministério Público a questão prévia do não conhecimento do recurso, a recorrente foi notificada para responder, o que fez, tomando posição contrária à expendida pelo Ministério Público no sentido de se conhecer do recurso interposto em todos os seus aspectos.
Corridos que foram os vistos legais cumpre apreciar e decidir. II - FUNDAMENTOS
3. - Torna-se antes de mais necessário resolver a questão prévia suscitada pelo Ministério Público, a qual se desdobra, afinal, em duas diferentes questões prévias, como nota a recorrente na sua resposta.
Com efeito, de um lado, está a questão do não conhecimento do recurso relativa à questão da inconstitucionalidade do artigo
72º do Código de Processo do Trabalho (adiante, CPT), respeitante ao entendimento que a Relação fez de tal preceito; e, por outro lado, levanta o Ministério Público a questão da utilidade na apreciação do recurso relativo às normas questionadas e respeitantes ao regime específico de constituição da relação jurídica de emprego na Administração Pública.
Vejamos cada uma das questões separadamente.
4. - A questão da inconstitucionalidade do artigo 72º do CPT apenas foi suscitada pela recorrente no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, como claramente resulta do texto deste mesmo requerimento:'mas agora é também a do artº 72º do C.P.T. - da forma insólita e imprevisível como foi interpretada e aplicada no Acórdão ora recorrido - sendo neste caso, os preceitos constitucionais violados os dos artºs 2º, 205º e 207º, todos da mesma C.R.P.'. E, a seguir, no mesmo requerimento:'E a última, resultante da forma como precisamente o acórdão ora recorrido interpretou e aplicou a indicada regra do artº 72º do C.P.T. - é-o no primeiro momento processual em que, por tal motivo, o pode ser, ou seja, no presente requerimento.'
Ora, sendo o presente recurso interposto com fundamento no artigo 70º, nº1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, pode desde já adiantar-se que não pode tomar-se conhecimento deste recurso por falta de um dos requisitos de admissibilidade.
De facto, nos termos do que se dispõe nesta norma - que reproduz o artigo 280º, nº1, alínea b) da Constituição - constituem pressupostos de admissibilidade de tal tipo de recurso, o dever ter sido suscitada durante o processo, pelo recorrente, a inconstitucionalidade de dada norma e de esta norma ter sido aplicada na decisão recorrida como seu fundamento normativo.
Este Tribunal, em jurisprudência reiterada e uniforme, vem entendendo que a locução 'durante o processo' deve ser tomada não num sentido puramente formal - que tornaria possível a suscitação até à extinção da instância - mas com um sentido funcional, de modo que o tribunal recorrido possa ainda conhecer da questão enquanto se não tiver esgotado o seu poder jurisdicional, o que, em princípio ocorre com a prolação da sentença. De facto, na medida em que se está perante um recurso para o Tribunal Constitucional, pressupõe-se a existência de uma decisão anterior do tribunal «a quo» sobre a questão de constitucionalidade que é objecto do recurso.
No caso em apreço, a decisão recorrida, quanto a este aspecto, insere-se numa jurisprudência uniforme dos tribunais do trabalho e das Secções Sociais das Relações e do Supremo Tribunal de Justiça. A recorrente podia ter suscitado esta questão de constitucionalidade no momento em que recorreu para a Relação, só o tendo feito agora, no próprio requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, momento que já não é o adequado para suscitar a inconstitucionalidade de tal norma, pelo que se não conhecerá de tal matéria.
5. - A segunda questão prévia suscitada pelo Ministério Público tem a ver com o conteúdo das restantes normas que vêm questionadas pela recorrente. Efectivamente, sustenta o Ministério Público que o recorrente circunscreve a questão de constitucionalidade à apreciação das normas dos artigos 14º e 43º do Decreto-Lei nº 427/89, de 7 de Dezembro, normas estas que se inserem em diploma legal editado pelo Governo nos termos da alínea c) do nº1 do artigo 201º da Constituição, isto é, diploma de desenvolvimento dos princípios ou bases gerais de regimes jurídicos constantes de outras leis.
Argumenta o Ministério Público que o regime jurídico constante das normas questionadas pela recorrente não é inovatório relativamente ao que já constava do diploma (Decreto-Lei nº 184/89, de 2 de Junho) que estabeleceu as bases gerais do regime que o diploma questionado veio desenvolver. Assim, seria inútil conhecer do recurso, pois, a admitir-se que o Tribunal se pronunciasse pela inconstitucionalidade, o litígio acabaria por ser resolvido com o recurso a outras normas de conteúdo idêntico, o que conduziria por direitas contas à mesma solução jurídica do pleito.
Num aspecto tem razão o Ministério Público: parece claro que o regime jurídico desenvolvido pelas normas questionadas é idêntico ao que consta do diploma que estabeleceu os princípios gerais a desenvolver. Mas, o tribunal entende que daí não pode decorrer o não conhecimento do recurso por inutilidade processual.
Desde logo, a decisão recorrida não aplicou as normas do Decreto-Lei nº 184/89, de 7 de Dezembro. Por isso, nunca a parte as poderia questionar no presente recurso. As partes processuais só podem impugnar a constitucionalidade das normas que as decisões em recurso aplicam: no caso, foi o que fez a recorrente. O recurso de constitucionalidade sempre terá utilidade, caso se cumpram os pressupostos processuais de admissibilidade - as normas questionadas que fundamentaram o recurso, no caso de virem a ser consideradas inconstitucionais, não podem mais servir para fundamentar qualquer decisão, no processo. O facto de, em nova decisão, se virem a utilizar normas com o mesmo conteúdo que porventura levam a decisão similar da que foi proferida, não retira a utilidade imediata do recurso, que não pode deixar de ser a pronúncia pela inconstitucionalidade normativa (caso seja essa a solução correcta) e a consequente reformulação do julgado, que não poderá basear-se, de novo, em tais normas.
Não pode, por isso, falar-se, nesta perspectiva, em inutilidade do recurso, conforme entende o ilustre Procurador-Geral adjunto, pelo que esta questão prévia que suscitou, deve ser indeferida, tomando-se conhecimento do recurso relativamente às normas dos artigos 14º e 43º do Decreto-Lei nº 427/89, de 2 de Junho.
Nada mais havendo que obste ao conhecimento da questão suscitada, cumpre apreciá-la.
6. - Importa, antes de mais, delimitar o pedido, equacionando correctamente a questão que vem posta nos autos.
Com efeito, a recorrente no seu requerimento de interposição do presente recurso refere que pretende que o Tribunal aprecie a questão da constitucionalidade dos artigos 14º e 43º do Decreto-Lei nº 427/89, de 7 de Dezembro.
Porém, estas normas são normas complexas e são susceptíveis de serem apreciadas em diferentes dimensões normativas.
Assim, nas suas alegações para a Relação a recorrente formula a seguinte conclusão:'Deve declarar-se inconstitucional a alínea a) do nº1 do artigo 14º e do nº1 do artigo 43º do DL 427/89, quando aplicado ao caso vertente, na medida em que ao declarar-se a nulidade do contrato de trabalho subordinado com base no preceituado no artigo 294º do C. Civil, faz recair os efeitos perversos da violação daqueles preceitos sobre a própria vítima - o trabalhador, o que seguramente não está contido na ratio legis nem no espírito do legislador.
Nas contra-alegações que apresentou nada refere e, após o acórdão da Relação, o pedido de aclaração visou apenas esclarecer qual a posição do acórdão sobre o despedimento verbal da Autora, a qualificação do seu contrato e a questão da arguição das nulidades.
Nas alegações apresentadas neste Tribunal, a recorrente pretende que se aprecie a interpretação feita na decisão recorrida dos artigos
14º e 43º, no sentido de ser o próprio Estado (considerado como infractor à lei) a beneficiar da ilegalidade 'que ele próprio criara e mantivera fraudulentamente
(através do expediente dos chamados «recibos verdes»), recaindo as consequências da violação da lei tão só sobre a própria vítima, o que violaria o princípio da igualdade, colocando o Estado prevaricador numa situação mais favorável do que a de qualquer empregador privado. (conclusões 4º a 8º ).
Não terminam aqui as dimensões interpretativas possíveis de tais normas, sendo certo que o Tribunal apenas pode conhecer da dimensão que foi efectivamente aplicada na decisão recorrida.
Vejamos.
As normas questionadas têm o seguinte teor:
'Artigo 14º
(Modalidades e efeitos)
1-O contrato de pessoal só pode revestir as modalidades de: a. Contrato administrativo de provimento; b. Contrato de trabalho a termo certo.
2-O contrato administrativo de provimento confere ao particular outorgante a qualidade de agente administrativo.
3-O contrato de trabalho a termo certo não confere a qualidade de agente administrativo e rege-se pela lei geral sobre contratos de trabalho a termo certo, com as especialidades constantes do presente diploma.'
Pelo seu lado, o artigo 43º, sob a epígrafe Prevalência tem a seguinte redacção:
'1 - A partir da data da entrada em vigor do presente diploma é vedada aos serviços e organismos referidos no artigo 2º a constituição de relações de emprego com carácter subordinado por forma diferente das previstas no presente diploma.
2 - Os funcionários e agentes que autorizem, informem favoravelmente ou omitam informações relativamente à admissão ou permanência de pessoal em contravenção com o disposto no presente diploma são solidariamente responsáveis pela reposição das quantias pagas, para além da responsabilidade civil e disciplinar que ao caso couber.'
Desde logo, do objecto do recurso está manifestamente afastada a estatuição destas normas no que respeita aos contratos administrativos de provimento: efectivamente, a decisão recorrida - que, neste aspecto, assumiu a posição da sentença de 1ª instância - concluiu que, no caso, se estava perante um contrato de trabalho, pelo que afastada fica a matéria relativa aos contratos administrativos de provimento.
Partindo, assim, de um facto assente: a existência de um contrato de trabalho (facto que este Tribunal tem que aceitar), o que a recorrente verdadeiramente questiona é que as consequências da sua nulidade recaiam exclusivamente sobre o trabalhador, sendo o Estado-patrão o único a beneficiar da própria violação da lei, sem assumir responsabilidades desta violação, colocando-se em situação de privilégio injustificado relativamente aos outros patrões, tendo total disponibilidade sobre as relações laborais que se tornariam assim, totalmente precárias, sempre em benefício do ‘Estado-violador’, sobre quem impendem afinal as mais intensas responsabilidades para assegurar o princípio da segurança no emprego.
Assim, a posição da recorrente que resulta das alegações para a Relação, a dimensão normativa que a recorrente ali questiona é a interpretação resultante da conjugação dos artigos 14º e 43º segundo a qual, antes de declarada a nulidade do contrato de trabalho celebrado em contravenção com aqueles preceitos, o Estado possa rescindir verbalmente tal contrato recaindo apenas sobre o trabalhador os efeitos de tal nulidade.
Uma tal interpretação violaria os artigos 2º, 13º, 22º e
53º da Constituição da República Portuguesa (adiante, CRP).
Mas, mesmo que se admita a correcção desta impostação da recorrente, o certo é que, basta uma análise perfunctória quer da sentença da 1ª instância quer do acórdão da Relação, para se concluir que em nenhuma destas decisões se aplicaram as normas questionadas com este sentido que decorrerá das alegações da recorrente.
De facto, na decisão proferida na 1ª instância considerou-se que a recorrente e autora só não beneficiou das consequências da ilicitude do despedimento, ocorrido antes de ser declarada a nulidade, por não ter peticionado na acção nem a reintegração nem a indemnização de antiguidade
(cfr. fls.132, dos autos); quanto ás prestações vencidas e vincendas - que peticionou - desde o 30 dia anterior à propositura da acção até à sentença, esta decisão não condenou o Estado pelo simples facto de, tendo declarado nulo o contrato, este não ter vigorado nem ter estado efectivamente em execução, nesse período.
Esta decisão limitou-se, portanto, a atender ao princípio do pedido e aos efeitos da declaração de nulidade do contrato em causa, tendo, por outro lado, considerado haver lugar ao pagamento de uma indemnização por danos morais.
Aliás, a recorrente não foi atingida por qualquer efeito da nulidade do contrato de trabalho diferente dos que podem atingir qualquer trabalhador por conta de outrém (artigo 15º da LCT). De facto, a Relação confirmou a sentença de 1ª instância quanto às prestações pedidas, por o contrato nulo não se ter executado e revogou aquela sentença quanto à indemnização por danos morais por considerar que os factos provados não eram suficientes para determinar a condenação, não tendo a Autora e recorrente pedido a reintegração ou a indemnização por despedimento.
É, assim, evidente que quer a decisão recorrida quer a que esta confirmou, nesta parte, não fizeram das normas dos artigos 14º e 43º da Decreto-Lei nº 427/89, a interpretação acima referida, pelo que dela o tribunal não conhecerá.
7. - Porém, o acórdão da Relação, conheceu expressamente da matéria relativa à 'alegada inconstitucionalidade da alínea a) do nº1 do artigo 14º e do nº1 do artigo 43º do DL 427/89' afirmando que 'não se vislumbra a existência de qualquer inconstitucionalidade em tais disposições legais, visto que delas apenas resulta que a contratação do pessoal para a função pública só pode ser feita por contrato administrativo de provimento e que a partir da sua entrada em vigor (6 de Novembro de 1989) não é permitida a contratação de pessoal a não ser nos termos do citado artº 14'.
Portanto, a dimensão normativa dos preceitos invocados pela recorrente que foi apreciada na decisão recorrida e que tem de se considerar questionada é a que estabelece a existência de um regime específico para os contratos de pessoal no âmbito da relação de emprego na Administração Pública.
Assim, a norma em apreciação é a que resulta da conjugação dos artigos 14º, nº1, alínea b) e 43º do Decreto-Lei nº 427/89, enquanto estabelece um regime específico e diferenciado do regime geral dos contratos de trabalho,
proibindo a constituição de relações de emprego com carácter subordinado por forma diferente das que nele se prevêem.
Esta dimensão normativa dos referidos preceitos, viola os artigos 2º, 13º e 53º da Constituição?
8. - Vejamos, de forma muito sintética, os traços gerais do regime em causa.
O diploma em que se inserem as normas questionadas e atrás transcritas - o Decreto-Lei nº 427/89, de 7 de Dezembro - foi emitido pelo Governo em desenvolvimento do regime jurídico estabelecido pelo Decreto-Lei nº
184/89, de 2 de Junho (que aprovou os princípios gerais sobre salários e gestão de pessoal na função pública), procurando definir-se nele o 'regime de constituição, modificação e extinção da relação jurídica de emprego na função pública' (artigo 1º).
As modalidades previstas para a constituição desta relação jurídica são a nomeação e o contrato. A nomeação (artigo 4º) é um acto unilateral da Administração, pelo qual se preenche um lugar do quadro e se visa assegurar, de modo profissionalizado, o exercício de funções próprias do serviço público que revistam carácter de permanência. O contrato de pessoal (artigo 14º) pode revestir duas modalidades: o contrato administrativo e o contrato de trabalho a termo certo e é, em qualquer delas, 'limitado a situações específicas claramente definidas, com características de excepcionalidade e transitoriedade'.
De acordo com o nº 3 do artigo 14º, o 'contrato de trabalho a termo certo não confere a qualidade de agente administrativo (ao contrário do contrato administrativo) e rege-se pela lei geral sobre contratos de trabalho a termo certo, com as especialidades constantes deste diploma'.
Estas especialidades referem-se à admissibilidade
(artigo 18º), à selecção de candidatos (artigo 19º), à estipulação do prazo e à renovação do contrato (artigo 20º) e, por último, ao estabelecimento de ‘limites
à celebração’ (artigo 21º).
A influenciar, de forma genérica, toda esta regulamentação das modalidades constitutivas do vínculo jurídico de emprego na Administração Pública, o Decreto-Lei nº 427/89 determina, no seu artigo 43º, a proibição da constituição de relações de emprego, com carácter subordinado, por forma diferente das previstas no diploma, com responsabilização dos funcionários e agentes que tal possibilitem.
Sendo o Decreto-Lei nº 427/89 um diploma de desenvolvimento e regulamentação do Decreto-Lei nº 184/89, de 2 de Junho, os princípios gerais agora desenvolvidos contêm-se já neste último diploma, que foi emitido pelo Governo no uso da autorização legislativa concedida pela Lei nº
114/88, de 30 de Dezembro, artigo 15º, alíneas a), b) e c), uma vez que é da exclusiva competência da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, legislar sobre matéria de bases do regime e âmbito da função pública (artigo
168º, nº1 alínea v, da Constituição - hoje, artigo 165º, nº1, alínea t)).
Assim, os artigos 4º a 12º do Decreto-Lei nº 184/89 contêm os princípios gerais do emprego na administração pública que, depois, os artigos 3º, 14º, 18º a 21º do Decreto-Lei nº 427/89 desenvolvem, na parte relativa aos contratos de trabalho a termo, como forma de constituição da relação jurídica de emprego na Administração Pública.
Destes preceitos legais resulta não só um regime de contratação restrito ao contrato de trabalho a termo certo, o qual não confere a qualidade de agente administrativo e cuja regulamentação específica é ainda mais apertada do que a prevista no regime geral do contrato de trabalho para esta modalidade, como também a proibição expressa de celebrar outro tipo de contratos com carácter subordinado, designadamente, de contratos sem prazo.
Com este particular regime, viola-se o princípio do Estado de direito democrático ou o princípio da igualdade?
9. - A Administração Pública, enquanto actividade é assegurada, directa ou indirectamente, por estruturas e organizações permanentes que realizam de modo regular e contínuo a satisfação das necessidade colectivas, cabendo à função pública, enquanto organização humana executar as tarefas próprias daquela estrutura orgânica conferindo-lhe a necessária estabilidade, permanência e efectividade. Assim, a função pública, enquanto conjunto de funcionários (empregados ou trabalhadores) vinculados a pessoas colectivas de direito público por relações jurídicas de emprego procura realizar a prossecução do interesse público - finalidade que a Administração Pública visa prosseguir
(artigo 266º, nº1, da CRP). Porém, se existem funções e tarefas administrativas que pressupõem para a sua realização eficaz uma relação de carácter profissional e permanente outras existem que são ou podem ser mais eficazmente asseguradas através de um estatuto precário e temporalmente delimitado.
A Administração dispõe da faculdade de escolher, nos termos da lei, as modalidades de organização ou os meios pelos quais se hão-de satisfazer as necessidades que constituem a sua razão de existir; mas, estando a Administração Pública subordinada à Constituição e à lei, tal faculdade não pode conduzir à arbitrariedade nem poderá levar a uma substituição generalizada dos vínculos de permanência e efectividade por contratações precárias.
Assim, tendo o Tribunal já decidido que a existência de contratos de trabalho com prazo certo não viola o princípio da segurança no emprego constante do artigo 53º da Constituição (veja-se o Acórdão nº 581/95, in
'Diário da República', Iª Série - A, de 22 de Janeiro de 1996) e admitindo que inexiste uma unificação entre o contrato de trabalho e a relação de emprego público (cf. Liberal Fernandes, 'A autonomia Colectiva dos Trabalhadores da Administração…', Coimbra Editora, pág. 112), tendo em atenção a faculdade do legislador de organizar a Administração Pública acima referida, é manifesto que o regime atrás descrito não viola o princípio do Estado de Direito democrático, quer na vertente do princípio da certeza e segurança jurídicas quer na do princípio da confiança.
Na verdade, a interpretação feita das normas dos artigos
14º e 43º não é uma interpretação injusta ou arbitrária, pois aplicou as disposições legais vigentes pela forma que entendeu mais correcta, de acordo com a previsibilidade do regime fixado.
Não existe também qualquer violação do princípio da igualdade porquanto o Tribunal Constitucional vem entendendo que este princípio entendido como limite objectivo da discricionaridade legislativa, não veda à lei a realização de distinções. Proíbe, antes, a adopção de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias - desde logo diferenciações de tratamento fundadas em categorias meramente subjectivas' ou 'desigualdades de tratamento materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável ou sem qualquer justificação objectiva e racional (neste sentido, o Acórdão nº 302/97, in
'Diário da República', IIª Série, de 18 de Junho de 1997 e demais jurisprudência aí citada).
III - DECISÃO:
Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide deferir a primeira das questões prévias suscitadas pelo Ministério Público (não conhecimento do recurso relativamente ao artigo 72º do Código de Processo do Trabalho), indeferir a segunda (relativamente ao não conhecimento do recurso da questão de constitucionalidade dos artigos 14º, nº1, alínea a) e 43º, nº1, do Decreto-Lei nº427/89, de 7 de Dezembro) e, quanto à questão de constitucionalidade apreciada, negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida na parte impugnada. Lisboa, 12 de Janeiro de 1999 Vítor Nunes de Almeida Maria Helena Brito Alberto Tavares da Costa Artur Maurício Paulo Mota Pinto Maria Fernanda Palma (com declaração de voto)
Declaração de voto
O presente acórdão não conheceu, em parte, o recurso de constitucionalidade por entender que não foram aplicadas pela decisão recorrida as normas dos artigos 14º, nº 1, alínea a), e 43º, nº 1, do Decreto-Lei nº
427/89, de 7 de Dezembro, na dimensão questionada pelo recorrente, segundo a qual a declaração de '... nulidade do contrato de trabalho subordinado ... faz recair os efeitos perversos da violação daqueles preceitos sobre a própria vítima, o trabalhador ...'. Ora, tendo votado a decisão constante do Acórdão, tenho dúvidas relativamente à não aplicação, ainda que meramente implícita, de tais normas naquela dimensão. Efectivamente, a decisão recorrida parece ter entendido que as normas legais citadas originam uma nulidade do contrato desprovida de consequências especiais, desenhadas em função da tutela da confiança e da boa fé do trabalhador.
Já quanto à parte da decisão em que se nega provimento ao recurso por julgar não inconstitucionais a consagração de um regime de tipicidade das modalidades de contrato de pessoal da Função Pública e a consequente proibição de contrato sem prazo para trabalhadores da Função Pública, acompanho sem reservas a doutrina do Acórdão, por entender que ela não colide com a garantia de segurança no emprego e com o princípio da igualdade (artigos 53º e 15º da Constituição). Na verdade, creio que a garantia de segurança no emprego abrange também os trabalhadores da Função Pública. Daqui resulta, nomeadamente, que eles não podem estar sujeitos ad aeternum a uma situação de precaridade, sendo forçoso que o seu vínculo se torne definitivo a partir de um determinado limite temporal, sem o que correm o risco de se frustrarem intoleravelmente expectativas de vida e desígnios de segurança. Todavia, esta tese não é contrariada, necessariamente, pela proibição de celebração de contratos sem prazo, uma vez que tal regra não é incompatível com a aquisição, por outros modos, de vínculo definitivo ao Estado por parte de trabalhadores da Função Pública que possuam determinado tempo de serviço. José Manuel Cardoso da Costa