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Proc. nº 282/93
2ª Secção Relator: Cons. Sousa e Brito Acordam na 2ª secção do Tribunal Constitucional: I – Relatório
1 – Nos autos de instrução contraditória com o nº 86/92-B, a correr os seus termos no 2º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal do Porto, o assistente M...
(ora recorrente) veio requerer a confiança do processo, o que lhe foi indeferido, com base no preceituado no artigo 70º, §§ 2º e 3º, do Código de Processo Penal de 1929.
2 – Inconformado com o teor de tal despacho o assistente recorreu para o Tribunal da Relação do Porto, que, por decisão de 17 de Fevereiro de 1993, veio a negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
3 – É desta decisão que vem interposto, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo
70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, o presente recurso de constitucionalidade. Pretende o recorrente, nos termos do respectivo requerimento de interposição, ver apreciada a constitucionalidade da norma que na interpretação da decisão recorrida se extrai do artigo 70º § 3 do Código de Processo Penal de 1929, por violação do princípio da igualdade de armas implicitamente consagrado no artigo 32º da Constituição.
4 - Já neste Tribunal foi o recorrente notificado para alegar, o que fez, tendo concluído nos seguintes termos:
'1. O acórdão recorrido, ao não mandar notificar o ora recorrente, após a prolação do 'visto' a que se refere o artigo 664º do Código de Processo Penal de
1929, dado que a propósito do parecer alegadamente permitido e consubstanciador de tal visto, violou o disposto no nº 1 do artigo 32º da Constituição.
2. Pois o digno Procurador-Geral adjunto, no referido parecer, assumiu uma posição autónoma, e nova, visando prejudicar a argumentação aduzida pelo ora recorrente. Por conseguinte,
3. Como é consabido, não se deu observância a um requisito fundamental do princípio da igualdade de armas, como, de resto, em termos parcialmente divergentes, mas, no essencial convergentes, foi já julgado pelos acórdãos deste Tribunal citados, respectivamente, no processo 310/87, da 2ª Secção, e no processo 398/89, da 1ª Secção, entre muitos outros. Por outro lado,
4. Contrariamente ao que se julgou no acórdão recorrido, a problemática do segredo de justiça não é aquela que determinou de forma imediata o legislador ao cunhar a norma do parágrafo 3º do artigo 70º do Código de Processo Penal de
1929. Na verdade,
5. Se, no limite, se pode afirmar que ela não é também estranha a tal questão, a verdade é que só uma interpretação extremamente conceptualista poderá assim concluir.
6. Pois, através da referida norma, teve-se em vista, fundamentalmente, disciplinar, ao nível do processo penal, as circunstâncias verificadas, as quais
é lícito às «partes», na fase da instrução contraditória, obter «confiados». Assim,
7. Na irrecorrência de razões substanciais que coonestem o pressuposto básico do qual partiu o Tribunal à quo, a conclusão salta aos olhos:
8. A norma do Código de Processo Penal de 1929 em questão, viola o princípio da igualdade de armas entre os diversos sujeitos processuais.
9. Por não se ver razão séria com base na qual o Ministério Público possa consultar o processo no remanso do seu gabinete, e não se conceder idêntica faculdade às partes, maxime ao assistente, o qual no processo penal tem o estatuto de auxiliar do Ministério Público. Consequentemente,
10. O entendimento sufragado é infundamentado, desrazoável e arbitrário,
11. Conduzindo à inconstitucionalidade material da norma referida, por violação do disposto nos nºs 1 e 5 do artigo 32º, e nº 2 do artigo 18º, todos da Constituição da República. Logo,
12. O Tribunal Recorrido julgou, na sequência do exposto, anticonstitucionalissimamente.
13. Pelo que, declarada a inconstitucionalidade material do parágrafo 3º do artigo 70º do Código de processo Penal de 1929, deve ser ordenada a remessa do processo ao Tribunal da Relação do Porto para que se julgue em conformidade'.
5. Igualmente notificado para alegar, o Procurador-Geral Adjunto em exercício neste Tribunal concluiu no sentido da não inconstitucionalidade do § 3 do artigo
70º do Código de Processo Penal de 1929 e, consequentemente, no sentido da improcedência do recurso.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir. II – Fundamentação
6. Questão prévia. Delimitação do objecto do recurso. Nos termos do requerimento de interposição do recurso, o recorrente pretende ver apreciada a constitucionalidade da norma que na interpretação da decisão recorrida se extrai do artigo 70º, § 3, do Código de Processo Penal de 1929, por, no seu entender, tal norma ser violadora do princípio da igualdade de armas consagrado no artigo 32º da Constituição. Verifica-se, porém, que nas subsequentes alegações que produziu neste Tribunal o recorrente vem ampliar o objecto assim delineado. Pretende agora o recorrente - para além de ver apreciada a alegada inconstitucionalidade da norma que na interpretação da decisão recorrida se extrai do artigo 70º, § 3, do Código de Processo Penal de 1929 - ver ainda apreciada a constitucionalidade do artigo 664º do Código de Processo Penal de
1929, por alegada violação do disposto no nº 1 do artigo 32º da Constituição. Não pode, porém, nesta parte, conhecer-se do objecto do recurso. Como este Tribunal tem repetidamente afirmado, o requerimento de interposição do recurso é o acto idóneo para a fixação do respectivo objecto, não podendo o recorrente, nas subsequentes alegações ou em outra peça processual posterior, ampliar a outras normas o objecto assim delineado (nesse sentido, entre muitos, o acórdão nº 366/96, in Diário da República, 2ª Série, de 10 de Maio de 1996). Pelo exposto, não se toma conhecimento do recurso na parte em que é impugnada a norma do artigo 664º do Código de Processo Penal de 1929, que assim fica limitado à apreciação da constitucionalidade da norma que na interpretação da decisão recorrida se extrai do artigo 70º, § 3, do mesmo diploma legal.
7. É o seguinte o teor artigo 70º, § 3, do Código de Processo Penal de 1929:
'Durante a instrução contraditória as partes podem consultar o processo, quando se encontre na secretaria.' No entendimento do recorrente a norma supra transcrita, na interpretação que lhe foi dada pela decisão recorrida, viola o princípio da igualdade de armas e, nessa medida, atenta contra o disposto no artigo 32º da Constituição.
8. Cumpre, antes de mais, delimitar com rigor o sentido normativo que a decisão recorrida extrai do artigo 70º, § 3, do Código de Processo Penal de 1929, e que o recorrente reputa de inconstitucional, por violação do princípio da igualdade de armas consagrado no artigo 32º da Constituição. Logo nas alegações que apresentou no Tribunal da Relação do Porto - posição que reafirmou nas alegações que apresentou neste Tribunal - o recorrente disse que a violação do princípio da igualdade de armas resultaria da circunstância de o Tribunal Recorrido ter interpretado aquele § 3º no sentido de que a expressão
«partes» não abrange o Ministério Público, que, portanto, ainda nas palavras do recorrente (vide conclusão 9º das alegações de recurso apresentadas neste Tribunal) pode 'consultar o processo no remanso do seu gabinete, e não se concede idêntica faculdade às «partes», maxime ao assistente, o qual no processo penal tem o estatuto de auxiliar do Ministério Público'.
É este sentido normativo – segundo o qual o Ministério Público, por não estar sujeito à regra do § 3 do artigo 70º, pode consultar o processo no seu gabinete, enquanto que os outros intervenientes processuais apenas o podem fazer na secretaria - que, na perspectiva do recorrente, é violador do princípio da igualdade de armas, constitucionalmente consagrado no artigo 32º, nº 1 da Constituição. E, de facto, foi esse o sentido normativo que a decisão recorrida extraiu do preceito em análise. No acórdão recorrido, escreveu-se, designadamente, que:
'O Ministério Público não está abrangido pela disciplina do citado artigo, já que não pode considerar-se «parte» no processo. O Ministério Público é um órgão autónomo de administração da justiça (...). Não sendo, pois, o Ministério Público, verdadeira parte, em sentido técnico, não está subordinado ao § 3º do artigo 70º do C. P. Penal de 1929, como se referiu. Quanto ao princípio da igualdade de armas, entre a acusação e a defesa, dir-se-á que não se trata de uma igualdade matemática ou lógica (...). O princípio da igualdade de armas só poderia considerar-se violado quando, em face de uma concreta conformação processual, se possa considerar
«substancialmente discriminatória à luz das finalidades do processo penal» a posição do M.P. e do arguido, o que não é, decididamente, o caso dos autos. O legislador entendeu salvaguardar melhor o segredo de justiça, permitindo apenas a consulta do processo, nesta fase processual, caso se encontre na secretaria, muito embora, pelo confronto dos §§ 2 e 3 do artigo 70º do C. P. Penal de 1929, se possa concluir que aquele segredo se encontra relativizado na fase da instrução contraditória. Contudo, essa maior flexibilidade, está sempre limitada pelo § 3 do artigo 70º do C. P. Penal de 1929, não havendo, como não há, ainda pronúncia'. A questão de constitucionalidade que agora constitui objecto do processo pode, pois, ser enunciada nos seguintes termos: ´é inconstitucional, designadamente por violação do princípio da igualdade de armas consagrado no artigo 32º, nº1, da Constituição, a norma do artigo 70º, § 3, do Código de Processo Penal de
1929, quando interpretada no sentido de que, durante a instrução contraditória, as partes apenas podem consultar o processo quando este se encontre na secretaria, enquanto que o Ministério Público, por não estar abrangido pelo
âmbito da previsão do preceito, o pode fazer no seu gabinete ?
9. Colocada a questão nestes termos, como deve sê-lo, entendemos que a resposta a dar não pode deixar de ser negativa. Este Tribunal, no seu acórdão nº 124/92 (Acórdãos do Tribunal Constitucional,
21º vol., pp. 467 e ss.) teve já oportunidade de se pronunciar sobre uma questão em tudo idêntica à dos autos. Estava em causa, então, o § 2 do artigo 70º do Código de Processo Penal de 1929, quando interpretado no sentido de não consentir, como na hipótese que é objecto dos autos, a confiança do processo para exame no escritório do advogado (no caso do arguido). Sustentou o então recorrente - como sustenta também o agora recorrente - que tal norma, na interpretação que lhe foi dada pela decisão recorrida, era violadora do princípio da igualdade de armas entre a acusação e a defesa, bem como do princípio do contraditório. A esse propósito, ponderou então o Tribunal Constitucional:
'Como decorre do disposto no artigo 70º do Código de Processo Penal de 1929, «o processo penal é secreto até ser notificado o despacho de pronúncia ou equivalente ou até haver despacho notificado que mande arquivar o processo». O princípio do segredo de justiça, aqui contemplado, não deixa de influenciar o modo como se concretiza o acesso das partes ao respectivo processo, enquanto este se encontra coberto pelo regime dali derivado. A esta luz, poderá, inclusivamente, sustentar-se a inadmissibilidade da tese do recorrente, em termos de a norma em causa consentir uma interpretação tal, que permita a confiança dos processos aos advogados das partes para exame nos respectivos escritórios, na medida em que, tal confiança não se harmonizaria com o sentido e alcance do segredo de justiça. Mas, seja como for, ao contrário do que sustenta o recorrente, não pode na situação em apreço falar-se em violação da igualdade de armas que em princípio deve existir entre a acusação e a defesa. As várias manifestações típicas que caracterizam o estatuto do arguido são baseadas na existência de um direito de defesa que é pressuposto de todas elas, como, aliás, o artigo 32º da Constituição reconhece. O posicionamento do arguido num processo de tipo acusatório há-de revestir uma situação de reciprocidade dialéctica face à acusação, pelo que, em conformidade, devem ser-lhe atribuídos aqueles meios legais de intervenção que compensem o desequilíbrio em que normalmente se encontra face àquela. Estando o acusador beneficiado face ao acusado, por força dos meios técnicos e humanos de que dispõe, do acesso facilitado ao processo, enfim, por força do seu especial estatuto, deve a lei compensar o arguido com uns quantos meios, sem o apoio dos quais não há um processo acusatório, nem sequer um processo leal, que
é pressuposto indispensável de uma correcta administração da justiça (cfr. António Barreiros, Processo Penal, vol. 1º, pp. 401 e ss.; Acórdão do Tribunal Constitucional nº 150/87, Diário da República, II Série, de 18 de Setembro de
1987). O princípio do contraditório postula um equilíbrio das partes que devem participar activamente no desenvolvimento do processo em termos de contraposição dialéctica, numa indispensável relação argumentativa cruzada. Simplesmente, deve dizer-se, que no caso em apreço, a interpretação da norma do artigo 70º § 2, feita pelo acórdão recorrido (nela não se consente a confiança do processo para exame no escritório do advogado do arguido), não colide com os princípios atrás expostos. As garantias de defesa constitucionalmente asseguradas ao arguido, no caso em apreço, não resultariam diminuídas por forma desproporcionada, excessiva e desadequada, quando se tiver em atenção a fase processual a que a norma respeita, sendo certo que, em qualquer caso, o processo podia estar na disponibilidade do arguido em termos de o consultar com total liberdade e independência. Não existe assim, em bom rigor, uma dialéctica absoluta em termos de acusação/defesa, antes se devendo falar na concessão ao arguido de meios idóneos e suficientes que assegurem uma defesa efectiva dos seus direitos. Não interessa tanto contrapor, numa rígida postura de oposição dialéctica, as posições da acusação e da defesa, importando mais averiguar se os termos e condições em que a defesa tem acesso, nesta fase processual, ao conteúdo do processo, lhe assegura os meios e as garantias necessárias a um exercício de defesa efectivo e eficaz, o que manifestamente se verifica. Aliás, cabe referir, em jeito de conclusão, que o Código de Processo Penal de
1987, no seu artigo 89º, nº 1, instituiu uma forma de «acesso a auto para consulta» similar à existente no diploma de 1929, não prevendo porém a confiança do processo para consulta no escritório do advogado do arguido ou do assistente. E, vistas assim as coisas, há-de dizer-se que a norma do artigo 70º, § 2, do Código de Processo Penal de 1929, tal como foi interpretada na decisão recorrida, não sofre de inconstitucionalidade, não violando, nomeadamente, a norma do artigo 32º da Constituição invocada pelo recorrente'. As considerações então expendidas para negar provimento ao recurso, e que supra transcrevemos nos seus aspectos essenciais, mantém inteira validade na situação que agora constitui objecto dos autos, não se vendo motivo válido para nos afastarmos daquela jurisprudência - que, entretanto, foi já reafirmada pelo Tribunal Constitucional a propósito do artigo 89º do Código de Processo Penal de
1987, que prevê uma forma de acesso aos autos para consulta similar à existente no diploma de 1929 (cfr., nesse sentido, o acórdão nº 117/96, in Diário da República, II Série, de 6 de Maio de 1996). Assim, à luz da doutrina emanada por essa jurisprudência, é de considerar que a norma do artigo 70º, § 3, do Código de Processo Penal de 1929, na interpretação que dela fez a decisão recorrida, não é inconstitucional, não violando, designadamente, o artigo 32º da Constituição, mesmo quando estiver em causa o arguido. O argumento vale, por maioria de razão, quando está em causa o assistente, como no caso dos autos. III – Decisão Consequentemente, e pelos fundamentos indicados, acorda-se em negar provimento ao recurso. Lisboa, 3 de Março de 1999 José de Sousa e Brito Bravo Serra Guilherme da Fonseca Messias Bento Luís Nunes de Almeida