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Proc. 912/98
1ª Secção Relatora: Cons.ª Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. W... e L..., identificadas nos autos, recorreram para o Tribunal Superior de Justiça de Macau do despacho do Juiz do Tribunal de Instrução Criminal de Macau que decretou a sua prisão preventiva, ao abrigo dos artigos
188º, alíneas a) e b), 186, nº 1, alínea a), do Código de Processo Penal de Macau e do artigo 29º da Lei nº 6/97/M, de 30 de Julho, por se indiciar suficientemente a prática de um crime de associação ou sociedade secreta previsto e punível nos artigos 2º, nº2, e 1º, nº 1, alíneas h), j) e t), da Lei nº 6/97/M (no caso da primeira arguida) e nos artigos 2º, nº 2, e 1º, nº 1, alíneas h) e j) da mesma Lei (no caso da segunda arguida).
1.1. As arguidas invocaram, por um lado, a inconstitucionalidade da interpretação, feita por aquele Tribunal, das disposições do Código de Processo Penal de Macau, que violaria os artigos 32º, nºs 1 e 5, e 20º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa. Na perspectiva das arguidas, o princípio da plenitude das garantias de defesa consagrado no artigo 32º da Constituição, assim como os princípios do contraditório e do acesso à justiça, primam sobre o princípio do segredo de justiça, alegado pelo Ministério Público para obstar à consulta dos autos, essencial à instrução do pedido de impugnação da aplicação da medida coerciva da prisão preventiva.
1.2. Por outro lado, o crime cuja prática lhes é imputada – crime de associação ou sociedade secreta –, previsto e punível pelo artigo 1º da Lei nº
6/97/M, de 30 de Julho, está descrito de uma forma obscura. Ora, tal insuficiência na descrição do tipo criminal contraria os princípios da legalidade e da tipicidade vigentes no Direito Penal e impostos constitucionalmente, no artigo 29º, nº 1, da Constituição. Além disso, o artigo 1º utilizaria uma técnica proibida em Direito Penal: a técnica das presunções legais que indiciam a prática do crime de associação ou sociedade secreta. Tal técnica afrontaria o princípio da presunção de inocência do arguido, que também goza de assento constitucional, no artigo 32º, nº 2, da Constituição.
1.3. Finalmente, o artigo 29º da Lei nº 6/97/M padeceria também de inconstitucionalidade, na medida em que impõe a aplicação da prisão preventiva pelo juiz nos casos de crimes de associação ou sociedade secreta, não admitindo a margem de discricionaridade judicial imposta pela Constituição nestes casos. Com efeito, os artigos 27º, nºs 2 e 3, e 28º, nº 2, da Constituição são impeditivos, na óptica das arguidas, da imposição legal da prisão preventiva.
2. Em resposta a esta argumentação, o Ministério Público junto do Tribunal de Instrução Criminal de Macau formulou as seguintes conclusões:
'1 - Não foi efectuada uma interpretação dos artºs 76 e 79.1 do Cód. Proc. Penal violadora dos princípios consagrados nos artºs 32.1 e 5 e 20.1 da CRP, sendo facultado ao advogado das arguidas a consulta de auto em segredo de justiça.
[...]
3 – O artº 1º da Lei nº 6/79/M, criou algumas presunções legais que admitem sempre prova em contrário, predeterminantes do valor probatório de certos indícios que, segundo a experiência comum, apontam com um mínimo de garantia, a participação nas associações secretas. Nesta interpretação não existe violação dos princípios constitucionais da legalidade, tipicidade e presunção de inocência.
[...]
6 – O artº 29º da Lei não impõe ao juiz a obrigatoriedade de fixação desta medida [prisão preventiva], mas antes contém uma recomendação da sua aplicação prioritária, posto que, para a comunidade, o crime elencado é revelador de extrema perigosidade do agente, e gerador de perturbação da ordem e tranquilidade públicas.
7 – O M.mo Juiz a quo estribou-se neste mesmo preceito e nos perigos de fuga e de perturbação da investigação para a fixação da medida de coacção impugnada, o que se mostra bastante e suficiente, quer perante os princípios consagrados nos artºs 186º e 176º a 178º do Cód. Proc. Penal, quer face ao artº 29, que os interpreta especialmente e regula.
