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Processo n.º 547/99 Conselheiro Messias Bento
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. As empresas L...,GmbH e T....,SA interpõem o presente recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (1ª Secção), de 1 de Julho de 1999, que negou provimento ao recurso jurisdicional que, oportunamente, interpuseram do acórdão do Tribunal Administrativo Central, o qual, com fundamento na sua extemporaneidade, rejeitou a reclamação apresentada contra o despacho do Juiz deste último Tribunal, que mandou que o recurso contencioso de anulação por elas interposto da Resolução n.º 705/98, aprovada pelo Governo Regional da Madeira em
4 de Junho de 1998, seguisse a tramitação referida no artigo 4º do Decreto-Lei n.º 134/98, de 15 de Maio. Pedem se aprecie a constitucionalidade da norma constante do n.º 4 do dito artigo 4º do Decreto-Lei n.º 134/98, de 15 de Maio, a qual, em seu entender, viola o artigo 165º, n.º 1, alínea b), da Constituição, como sustentaram na alegação de recurso que interpuseram perante o Supremo Tribunal Administrativo.
Mediante aquela Resolução n.º 705/98, o Governo Regional da Madeira adjudicou ao agrupamento de empresas (constituído por Sg....; M....,GmbH - renovada E.....,GmbH; C....., SA; A.......,Lda; Tg....., SA; A....,SA; e S.....,GmbH), pelo montante de 19.520.323.863$00, a empreitada e a prestação de serviços objecto do concurso público n.º 10/97 para a 'Concepção/Construção/Operação de Ampliação e Remodelação da Estação de Tratamento de Resíduos Sólidos Urbanos da Meia Serra (ETRSU)'.
Neste Tribunal, as recorrentes concluíram como segue a sua alegação:
1. O DL n.º 134/98, de 15 de Maio, trata de matéria relativa a direitos e garantias dos administrados, como decorre do disposto no n.º 4 do artigo 268º da CRP.
2. A estes direitos aplica-se o regime dos direitos, liberdades e garantias – art. 17º da CRP.
3. É da exclusiva [competência] da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, legislar sobre direitos, liberdades e garantias – alínea b) do n.º 1 do artigo 165º da CRP.
4. O Governo da República não solicitou, nem obteve, qualquer pedido de autorização legislativa à Assembleia da República para aprovar o DL n.º 134/98, de 15 de Maio.
5. Ao omitir esta formalidade legal essencial do processo legislativo, o Governo desrespeitou directamente a supracitada norma legal do artigo 165º da CRP;
6. Desta forma, o DL n.º 134/98, de 15 de Maio, está irremediavelmente ferido de inconstitucionalidade orgânica. Nestes termos [...], deve dar-se integral provimento ao presente recurso de fiscalização em concreto da constitucionalidade, com todas as consequências legais, designadamente:
(1). Declarar-se a inconstitucionalidade orgânica do DL n.º 134/98, de 15 de Maio;
(2). Declarar-se a inaplicabilidade do referido DL n.º 134/98, de 15 de Maio, designadamente do seu artigo 4º, ao processo sub judice.
O GOVERNO REGIONAL DA MADEIRA concluiu a sua alegação como segue:
1.As recorrentes fundam o presente recurso na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro.
2. De acordo com o preceituado neste artigo não basta que a recorrente tenha suscitado, durante o processo, a inconstitucionalidade que pretende agora ver apreciada: é também condição necessária que essa norma tenha sido efectivamente aplicada na decisão recorrida.
3. A decisão recorrida (acórdão do STA, de 1/07/99) não aplicou o Decreto-Lei n.º 134/98, de 15 de Maio, cuja inconstitucionalidade foi, todavia, suscitada no processo.
4. Falta, por isso, a verificação de um dos pressupostos estabelecidos no artigo
70º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional.
5. Desta forma, não pode o Tribunal Constitucional conhecer deste recurso.
6. Seja como for, o Decreto-Lei n.º 134/98, de 15 de Maio, não padece de qualquer inconstitucionalidade orgânica.
7. As soluções consagradas no diploma em apreço, por tratarem de aspectos puramente adjectivos, estão excluídas do âmbito da reserva, mesmo relativa, da Assembleia da República.
8. Nesta medida, o artigo 165º, n.º 1, alínea b), não foi violado, o que impossibilita qualquer julgamento de inconstitucionalidade.
Como a entidade recorrida suscitou a questão prévia do não conhecimento do recurso, foram sobre ela ouvidas as recorrentes, que nada disseram.
2. Cumpre decidir.
III. Fundamentos:
3. A questão prévia. Como se referiu, a entidade recorrida sustenta que, 'apesar de as recorrentes terem suscitado a inconstitucionalidade da norma do artigo 4º do Decreto-Lei n.º
134/98, de 15 de Maio', não deve conhecer-se do recurso, uma vez que – disse -
'o Supremo Tribunal Administrativo ao negar provimento ao recurso interposto pelas ora recorrentes da decisão do Tribunal Central Administrativo, aplicou tão-só e exclusivamente a norma do artigo 6º, n.º 1, da Lei de Processo dos Tribunais Administrativos'. As recorrentes nada responderam a esta asserção.
A recorrida não tem, contudo, razão, como vai ver-se.
Para negar provimento ao recurso interposto do acórdão do Tribunal Administrativo Central - e, assim, para confirmar a rejeição, com fundamento na extemporaneidade da mesma, da reclamação apresentada contra o despacho do Juiz deste último Tribunal, que mandou que o recurso contencioso de anulação, interposto pelas recorrentes da Resolução n.º 705/98, aprovada pelo Governo Regional da Madeira em 4 de Junho de 1998, seguisse a tramitação referida no artigo 4º do Decreto-Lei n.º 134/98, de 15 de Maio -, o Supremo Tribunal Administrativo começou por ponderar que 'a única decisão do acórdão recorrido consistiu em considerar intempestiva a reclamação, tendo em conta que, no despacho de folhas 60, ficara já decidido que o recurso seguia a tramitação do artigo 4º do Decreto-Lei n.º 134/98, de 15 de Maio, pelo que, dado o seu carácter urgente, o prazo para a sua apresentação corria em férias, nos termos do artigo 6º, n.º 1, da Lei de Processo dos Tribunais Administrativos (LPTA), terminando, assim, no dia 31/12/98, ou quando muito, com multa, no dia 5/1/98'. Disse, a seguir: 'é esta decisão que constitui objecto do presente recurso', por isso que 'só ela e os respectivos fundamentos podem ser aqui apreciados'; e 'por esta razão são irrelevantes todas as considerações tendentes a demonstrar que o acórdão fez errada aplicação e interpretação do Decreto-Lei n.º 134/98, de 15 de Maio'. Depois de se interrogar sobre se 'a reclamação foi ou não tempestiva', disse que tal 'se reconduz a apurar se o artigo 6º, n.º 1, da LPTA é aplicável ao recurso contencioso regulado no mencionado Decreto-Lei [n.º 134/98, de 15 de Maio], aplicação que as recorrentes contestam'. À questão assim colocada respondeu que este artigo 6º, n.º 1, é aplicável a esse recurso, uma vez que,
'conjugando o disposto nos nºs 1 e 4 do artigo 4º, conclui-se que a remissão feita no primeiro se reporta às normas da LPTA que aí regulam os processos urgentes'. Por isso – disse -, tal recurso 'corre em férias como qualquer outro processo urgente'. Por fim, insistiu: 'não resta a menor dúvida de que a reclamação apresentada no dia 14/1/99 era manifestamente extemporânea, como o seria, caso o tivesse sido no dia 5/1/99, pelo que ao rejeitá-la o acórdão recorrido não violou o referido preceito'.
Como se vê, o acórdão recorrido, para confirmar o julgamento de extemporaneidade da reclamação apresentada contra o despacho que mandou que o recurso contencioso interposto pelas recorrentes seguisse a tramitação referida no artigo 4º do Decreto-Lei n.º 134/98, de 15 de Maio, entendeu que este artigo 4º, quando remete para a LPTA, está a mandar aplicar-lhe o artigo 6º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de Julho, que dispõe que os processos urgentes correm em férias. Ou seja: o acórdão recorrido aplicou, como norma remissiva ou reenviante, o artigo 4º do Decreto-Lei n.º 134/98, de 15 de Maio, e, como norma reenviada, o artigo 6º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de Julho. Aplicou-o, embora se não tenha pronunciado, de forma expressa, sobre a questão de constitucionalidade que a tal respeito lhe fora colocada.
Improcede, assim, a questão prévia suscitada pela recorrida. Deve, por isso, passar-se ao conhecimento do recurso, começando por identificar-se a norma sub iudicio.
5. A norma sub iudicio. O Decreto-Lei n.º 134/98, de 15 de Maio, a que pertence a norma sub iudicio, transpôs para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 89/665/CEE, do Conselho, de 21 de Dezembro. Como se diz no respectivo preâmbulo, esta Directiva 'respeita a procedimentos a adoptar em matéria de recursos no âmbito da celebração de contratos de direito público de obras, de prestação de serviços e de fornecimentos de bens'. O mencionado decreto-lei 'estabelece o regime jurídico do recurso contencioso dos actos administrativos relativos à formação dos contratos de empreitada de obras públicas, de prestação de serviços e de fornecimento de bens' (cf. o respectivo artigo 1º). Acrescenta no artigo 2º, n.º 1, que 'todos os actos administrativos relativos à formação do contrato que lesem direitos ou interesses legalmente protegidos são susceptíveis de recurso contencioso' - recurso que – prescreve o n.º 1 do artigo 3º - pode ser interposto 'no prazo de
15 dias a contar da notificação dos interessados ou, não havendo lugar a notificação, a partir do conhecimento do acto'. O artigo 4º deste diploma legal respeita à tramitação do recurso e reza assim:
1. Aos recursos previstos neste diploma é aplicável o disposto no Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e na Lei de Processo dos Tribunais Administrativos relativamente aos recursos contenciosos de actos administrativos, salvo o preceituado nos números seguintes.
2. É apenas admissível prova documental.
3. Só haverá alegações no caso de ser produzida ou requerida prova com a resposta ou a contestação.
4. Os recursos têm carácter urgente, devendo observar-se os seguintes prazos: a). Quinze dias para a resposta ou contestação e para as alegações, correndo simultaneamente para todos os recorrentes ou para todos os recorridos; b). Dez dias para a decisão do juiz ou do relator ou para este submeter o processo a julgamento; c). Cinco dias para os restantes casos.
No recurso de constitucionalidade, está apenas em causa o n.º 4 do artigo 4º acabado de transcrever – recte, o corpo desse n.º 4, que qualifica como processo urgente o recurso contencioso de que trata (conjugado, naturalmente, com o n.º 1 do mesmo artigo, na parte em que este manda aplicar aos recursos previstos neste diploma o disposto na Lei de Processo dos Tribunais Administrativos relativamente aos recursos contenciosos de actos administrativos).
De facto, o acórdão recorrido lançou mão deste artigo 4º para concluir que, sendo urgentes os recursos contenciosos interpostos dos actos administrativos referentes à formação dos contratos de empreitada de obras públicas, de prestação de serviços e de fornecimento de bens, se lhes aplica a regra do artigo 6º da Lei de Processo dos Tribunais Administrativos, que preceitua que os processos urgentes correm em férias judiciais.
6. A questão de constitucionalidade. Sustentam as recorrentes que a norma sub iudicio viola o artigo 165º, n.º 1, alínea b), da Constituição, pois – dizem –, como decorre do disposto no n.º 4 do artigo 268º da Constituição, 'trata de matéria relativa a direitos e garantias dos administrados', que são 'direitos constitucionais de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias', por isso que, por força do disposto no artigo
17º da Constituição, se lhes aplique 'o regime dos direitos, liberdades e garantias'.
As recorrentes não têm razão.
É certo que o artigo 165º, n.º 1, alínea b), da Constituição preceitua que é da exclusiva competência da Assembleia da República (salvo autorização ao Governo) legislar sobre direitos, liberdades e garantias. E esta reserva legislativa – tal como decorre do artigo 17º da Constituição e este Tribunal decidiu no acórdão n.º 161/99 (ainda por publicar) – abrange não apenas os direitos, liberdades e garantias do título II da parte I da Constituição (direitos, liberdades e garantias de carácter pessoal; direitos, liberdades e garantias de participação política; e direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores), como também os direitos fundamentais de natureza análoga, que é o que são os direitos e garantias dos administrados enunciados no artigo 268º da Constituição. Abrange-os, ao menos, naquela dimensão em que tais direitos assumem a natureza de uma verdadeira garantia [cf. neste sentido, também o acórdão n.º 373/91 (publicado no Diário da República, I série-A, de 6 de Novembro de 1991)]. Abrange, por isso, nessa medida, o direito ao recurso contencioso, assegurado pelo n.º 4 do citado artigo 268º, quando prescreve que
'é garantido aos administrados tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos', incluindo, nomeadamente, 'a impugnação de quaisquer actos administrativos que os lesem, independentemente da sua forma'. De resto, é o próprio artigo 165º, n.º 1, alínea s), que inclui nessa reserva legislativa as garantias dos administrados.
Por conseguinte, inclui-se na reserva legislativa de competência da Assembleia da República toda a regulamentação atinente ao direito ao recurso contencioso, ou seja, da garantia dos particulares traduzida na faculdade de impugnarem perante os tribunais, com fundamento em ilegalidade, os actos administrativos lesivos dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos. Tudo o que seja matéria legislativa, e não apenas as restrições do direito em causa – frisou o Tribunal no citado acórdão n.º 161/99, recordando, de resto, o que, anteriormente e a outro propósito, fazendo sua a lição de AFONSO RODRIGUES QUEIRÓ, dissera no acórdão n.º 74/84 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 4º, página 54) – há-de constar de lei parlamentar ou de decreto-lei parlamentarmente autorizado.
Simplesmente, uma norma como a que aqui está sub iudicio, que dispõe que, sendo urgentes os recursos contenciosos interpostos dos actos administrativos referentes à formação dos contratos de empreitada de obras públicas, de prestação de serviços e de fornecimento de bens, se lhes aplica a regra do artigo 6º da Lei de Processo dos Tribunais Administrativos, que preceitua que os processos urgentes correm em férias judiciais, não versa sobre o direito ao recurso contencioso: de facto, uma norma assim não respeita àquela dimensão em que este direito assume a natureza de uma verdadeira garantia – scilicet, da garantia dos particulares traduzida na faculdade de impugnarem perante os tribunais, com fundamento em ilegalidade, os actos administrativos lesivos dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos. E, assim, tal norma não versa sobre direitos, liberdades e garantias; designadamente, não versa sobre o direito de acesso aos tribunais, na dimensão garantística que exige que a aprovação da respectiva disciplina legal se faça após prévio debate parlamentar e com observância da regra da maioria. Tal norma versa, antes, sobre matéria de processo – recte, sobre processo administrativo.
Ora, as normas de índole processual - salvo tratando-se de normas de processo constitucional, de processo penal ou que integrem o regime geral do processo disciplinar ou contraordenacional [cf. o actual artigo 165º, alíneas a) e b), da Constituição] - não se inscrevem na reserva de parlamento [cf., a propósito, entre outros, o citado acórdão n.º 161/99 e o acórdão n.º 674/95 (publicado no Diário da República, II série, de 23 de Março de 1996)]. Foi por assim entender que este Tribunal, já antes, nos acórdãos nºs. 404/87 e
132/88 (publicados no Diário da República, II série, de 21 de Dezembro de 1987 e de 8 de Setembro de 1988, respectivamente), concluíra que não constituem matéria da reserva legislativa parlamentar 'as modificações da competência judiciária a que deva atribuir-se simples carácter processual'.
A norma sub iudicio não é, assim, inconstitucional. Há, por isso, que negar provimento aso recurso.
III. Decisão: Pelos fundamentos expostos, o Tribunal decide:
(a). negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar a decisão recorrida quanto ao julgamento da questão de constitucionalidade;
(b). condenar as recorrentes nas custas, com 15 unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 23 de Fevereiro de 2000 Messias Bento Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza José de Sousa e Brito Luís Nunes de Almeida