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Processo n.º 116/99 Conselheiro Messias Bento
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. M... interpõe o presente recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo
70º da Lei do Tribunal Constitucional, do acórdão da Relação do Porto, de 13 de Janeiro de 1999.
Pretende a recorrente se aprecie a constitucionalidade do artigo 97º, n.º 4, do Código de Processo Penal, interpretado em termos de 'permitir o uso de promoção do Ministério Público, ainda que de forma indirecta como suporte de uma decisão judicial, através da permissão da remissão para a mesma'.
O acórdão recorrido negou provimento ao recurso interposto do despacho judicial, de 27 de Novembro de 1998, que decretou a prisão preventiva da recorrente. Na motivação do recurso, o recorrente tinha sustentado que, 'ao permitir-se o uso da promoção, ainda que de forma indirecta, se viola claramente o direito de defesa dos arguidos e o princípio da separação de poderes [ ...] ', razão por que 'uma interpretação do artigo 97º, n.º 4, noutro sentido que não o de proibir o uso da promoção e obrigar à fundamentação de facto e de direito dos despachos,
é inconstitucional'. Neste Tribunal, alegou a recorrente que, para o que aqui importa, formulou as seguintes conclusões:
(a). As decisões dos tribunais devem ser fundamentadas (artigo 205º, n.º 1, da CRP).
(b). O uso da promoção do Ministério Público permite que este tenha um quase poder decisório, ainda que de forma indirecta, quanto à matéria de facto, permitindo uma ingerência do Ministério Público no poder judicial, violando o princípio da separação de poderes.
(c). Violando-se ainda o princípio o contraditório e as garantias de defesa, ao terem sido praticados os actos de promoção e despacho de aplicação da medida de coacção na ausência da recorrente e do seu mandatário.
(d). No processo civil há uma norma expressa (artigo 158º, n.º 2) que não permite a mera adesão ao que é alegado pelas partes. E este princípio é de aplicar ao processo penal, sob pena de inconstitucionalidade (artigo 205º, n.º
1, da CRP).
(e). Sendo assim inconstitucional a interpretação do artigo 97º, n.º 4, do Código de Processo Penal que permite a mera adesão num despacho, em sede de fundamentação de facto, e, em parte, de direito, da promoção do Ministério Público.
O PROCURADOR-GERAL ADJUNTO em exercício neste Tribunal concluiu como segue as alegações que apresentou:
1º. Não pode inferir-se do dever constitucional de fundamentação das decisões judiciais, na forma prevista na lei, uma absoluta e irrestrita proscrição da possibilidade de, em certas circunstâncias, o juiz fundamentar o decidido por simples remissão para o conteúdo de precedentes peças ou intervenções processuais.
2º. Não resulta minimamente prejudicada a seriedade e consistência da análise pelo juiz dos pressupostos do decretamento de certa medida de coacção ao arguido pelo facto de se fundamentar a decisão tomada por remissão para o teor de precedente promoção, exarada nos autos pelo Ministério Público, pressupondo a mesma um especial dever de objectividade e imparcialidade por parte deste magistrado e sendo de manifesta simplicidade e evidência os fundamentos em que assentou tal decisão.
3º. Termos em que deverá improceder o presente recurso, em conformidade com o juízo de constitucionalidade da norma que dele é objecto.
2. Cumpre decidir.
II. Fundamentos:
3. Advertência prévia: Na tese da recorrente, não é a norma sub iudicio que viola o princípio do contraditório e o das garantias de defesa. Essa violação decorre antes de um determinado procedimento judicial: segundo diz, a promoção do Ministério Público foi feita e o despacho judicial de aplicação da medida de coacção foi proferido
'na ausência da recorrente e do seu mandatário'.
Sendo isto assim, a norma sub iudicio - e só tal norma o Tribunal apreciará ratione constitutionis, pois na sua competência apenas se inscreve o controlo da constitucionalidade de normas jurídicas, e não também o de actos de outra natureza, designadamente de decisões judiciais ou de procedimentos processuais - não será confrontada com tais princípios.
De todo o modo, sempre se deixará constância de que a prisão preventiva da recorrente foi ordenada na mesma data em que se procedeu ao debate instrutório
(27 de Novembro de 1998), findo o qual ela foi pronunciada como autora de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, previsto e punível pelos artigos
21º e 24º, alínea b), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro. E mais: na oportunidade, a recorrente foi ouvida, em primeiro interrogatório judicial; e o seu mandatário pôde pronunciar-se sobre o requerimento do Ministério Público, visando a sua prisão, tendo sustentado que não se justificava submetê-la a essa medida de coacção (cf. folhas 20 a 41 dos autos).
4. O objecto do recurso: O artigo 97º do Código de Processo Penal, cujo n.º 4, na interpretação que dele fez o acórdão recorrido, a recorrente indica como constituindo objecto do recurso, enumera e define, no seu n.º 1, as várias espécies de actos decisórios dos juízes: sentenças, despachos e acórdãos.
O n.º 4 dispõe como segue:
4. Os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.
O despacho judicial que foi impugnado perante a Relação tinha aplicado a medida de coacção de prisão preventiva à arguida. Por isso, devia ele observar o que se prescreve no n.º 3 do artigo 194º do Código de Processo Penal, que reza assim:
3. O despacho referido no n.º 1 é notificado ao arguido e dele constam a enunciação dos motivos de facto da decisão e a advertência das consequências do incumprimento das obrigações impostas. Em caso de prisão preventiva, o despacho
é, com o consentimento do arguido, de imediato comunicado a parente, a pessoa da sua confiança ou ao defensor indicado pelo arguido.
Assim sendo, pois, a questão de constitucionalidade, que constitui objecto do recurso, seria melhor colocada com referência ao n.º 3 deste artigo 194º do que ao n.º 4 do artigo 97: de facto, o despacho que determinou a prisão preventiva da arguida está fundamentado. A fundamentação é que foi feita por remissão, em vez de o ser pela enunciação, nele próprio, dos 'motivos de facto da decisão' tomada.
Seja, porém, como for, tal questão de constitucionalidade é a de saber se existe violação do artigo 205º, n.º 1, da Constituição, quando (como fez o acórdão recorrido) se interpreta o artigo 97º, n.º 4, do Código de Processo Penal, por forma a consentir que, no despacho que determina a prisão preventiva do arguido, que, no final do debate instrutório, é pronunciado como autor de crime que permite a aplicação de uma tal medida de coacção, o juiz fundamente a aplicação dessa medida, reenviando para os motivos de facto invocados pelo Ministério Público no seu parecer.
Na verdade, em face do modo como a recorrente coloca a questão: é
'inconstitucional a interpretação do artigo 97º, n.º 4, do Código de Processo Penal que permite a mera adesão num despacho, em sede de fundamentação de facto, e, em parte, de direito, à promoção do Ministério Público' -, só tem sentido confrontar o artigo 97º, n.º 4, com o dever de fundamentação das decisões judiciais, imposto pelo artigo 205º, n.º 1, da Constituição. Até porque não tem cabimento afirmar, como faz a recorrente, que 'o uso da promoção do Ministério Público permite que este tenha um quase poder decisório, ainda que de forma indirecta, quanto à matéria de facto, permitindo uma ingerência do Ministério Público no poder judicial, violando o princípio da separação de poderes': desde logo, porque quem profere a decisão (no caso, a decisão de aplicação da medida de coacção de prisão preventiva) é o juiz. E fá-lo com inteira independência e imparcialidade, depois, obviamente, de ponderar o parecer do Ministério do Público - que é, aliás, obrigatório colher (cf,. o artigo 194º, n.º 1, do Código de Processo Penal) - e, 'sendo possível e conveniente', de ouvir o arguido (cf. o n.º 2 do mesmo artigo 194º). E isso foi o que, no caso, aconteceu. Acresce que a separação e interdependência, que os órgãos de soberania devem observar entre si (cf. artigo 111º, n.º 1, da Constituição), é uma exigência que só vale para as relações entre os próprios órgãos de soberania, e não também para as relações entre os juízes e os magistrados do Ministério Público. Aos juízes, como titulares de um dos órgãos de soberania - recte, dos tribunais (cf. o artigo
110º, n.º 1, da Lei Fundamental) -, cabe 'administrar a justiça em nome do povo', com vista a 'assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados' (cf. artigo 202º, nºs 1 e 2, da Constituição). Aos agentes do Ministério Público cumpre 'representar o Estado', designadamente junto dos tribunais, e, aí, 'defender os interesses que a lei determinar, bem como [ ...] exercer a acção penal orientada pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática' (cf. artigo 219º, n.º 1, da Constituição).
5. A questão de constitucionalidade: O dever de fundamentação das decisões judiciais é imposto pelo artigo 205º, n.º
1, da Constituição, que prescreve:
1. As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.
Este Tribunal já por diversas vezes se pronunciou sobre o dever de fundamentação das decisões judiciais. Fê-lo, por último, a propósito do artigo 374º, n.º 2, do Código de Processo Penal, nos acórdãos nºs 680/98 (publicado no Diário da República, II série, de 5 de Março de 1999) e 102/99 (ainda por publicar); e, a propósito do artigo 219º do Código de Justiça Militar, no acórdão n.º 135/99
(ainda por publicar).
No presente caso, porém, está em causa o artigo 97º, n.º 4, do Código de Processo Penal, nas suas relações com o artigo 194º, n.º 3, do mesmo Código, pois - recorda-se - o que se discute é a correcção da fundamentação de um despacho judicial que ordenou a prisão preventiva de um arguido.
Pois bem: a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva ao arguido constitui responsabilidade do juiz (cf. os artigos 194º, n.º 1, e 202º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal). Por isso, é, desde logo, fundamental que, ao ordenar a prisão, o juiz o faça por decisão sua (ou seja: por virtude de, em face da prova existente, se ter convencido de que qualquer das outras medidas de coacção é 'inadequada ou insuficiente': cf. o citado artigo 202º, n.º 1) - e não por se ter deixado 'arrastar' pelo requerimento do Ministério Público nesse sentido. Depois, é essencial que essa ordem de prisão surja aos olhos do cidadão, efectivamente, como uma decisão pessoal do juiz que a determina: é que, no Estado de Direito, as aparências também têm o seu valor. Por último, é ainda importante que o arguido possa ter acesso às peças do processo que lhe permitam avaliar a justeza da decisão tomada contra si, a fim de, sendo o caso, a poder impugnar, em via de recurso.
Isto dito, é óbvio que o despacho, que melhor espelha a responsabilização pessoal do juiz pela ordem de prisão que dá, é aquele em que o juiz enuncia, ele próprio, os motivos de facto da decisão tomada, em vez de se remeter para as razões invocadas pelo Ministério Público.
Tal, porém, não significa que o exacto cumprimento do dever constitucional de fundamentação, mesmo estando em causa um despacho determinativo da prisão preventiva de um arguido, proscreva, em absoluto, a possibilidade de o juiz fundamentar a sua decisão, mediante remissão para a promoção do Ministério Público, a cuja conteúdo dá a sua adesão (ou por remissão para o conteúdo de outras peças processuais). A proibição de um tal modo de fundamentar existirá, seguramente, quando ele for susceptível de, legitimamente, criar a dúvida sobre se a ordem de prisão é uma decisão pessoal do juiz ou apenas um 'ir atrás' do Ministério Público. Só então, com efeito, o juiz deixa de desempenhar o papel, que é o seu, de garante das liberdades. Fora dessa situação, o juiz pode, perfeitamente, por razões de economia processual, remeter-se, no seu despacho, para a promoção do Ministério Público ou para outras peças do processo. Até porque, quando se remete para a promoção do Ministério Público, o juiz não está, propriamente, a aderir às teses de uma parte no processo. De facto, o Ministério Público, no processo penal, não é titular de interesses contrapostos aos do arguido. Cumprindo-lhe fazer valer o ius puniendi do Estado, há-de agir sempre com imparcialidade e objectividade, colaborando 'com o tribunal na descoberta da verdade e na realização do direito' (cf. artigo 53º, n.º 1, do Código de Processo Penal). Ou seja: há-de empenhar-se em que se faça justiça. Para isso, ele 'goza de [ ...] de autonomia, nos termos da lei' (cf. artigo 219º, n.º 2, da Constituição), e os respectivos agentes são 'magistrados'
(cf. o citado artigo 219º, n.º 4). Esse dever de colaborar na efectiva realização da justiça levou, inclusive, o legislador a reconhecer-lhe legitimidade para recorrer 'de quaisquer decisões, ainda que no exclusivo interesse do arguido' (cf. artigo 401º, n.º 1, do Código de Processo Penal): é que, a justiça reclama que se procurem punir os culpados, mas apenas os verdadeiros culpados. No processo penal, o Ministério Público é, assim, mais propriamente um órgão de justiça do que uma parte.
Para concluir pela ilegitimidade constitucional do modo de fundamentação adoptado pelo acórdão recorrido, não é, por isso, razoável argumentar (como faz a recorrente) com o preceituado no artigo 158º, n.º 2, do Código de Processo Civil, que, ao referir o modo de fundamentar 'as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo' (n.º
1), prescreve que 'a justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição'.
É que, não existe similitude entre a posição das partes no processo civil, que aí defendem interesses seus, e a do Ministério Público no processo penal, que aí prossegue, com imparcialidade e objectividade, interesses que, quando não são, exclusiva ou predominantemente, da comunidade, são encabeçados por particulares que, enquanto ofendidos, se podem constituir assistentes no processo [ cf. 68º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal] .
6. Conclusão: Como o despacho que ordenou a prisão da arguida foi proferido imediatamente a seguir ao debate instrutório, que culminou com a pronúncia da arguida como autora de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, previsto e punível pelos artigos 21º e 24º, alínea b), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro; e o Ministério Público, na sua promoção, se limitou 'a referir e explicitar verdadeiros ‘factos notórios’, acentuando a manifesta gravidade do crime imputado à arguida e o evidente perigo de, no concreto circunstancialismo dos autos, ela prosseguir a actividade criminosa que vinha exercendo' (ut alegações); não pode dizer-se que o juiz, ao remeter-se para essa promoção, tenha deixado de ser o garante das liberdades ou, sequer, que tenha dado azo a que, fundadamente, de tal se suspeitasse. Como assinala o Ministério Público, numa situação com esta configuração, não pode 'pôr-se em causa a seriedade e profundidade da análise subjacente à decisão judicial que ditou a prisão da arguida; ou seja, nesta concreta situação, não se vê qualquer receio fundado em que a forma simplificada de fundamentação adoptada pelo juiz possa ter prejudicado uma real, efectiva e aprofundada ponderação das questões suscitadas a propósito dos pressupostos da medida de coacção judicialmente decretada'.
A norma sub iudicio, tal como foi interpretada e aplicada no caso, não é, pois, inconstitucional.
III. Decisão: Pelos fundamentos expostos, decide-se:
(a). negar provimento ao recurso;
(b). consequentemente, confirmar o acórdão recorrido quanto ao julgamento da questão de constitucionalidade;
(c). condenar a recorrente nas custas, com 15 unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 23 de Março de 1999 Messias Bento José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida