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Proc. nº 370/96
1ª Secção Relatora: Consª. Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Z..., identificada nos autos, interpôs junto do Tribunal Administrativo de Círculo de Coimbra, recurso de anulação do despacho proferido pelo Sub-Director Geral da Administração Escolar, por delegação de poderes, que lhe indeferiu o pedido de contagem de tempo de serviço para efeitos de progressão na carreira docente. A recorrente invocou, entre outras causas de pedir, a violação de lei em virtude da aplicação, pela Administração, de normas alegadamente inconstitucionais, a saber, os artigos 90º do Decreto-Lei nº 18/88, de 21 de Janeiro, e 88º do Decreto-Lei nº 35/88, de 4 de Fevereiro. A inconstitucionalidade destas normas adviria do facto de discriminarem funcionários públicos que, tendo exercido funções docentes, optaram por prestar serviço em Ministério diverso do Ministério da Educação, e que, quando reingressaram na carreira docente, não viram computado para efeitos de progressão na carreira o tempo em que trabalharam naquele outro Ministério. A discriminação tornar-se-ia patente no confronto com outros funcionários que, apesar de terem transitado da carreira docente para o desempenho temporário de funções administrativas no Ministério da Educação, viram o seu tempo de serviço contado para aqueles efeitos. Nas palavras da recorrente:
'Quer o artigo 90 do DL 18/88, de 21/1, quer o artigo 88 do DL 35/88, de 4/2, em que se fundamenta o despacho recorrido, são normas inconstitucionais que violam o princípio da igualdade perante a lei, consignado no artigo 13 C.R.P., assim como nos artigos 1º e 2º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, contando o tempo de serviço a uns e negando a sua contagem a outros, que em ambos os casos prestaram serviços administrativos ao Estado. Pelo que o despacho recorrido é anulável por violação de lei.
[...] O Ministério da Educação tem contado o tempo de serviço aos docentes que desempenharam funções administrativas em outros Ministérios, como tem sido o caso relativamente aos funcionários dos serviços de educação das ex-colónias, bem como aos que desempenharam funções administrativas no Serviços Centrais do Ministério da Educação mas, por exemplo, nos serviços regionais deste.'
2. A recorrente foi admitida na função pública em 1943, como regente escolar, tendo ingressado no quadro efectivo de regentes escolares de Santarém em 1945; em 1956, pediu a exoneração desse cargo, tendo passado a exercer funções administrativas no então Ministério do Interior; tendo-se entretanto licenciado em Filologia Germânica, transitou em 1980 para o Ministério da Educação, e tomou posse como professora provisória do 9º Grupo da Escola Secundária de Santarém. Em face deste historial, considera-se com direito a que o tempo que trabalhou no Ministério do Interior – 24 anos – lhe seja computado para efeitos de progressão na careira docente, apelando a uma interpretação extensiva dos artigos 90º e 88º dos diplomas referidos supra. Esta leitura conferir-lhes-ia um sentido compatível com os objectivos constitucionais, nomeadamente com o princípio da igualdade, e legais, concretamente com o princípio da unidade da Administração.
3. O Tribunal Administrativo de Círculo de Coimbra, afastou esta argumentação nos seguintes termos:
'Entende a recorrente que, embora a lei aluda apenas a lugares do quadro dos serviços centrais do Ministério da Educação, deverá fazer-se uma interpretação extensiva daquelas normas, por forma a que nelas se abranjam lugares de quadro dos serviços centrais de qualquer outro Ministério, nomeadamente os do ex-Ministério do Interior. Socorrendo-nos dos meios de interpretação apontados pela doutrina, forçoso é desde logo, socorrermo-nos do elemento gramatical decorrente do texto da lei: Nesta encontramos referência expressa e única a professores «que optaram por lugares do quadro dos serviços centrais do Ministério da Educação». Ora, esta expressão legal tem um significado unívoco, [...] e que é o de querer abranger aqueles professores que interromperam a sua carreira docente, para ocupar qualquer lugar do quadro do Ministério da Educação. Apenas isto. Prosseguindo na via da interpretação das normas, devemos em seguida socorrer-nos do elemento lógico ou racional, através do «exame do objectivo da lei, seu enquadramento sistemático e político, indagação da sua história e apuramento do seu conteúdo» (Proc. Marcello Caetano, Manual, I, p. 130). Neste campo resulta, desde logo, o interesse público visado na lei quando se procura manter uma certa ligação de funcionários pertencentes aos diversos quadros integrados no Ministério da Educação, aproveitando conhecimentos adquiridos no exercício da função docente, para mais facilmente levar a efeito a execução de outras funções em quadro diverso do mesmo ministério, designadamente nos serviços centrais [...]. Daí a razão de o contexto legal apenas abranger a opção por lugares do quadro do Ministério da Educação, nisso residindo a razão da lei.
[...] O princípio da unidade da administração pública não resulta ferido pela conclusão a que chegamos. Com efeito, o que tal princípio tem em vista é, sobretudo, preservar os direitos dos funcionários, quando se proceda a substituição legal de carreiras ou à sua reconversão, ou facultar a transição de um serviço público para outro serviço público, quando se trate de carreiras idênticas ou com o mesmo conteúdo funcional [...]. As normas em causa, contrariamente ao defendido pela recorrente, não violam o princípio da igualdade, consagrado no artº 13º da CRP, não se mostrando feridas de inconstitucionalidade.'
4. A recorrente ficou assim vencida na primeira instância, uma vez que o Tribunal Administrativo de Círculo de Coimbra negou, com base no raciocínio transcrito, provimento ao recurso. Tendo recorrido da sentença para o Supremo Tribunal Administrativo, este Supremo Tribunal negou do mesmo modo provimento ao recurso e confirmou inteiramente a sentença recorrida.
É do acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo que vem interposto o presente recurso de constitucionalidade.
II
5. As normas cuja inconstitucionalidade a recorrente invoca são os artigos 90º do Decreto-Lei nº 18/88, de 21 de Janeiro, e 88º do Decreto-Lei nº
35/88, de 4 de Fevereiro, que a seguir se transcrevem:
'Art. 90º (do DL 18/88). Para efeitos de progressão nas fases previstas no Decreto-Lei nº 100/86, de 17 de Maio, com a alteração introduzida pelo artigo
89º da Lei nº 49/86, de 31 de Dezembro, é contado o tempo de serviço prestado por professores do quadro ou por professores profissionalizados não pertencentes ao quadro dos ensinos preparatório e ou secundário, em resultado de opção, por lugares do quadro dos serviços centrais do Ministério da Educação e que, posteriormente, por força do mecanismo de concurso, reingressarem na carreira docente.'
'Art. 88º (DL 35/88). Para efeitos de progressão nas fases previstas no Decreto-Lei nº 100/86, de 17 de Maio, com a alteração introduzida pelo artigo
89º da Lei nº 49/86, de 31 de Dezembro, é contado o tempo de serviço prestado por professores do quadro geral ou do distrital do ensino primário e ainda por professores do ensino primário profissionalizados mas não pertencentes a qualquer daqueles quadros que optaram por lugares do quadro dos serviços centrais do Ministério da Educação e que, posteriormente, por força do mecanismo do concurso, reingressarem na carreira docente.'
6. A inconstitucionalidade das normas residiria, na perspectiva da recorrente, na discriminação por elas criada entre:
· (A) professores do quadro e profissionalizados que temporariamente abandonaram o seu vínculo ao Ministério da Educação, passando a desempenhar funções administrativas noutros Ministérios, aos quais, quando do seu reingresso na carreira docente, não é contado o tempo de serviço prestado nesses serviços para efeitos de progressão na carreira docente e;
- (B) professores do quadro e profissionalizados que temporariamente deixaram de prestar funções docentes para passarem a desempenhar cargos administrativos, conservando, no entanto, o vínculo ao Ministério da Educação, aos quais, quando do seu reingresso na carreira docente, é contado o tempo de serviço prestado nesses serviços para efeitos de progressão na careira docente. Na óptica da recorrente, o desvio constituiria uma restrição desadequada e contrária ao imperativo do artigo 18º, nº 2, da Constituição, porque fundada numa ligação profissional a um determinado Ministério – o da Educação –, ainda que as funções aí exercidas não sejam especificamente docentes.
7. Uma das vertentes que a doutrina descobre no âmago do princípio da igualdade – que, sublinhe-se, na linha de jurisprudência constante deste Tribunal, não deve ser entendido como absoluto (cfr., entre tantos outros, o parecer da Comissão Constitucional nº 5/81, Pareceres da Comissão Constitucional, 14º vol., p. 309 ss, e o acórdão do Tribunal Constitucional nº
44/84, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 3º vol., p. 133 ss) – é a da proibição do arbítrio. Na lição de Gomes Canotilho/Vital Moreira,
'A proibição do arbítrio constitui um limite externo da liberdade de conformação ou de decisão dos poderes públicos, servindo o princípio da igualdade como princípio negativo de controlo. Nesta perspectiva, o princípio da igualdade exige positivamente um tratamento igual de situações de facto iguais e um tratamento diverso de situações de facto diferentes. Porém, a vinculação jurídico-material do legislador ao princípio da igualdade não elimina a liberdade de conformação legislativa, pois a ele pertence, dentro dos limites constitucionais, definir ou qualificar as situações de facto ou as relações da vida que hão-de funcionar como elementos de referência a tratar igual ou desigualmente. Só quando os limites externos da «discricionariedade legislativa» são violados, isto é, quando a medida legislativa não tem adequado suporte material, é que existe uma «infracção» do princípio da igualdade enquanto proibição do arbítrio' (Constituição da República Portuguesa, Anotada, 3ª edição, Coimbra, 1993, p. 127). Este limites externos do exercício da discricionaridade legislativa traduzem-se, por seu turno, na proibição de discriminações. Apelando mais uma vez a Gomes Canotilho/Vital Moreira,
'A proibição de discriminações (nº 2) não significa uma exigência de igualdade absoluta em todas as situações, nem proíbe diferenciações de tratamento. A Constituição indica ela mesma um conjunto de factores de discriminação ilegítimos (nº 2). Aí se contam os mais frequentes e historicamente mais significativos dos elementos fundadores de diferenças de tratamento. Mas esse elenco não tem obviamente carácter exaustivo, sendo puramente enunciativo. São igualmente ilícitas as diferenciações de tratamento fundadas em outros motivos, sempre que eles se apresentem como contrários à dignidade humana, incompatíveis com o princípio do Estado de direito democrático, ou simplesmente arbitrários ou impertinentes. O que se exige é que as medidas de diferenciação sejam materialmente fundadas sob o ponto de vista da segurança jurídica, da proporcionalidade, da justiça e da solidariedade e não se baseiem em qualquer motivo constitucionalmente impróprio. As diferenciações de tratamento podem ser legítimas quando (a) se baseiem numa distinção objectiva de situações; (b) não se fundamentem em qualquer dos motivos indicados no nº 2; (c) tenham um fim legítimo segundo o ordenamento constitucional positivo; (d) se revelem necessárias, adequadas e proporcionadas à satisfação do seu objectivo' (ob. cit., p. 127, 128).
8. Transpondo estas considerações para o caso sub judice, há em primeiro lugar que reconhecer que o legislador estabeleceu uma distinção entre professores nas situações (A) e (B) supra referenciadas. Sendo certo, como se viu, que as diferenciações – ou discriminações – não são, em princípio, proibidas pela Lei Fundamental, cabe averiguar da sua necessidade, adequação e proporcionalidade.
9. Em primeiro lugar, a diferenciação é necessária, em atenção aos princípios da eficácia e unidade de acção administrativas (artigo 267º, nº 2, da Constituição). Com efeito, e contra o que sustenta a recorrente, estando a Administração central directa estruturada por Ministérios, aos quais cabem, individualmente, determinadas atribuições do Estado, a fim de assegurar uma melhor prossecução dos vários interesses públicos a seu cargo, natural é que, para efeitos de progressão numa determinada carreira, o tempo de serviço seja contado por relação com a duração do vínculo laboral do funcionário a essa carreira. A especificidade de funções prestadas é um factor essencial à definição de uma carreira, e esta, por sua vez, está intrinsecamente relacionada com o quadro orgânico em que o funcionário se insere. Aparentemente, estas considerações afastariam a possibilidade de cômputo do tempo de serviço para efeitos de progressão na carreira docente aos funcionários que prestam funções administrativas no seio do Ministério da Educação. Só aparentemente, porém, na medida em que a unidade da Administração reside precisamente aí: há um conjunto de atribuições destinado a cada Ministério e dentro desse específico leque de possibilidades, as competências dos órgãos e agentes – distribuídas de forma vertical, através do sistema de hierarquias – visam a prossecução dos mesmos fins. As atribuições do Ministério da Educação tanto são desenvolvidas por funcionários administrativos como por funcionários que exercem funções docentes. Conforme se lê na sentença do Tribunal Administrativo de Círculo de Coimbra, a alternância de funções docentes com funções administrativas integradas nas atribuições do Ministério da Educação, desempenhadas por professores, contribui para a intercomunicabilidade de experiências na ampla área do ensino, que pode ser a todos os títulos frutuosa para funcionários – professores –, alunos e Ministério da Educação. Ora,
'Tais fins nem sempre são conseguidos através de figuras legais, como o destacamento ou a requisição, por falta de base legal. É, pois, natural, que o legislador tenha querido criar uma certa mobilidade, dentro dos serviços integrados no Ministério da Educação. Para poder satisfazer necessidades dos seus serviços em determinados momentos, facultando aos professores, que se disponham a optar pela ocupação de lugares dos quadros dos seus serviços centrais, a possibilidade de, quando o entenderem, regressarem ao seu anterior serviço docente. Está aqui subjacente, como já se aludiu, o interesse público, e não uma protecção de interesse particulares, que apenas reflexamente resultam protegidos' (sublinhado nosso). Perturbada seria a unidade da acção administrativa se vingasse a tese da recorrente. Contando tempo de serviço prestado num Ministério para efeitos de progressão de uma carreira desenvolvida noutro Ministério, estaríamos a misturar no tempo uno de uma carreira vários tempos distribuídos pelo exercício, não só de funções diferentes, como e sobretudo, pela prossecução, ao serviço de entidades diferentes, de finalidades completamente distintas. Tão-pouco colhe o argumento da equiparação de situações como a sua às dos professores que prestaram serviço docente nas ex-colónias, com vínculo ao quadro do Ministério do Ultramar. É a materialidade das funções exercidas que conta, a sua relação intrínseca com os objectivos de um Ministério (da Educação) que, na altura, em virtude de factores geográficos, o legislador entendeu pôr a cargo de outro Ministério (do Ultramar).
10. Em segundo lugar, a diferenciação é adequada. Um dos objectivos do legislador ao estruturar os sistemas de carreiras é, certamente, premiar a especialização do trabalhador no desempenho de determinadas funções. Ao restringir o factor temporal de progressão na carreira docente à prestação de serviço no âmbito do Ministério da Educação, o legislador está a manter-se coerente com essa linha de conduta, vincando os diferentes papéis dos vários Ministérios na organização administrativa do Estado.
11. Por último, não há qualquer desproporcionalidade em sentido estrito nas normas analisadas. Elas servem o objectivo para que foram criadas, não o excedem, nem causam sacrifícios desnecessários. Note-se que o tempo de serviço prestado pela recorrente no Ministério do Interior só não lhe é computado para efeitos de progressão na carreira docente, à qual, durante 24 anos, não conservou qualquer vínculo, optando por se integrar numa estrutura administrativa com atribuições completamente díspares. Desproporcionado seria impedir o cômputo dos anos para efeitos de aposentação da função pública, pois aí o que releva é a ligação laboral à estrutura da Administração Pública, independentemente do cargo desempenhado.
12. Tudo visto, considera o Tribunal Constitucional que as normas indicadas não violam o princípio da igualdade, não padecendo, com esse fundamento, de qualquer inconstitucionalidade. Não se justifica, por isso, fazer qualquer interpretação extensiva, como pretende a recorrente, uma vez que o sentido das disposições em apreço, que flui quer do elemento literal, quer do elemento lógico, não atenta contra os objectivos constitucionais, antes os confirma.
III
13. Nestes termos e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide: a) Não julgar inconstitucionais as normas dos artigos 90º do Decreto-
-Lei nº 18/88, de 21 de Janeiro, e 88º do Decreto-Lei nº 35/88, de 4 de Fevereiro, por considerar não haver qualquer violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição; b) Negar provimento ao recurso, confirmando o acórdão recorrido, no que diz respeito à matéria de constitucionalidade.
Lisboa, 2 de Março de 1999 Maria Helena Brito Vítor Nunes de Almeida Maria Fernanda Palma Alberto Tavares da Costa Paulo Mota Pinto Artur Maurício José Manuel Cardoso da Costa