8 – Nesta interpretação não há violação de qualquer princípio constitucional.'
3. Por sua vez, o representante do Ministério Público junto do Tribunal Superior de Macau concluiu assim o seu parecer:
'1ª - A melhor interpretação dos artigos 76º a 79º do Código de Processo Penal de Macau, a que não é alheia a afirmação doutrinária do Tribunal Constitucional
(cfr. Acórdão do T.C. de 19 de Fevereiro de 1997, in D.R. 100, II Série, de 30 de Abril de 1997), permite asseverar que cabe ao juiz, casuisticamente, ponderar a oportunidade e legalidade do acesso ao processo em segredo de justiça por cada parte do arguido e seu defensor, bem como traçar a dimensão e âmbito da matéria processual a facultar para consulta; Conforme é demonstrado pelo processado disponível, o Mtº Jic procedeu em conformidade com a doutrina contida no sobredito acórdão do Tribunal Constitucional; Tal despacho, porque conciliador da necessidade de preservar a prova colhida com a obrigação legal de facultar o acesso ao processo, não suscita reparo; Não se mostra, pois, violado o direito de acesso à justiça, que tem consagração constitucional (cfr. artigo 20º da Constituição da República Portuguesa).
2ª - Os artigos 1º e 2º da Lei nº 06/97-M contêm normas incriminadoras onde impera a certeza no âmbito da previsão e estatuição; A expressão 'nomeadamente' ali utilizada traduz tão-só que a reunião de esforços e vontades dirigida ao cometimento insistente dos ilícitos penais aí discriminadores será apenas indicadora da existência de uma associação criminosa; A verificação desta pressupõe sempre a ocorrência de requisitos atinentes à estabilidade, organização, pluralidade e escopo criminoso; De todo o modo, a técnica legislativa utilizada, embora longe de perfeição, espelha a necessidade de conciliar a salvaguarda de direitos fundamentais do indivíduo, por um lado, e a garantia da existência comunitária, por outro; Não se vislumbra ofensa aos princípios da legalidade e tipicidade a que se reporta o artigo 29º da Constituição da República Portuguesa.
3ª - Ao abrigo do artigo 186º do Código de Processo Penal de Macau, o decretamento da prisão preventiva pressupõe, entre o mais, a existência de indícios fortes acerca da existência da infracção e respectiva imputação, para além de outros factores que reputem a liberdade provisória de insuficiente; Sem prejuízo de ulterior complementação, a prova disponível já assegura a possibilidade razoável de às arguidas vir a ser aplicada, em julgamento, e por força dela (indícios suficientes), uma pena; Assim, aliada a verificação dos pressupostos contidos nos artigos 186º, 193º, do Código de Processo Penal de Macau, e 29º da Lei 06/97-M, à tendencial incaucionabilidade do crime de associação criminosa, é ajustada a negação do provimento ao recurso interposto pelas arguidas.'
4. O Tribunal Superior de Justiça de Macau negou provimento ao recurso das arguidas visando a revogação da medida de coacção que lhes foi aplicada – a prisão preventiva –, rejeitando todas as suas alegações de inconstitucionalidade.
4.1. Em primeiro lugar, no que toca à violação do princípio da garantias de defesa em face da necessidade de vedar o acesso aos autos por força da preservação do segredo de justiça, o tribunal, citando a jurisprudência constitucional, considerou que os princípios da igualdade de armas e do contraditório podem sofrer restrições em atenção a valores constitucionalmente tutelados, tais como a segurança pública e a salvaguarda das condições de investigação:
'Em processo penal [...], não se pode falar, em absoluto, numa igualdade de armas entre o Ministério Público e o arguido. Assim, se houver razões ponderosas que impeçam, por força de uma avaliação concreta das circunstâncias do caso, a autorização de acesso aos autos, dados os riscos ligados a tal acesso, nomeadamente quanto a actividades probatórias ainda não concluídas respeitantes a factos ilícitos investigados, a recusa de tal acesso, dados os diferentes interesses e valores em jogo, não é ilegítima, nem excessivamente desproporcionada.
É o que sucede, no caso em apreço, em que se está em face de investigação de ilícitos relacionados com a criminalidade organizada e, consequentemente, em processo de segredo de justiça, em que a devassa nesta fase processual, de toda a matéria investigada poderia pôr em causa e aniquilar todo o trabalho de investigação.'
4.2. Em segundo lugar, quanto à obscuridade do tipo delineado no artigo 1º da Lei nº 6/97/M, o tribunal, apoiando-se em jurisprudência anterior, afastou igualmente a invocada inconstitucionalidade:
'O que será sempre indispensável é que seja a lei penal a descrever os elementos do tipo e que o faça de modo a que a indeterminação que eventualmente possa conter não vá além de certos limites razoáveis a ponto de cair num esvaziamento de conteúdo da norma incriminadora. Foi o que aconteceu aqui com o legislador das leis 1/78/M e 6/97/M ao modelar o tipo correspondente à associação criminosa, que caracterizou como a organização constituída para cometer crimes ou obter vantagens ou benefícios ilícitos cuja existência se manifeste por acordo ou convenção ou outros meios, nomeadamente pela prática, cumulativa ou não, de determinados crimes que enumera. Há, aqui, pois, uma mistura de tipos diferentes, que acaba por ir até à modalidade da casuística exemplificativa, mas onde sempre impera o respeito pelo princípio da legalidade (só à lei penal cabe definir o que é crime) e também pelo princípios da tipicidade (a lei penal não modelou o tipo de forma tão indeterminada que neutralize a garantia de segurança que advém dessa técnica). Donde não se vislumbrar na técnica adoptada qualquer desrespeito dos invocados princípios.'
4.3. Por último, quanto à invocação da violação do princípio da presunção de inocência, o tribunal afirmou que:
'[...] se bem que, mesmo nas situações de presunção legal, a lei admite a prova do contrário, o certo é que as arguidas estão indiciadas pela prática de um crime de associação criminosa não à sombra de qualquer presunção legal, mas sim pelo facto de se indiciar integram uma tal associação e, por causa disso e conexionada com essa realidade, terem indiciariamente cometido diversos tipos legais de crimes dos previstos nas diversas alíneas do nº 1 da lei nº 6/97/M.
[...] verifica-se que o preceituado no art. 29º da citada lei é meramente indicativo, e, analisando o despacho recorrido, verifica-se que a sua previsão não assenta só neste normativo, mas deu como verificados os requisitos constantes dos arts 188º als. a) e b) e 186 nº 1 al. a) do CPPM.
[...] Nenhuma censura merece, pois, a decisão recorrida, já que respeitou os princípios da adequação, suficiência e proporcionalidade da medida coactiva aplicada.'
5. Inconformada, a arguida W... interpôs o presente recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, suscitando a apreciação da constitucionalidade das normas dos artigos 1º e 29º da Lei nº 6/97/M, 'com a interpretação com que foram aplicados na decisão recorrida' (fls. 334).
O recurso foi admitido por despacho de fls. 335.
6. Nas suas alegações de recurso para o Tribunal Constitucional, concluiu da seguinte forma:
' 1. o acórdão do Venerando Tribunal Superior de Justiça de Macau, de 3 de Setembro de 1998, proferido nos autos de recurso penal nº 905, aplicou os artigos 1º e 29º da Lei nº 6/97/M, de 30 de Julho, os quais, na interpretação e alcance que aquele Venerando Tribunal lhes deu, são materialmente inconstitucionais, já que violadores de princípios constitucionalmente consagrados;
2. o artº 1º da Lei nº 6/97/M, de 30 de Julho, viola, pelas razões aduzidas supra, os princípios da legalidade, da tipicidade e da presunção de inocência do arguido até trânsito em julgado de sentença condenatória, previstos e contidos nos artigos 29º, nº 1, 18º, nº 3, e 32º, nº 2, da CRP, respectivamente.
3. o artº 29º da Lei nº 6/96/M, de 30 de Julho, viola, pelas razões aduzidas supra, o princípio do direito à liberdade previsto e contido no artigo 27º, nºs
1 e 2, da CRP.'
7. O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional, em contra-alegações, pronunciou-se no sentido da não inconstitucionalidade do artigo 1º, nº 1, da Lei nº 6/97/M; quanto ao artigo 29º do mesmo diploma, concluiu que a questão, tal como vem alegada, não pode ser conhecida pelo Tribunal Constitucional, na medida em que a sua apreciação exigiria a verificação da legalidade da prisão preventiva, matéria que está fora do âmbito de competência deste Tribunal. Cumpre decidir.
II
8. O presente recurso tem por objecto as normas dos artigos 1º, nº 1, e
29º da Lei nº 6/97/M, de 30 de Julho, na interpretação que lhes foi dada no acórdão recorrido:
· A primeira dessas normas – artigo 1º, nº 1, da Lei nº 6/97/M, (sendo certo que a aplicação das alíneas h), j) e t) do referido preceito à situação da recorrente foi confirmada no acórdão ora recorrido) –, no confronto com os princípios da tipicidade, da legalidade e da presunção de inocência do arguido
(artigos 29º, nº 1, e 32º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa);
· A segunda – artigo 29º da Lei 6/97/M –, cotejada com o artigo 27º, nºs
1 e 2, da Constituição da República Portuguesa.
A. Da inconstitucionalidade da norma do artigo 1º, nº 1, da Lei nº 6/97/M
9. O artigo 1º, nº 1, da Lei nº 6/97/M tem a seguinte redacção:
'Para efeitos do disposto na presente lei, considera-se associação ou sociedade secreta toda a organização constituída para obter vantagens ou benefícios ilícitos cuja existência se manifeste por acordo ou convenção ou outros meios, nomeadamente pela prática, cumulativa ou não, dos seguintes crimes: [elenca, de seguida, várias alíneas a que correspondem diversos tipos legais].
[...] h) Exploração ilícita de jogo, de lotarias ou de apostas mútuas, e cartel ilícito para jogo;
[...] j) Usura para jogos;
[...] t) Operações de comércio externo fora dos locais autorizados;
[...].'
10. Apenas está em causa no presente recurso a apreciação da constitucionalidade da parte da norma que prevê e pune a associação ou sociedade secreta que se manifesta na prática dos crimes nela elencados (no caso, os crimes indicados nas alíneas h), j) e t)). Sustenta a recorrente que o carácter vago e a incompletude da previsão dessa parte da norma, contrariam os princípios da tipicidade e da legalidade, consagrados constitucionalmente. O artigo 29º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa (assim como, de uma outra perspectiva, o artigo 165º, nº1, alínea c)), exige do legislador um especial cuidado na construção dos tipos penais. Os tipos de crimes, pelas consequências que a sua prática acarreta, devem estar definidos na lei, com um suficiente grau de determinação dos seus pressupostos, em atenção ao princípio da dignidade da pessoa humana, em que entronca o princípio da culpa (artigo 1º da Constituição da República Portuguesa). Nas palavras de Figueiredo Dias,
'[...] o princípio da culpa não vai buscar o seu fundamento axiológico, aliás irrenunciável, a uma qualquer concepção retributiva da pena, antes sim ao princípio da inviolabilidade da dignidade pessoal: o princípio axiológico mais essencial à ideia de Estado de Direito democrático' (Direito Penal português. As consequências jurídicas do crime, Lisboa, 1993, p. 73).
Como reconhece José de Sousa Brito (A lei penal na Constituição,
'Estudos sobre a Constituição', II, Lisboa, 1978, p. 197 ss, 243, 244), é problema de difícil solução saber qual o grau de determinação constitucionalmente exigido:
'Que alguma determinação terá que haver, resulta já dos princípios da legalidade das penas e da conexão entre crime se a lei que a impõe não determinasse com suficiente segurança os pressupostos genéricos a que está ligada. Previsões legais vagas, ou de outro modo indeterminadas são um modo de desvirtuar a função de garantia da reserva de lei e do princípio da legalidade por inteiro. Isto vale tanto para os crimes, como para as contravenções, como para os pressupostos das medidas de segurança. Por outro lado, uma total determinação é impossível devido à própria natureza da linguagem. Uma enumeração demasiado casuística multiplica as lacunas e tende a ser contraproducente, por dificultar a determinação do que é essencial em cada caso. Com efeito, o caso concreto nunca é um puro facto, mas uma unidade de sentido socialmente relevante mais ou menos complexa e normalmente integrada por elementos culturais difíceis de definir. Para o descrever, a previsão legal contém muitas vezes expressões que não se deixam reduzir a conceitos precisos.
[...] Uma forma de combinar a essencialidade da descrição com a sua maior concretização é a técnica legislativa dos exemplos de regra: a enumeração exemplificativa de hipóteses de menor generalidade que acompanha a regra mais geral. Mas as dificuldades de princípio mantêm-se: a indeterminação das previsões legais é o «calcanhar de Aquiles» do princípio da legalidade'.
A Lei nº 6/97/M combinou, no artigo 1º, a técnica da descrição de um tipo aberto
– o de 'associação ou sociedade secreta' – com a enumeração exemplificativa, por remissão para vários tipos de crime tipificados na lei. No caso em que apenas a segunda parte da descrição está em causa não existe, por conseguinte, uma norma penal 'em branco', uma norma que 'deixa no vago ou a uma instância normativa de valor inferior a determinação dos seus próprios pressupostos de facto de aplicação', como explica Teresa Beleza (Direito Penal, I, 2ª edição, Lisboa,
1985, p. 382). Não se afrontam assim os princípios da tipicidade e da legalidade, na medida em que a remissão para crimes tipificados assegura um apoio suficiente à incriminação, não permitindo que sobre ela recaia um juízo de inconstitucionalidade por desrespeito dos parâmetros mínimos que a Constituição exige.
11. Na perspectiva da recorrente, a Lei nº 6/97/M, de 30 de Julho, 'ao inverter o ónus da prova, presumindo a culpa do arguido em função dos indícios da prática de um qualquer dos crimes elencados no seu artigo 1º, viola o aludido princípio de presunção da inocência do arguido'. O alcance constitucional do princípio da presunção de inocência não é de fácil dilucidação. De acordo com a anotação de Gomes Canotilho e Vital Moreira ao artigo 32º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa (Constituição da República Portuguesa, Anotada, 3ª edição, Coimbra, 1993, p. 203), o princípio poderia ser radicalizado, se dele fosse feita uma interpretação puramente literal. Ou seja, à primeira vista, a relevância do princípio traduzir-se-ia na proibição de antecipação de medidas de investigação e cautelares e mesmo à inibição de acusação com base em indícios (fortes) – numa palavra, na inviabilização de toda e qualquer fase de instrução. Numa leitura mais atenta à necessidade de articulação do princípio da presunção da inocência com outros valores constitucionalmente tutelados – nomeadamente, a segurança pública –, os autores citados apontam seis concretizações possíveis do mesmo:
· a proibição de inversão do ónus de prova em detrimento do arguido;
· a preferência pela sentença absolutória face à decisão de mero arquivamento dos autos;
· a exclusão da possibilidade de formulação de juízos de culpa em despachos de arquivamento;
· a não incidência de custas sobre o arguido não condenado.
· a proibição de aplicação de penas a título de procedimentos cautelares; e
· a proibição de efeitos automáticos da instauração do procedimento criminal.
No artigo 1º da Lei nº 6/97/M não existe qualquer inversão do ónus da prova, como pretende a recorrente. A lei utilizou a técnica de definição ou descrição –
'considera-se associação ou sociedade secreta ...' – indicando os diversos elementos ou contornos da conduta criminosa. A norma penal, como qualquer norma jurídica, inclui uma previsão, gizada abstractamente, e uma estatuição, que será ou não aplicada aos factos, consoante estes sejam ou não subsumíveis na previsão. Não se trata de uma presunção, muito menos de uma presunção de culpa. Atente-se no que afirmou o Tribunal Constitucional no acórdão nº 135/92 (Diário da República, II, de 24 de Julho de 1992, p. 6820 ss), a propósito do princípio da presunção de inocência e das suas manifestações:
'Na verdade, pode dizer-se que a dimensão deste princípio susceptível de estar em causa na hipótese – tratando-se nela, como se trata, da presunção de um puro facto – seria, não a que proíbe o estabelecimento de presunções de
'culpabilidade' (não é, com efeito, a culpa do agente que aí se presume), mas antes a que respeita ao tema da prova em processo penal e se exprime na citada máxima, ou seja, na regra segundo a qual uma situação de non liquet na questão de facto deverá ser valorada e resolvida em favor do réu.
[...] Ora, o que sucede é que, sendo a presunção em apreço meramente relativa
[...] a mesma presunção redunda em não mais do que uma simples prova de interim ou de primeira aparência, pelo que ainda quanto aos factos a que respeita pode operar, bem vistas as coisas, a mencionada regra in dubio pro reu; basta, para tanto, que, através da prova trazida ao processo o [arguido] crie uma situação de incerteza (de non liquet) acerca da questão de facto, ou seja, acerca dos factos integrados na presunção. Em tal situação, com efeito, não se vê por que não haja de funcionar ainda o princípio do favor rei, traduzido agora na «regra de decisão» (ou de julgamento) antes enunciada.'
O facto de o nº 1 do artigo 1º da Lei nº 6/97/M desenhar uma descrição típica a que se podem reconduzir várias condutas, também elas correspondentes a tipos penais, não equivale a presumir, de modo constitucionalmente incorrecto, a intenção subjectiva do agente quanto à prática do crime de associação ou sociedade secreta. Ao praticar determinados crimes – os referidos nas alíneas do nº 1 do artigo 1º da Lei nº 6/97/M –, os agentes incorrem no risco de ver aliada a essa conduta a prática de um crime de associação ou sociedade secreta. Mas à acusação incumbe sempre a prova dos factos típicos da incriminação. Por conseguinte, não se considera violado o princípio da presunção de inocência, com assento constitucional no artigo 32º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa.
B. Da inconstitucionalidade da norma do artigo 29º da Lei 6/97/M
12. O artigo 29º da Lei nº 6/97/M dispõe o seguinte:
'Se o crime imputado for um dos previstos nos artigos 2º, 3º, 7º, alíneas a) e b) do nº 1 do artigo 10º e nº 2 do artigo 13º, o juiz deve aplicar ao arguido a medida de prisão preventiva'.
13. A recorrente alega a inconstitucionalidade da norma por entender que dela decorre uma 'obrigação' para o juiz de aplicar a medida coactiva de prisão preventiva em termos automáticos; por outras palavras, considera a recorrente que o legislador determinou a aplicação da prisão preventiva sem que sejam consideradas as circunstâncias do caso.
Todavia, no caso dos autos, o juiz aplicou a medida prevista no artigo 29º da Lei nº 6/97/M – prisão preventiva – baseando-se nos artigos 186º e seguintes do Código de Processo Penal de Macau, e analisando os vários requisitos cujo preenchimento se torna absolutamente necessário para a aplicação da medida, a fim de preservar a proporcionalidade exigível ao equilíbrio de valores em presença: por um lado, o princípio da liberdade e, por outro lado, a segurança da comunidade. O acórdão recorrido fez uma interpretação sistemática da norma do artigo 29º da Lei nº 6/97/M, apelando para as disposições legais que disciplinam a aplicação da prisão preventiva (Código de Processo Penal de Macau, artigos 188º, alíneas a) e b), e 186, nº 1, alínea a)) e para os critérios constitucionais (fixados nos artigos 27º e 28º da Constituição da República Portuguesa). Ou seja, o acórdão recorrido não atribuiu à norma do artigo 29º da Lei nº 6/97/M a interpretação que a recorrente menciona no recurso e que considera inconstitucional. Não se encontra verificado um dos pressupostos processuais do recurso previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional – a aplicação, na decisão recorrida, da norma (ou, no caso, de determinada interpretação da norma) cuja inconstitucionalidade foi suscitada durante o processo. Assim sendo, não pode o Tribunal Constitucional tomar conhecimento do recurso quanto à norma do artigo 29º da Lei nº 6/97/M, embora por razões diferentes das apontadas pelo Ministério Público.
III
14. Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide:
a. Não tomar conhecimento do recurso no que se refere à norma do artigo
29º da Lei nº 6/97/M, de 30 de Julho; b. Não julgar inconstitucional a norma do artigo 1º, nº 1, da mesma Lei nº
6/97/M, na interpretação que lhe foi dada no acórdão recorrido, assim negando provimento ao recurso e confirmando o acórdão recorrido, no que se refere à questão de constitucionalidade.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta.
Lisboa, 9 de Março de 1999- Maria Helena Brito Vítor Nunes de Almeida Artur Maurício Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa