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Procº nº 759/98.
2ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
I
1. Por acórdão de 24 de Outubro de 1997, lavrado pela da 10ª Vara Criminal do Círculo de Lisboa, foi, inter alia, condenado o arguido M... na pena de 4 anos de prisão pelo cometimento de um crime previsto e punível pelo artigo
21º, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro.
Desse acórdão recorreu o arguido para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo, na alegação que produziu, concluído, por entre o mais:-
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2- O arguido, erradamente, vai para a audiência de julgamento sem uma única prova capaz de fundamentara sua versão.
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4- Porém e face à inexistência de provas de defesa era indispensável que o tribunal se socorresse de outros mecanismos ao seu dispor – o Relatório do I.R.S. –
5- Deveria pois ter sido solicitado a elaboração do relatório social do arguido.
6- Outro entendimento a dar ao artigo 370º do C.P.P. torna-o inconstitucional por violar o artigo 32º da C.R.P.
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Por acórdão de 8 de Maio de 1998, aquele Alto Tribunal negou provimento ao recurso, podendo ler-se naquela peça processual:-
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O artigo 370º, n.º 1 do C. P. Penal refere que o Tribunal, logo que o considere necessário à correcta determinação da sanção, e em qualquer altura do julgamento, pode solicitar a elaboração de relatório social.
De acordo com o seu n.º 2, a aludida diligência torna-se obrigatória, se o arguido, à data da prática dos facto, tiver menos de 21 anos, com a condição de poder ser-lhe aplicada uma medida de segurança de internamento, uma pena de prisão efectiva superior a três anos ou uma medida alternativa à prisão que exija o acompanhamento por técnico social.
O arguido nasceu em 20/07/74, pelo que à data dos factos (em
20/10/96) já tinha 22 anos, o que evidencia que a obrigatoriedade referenciada no n.º 2 do aludido artigo 370º, não tem razão de ser.
Poderia o Tribunal, se o considerasse necessário em ordem a uma correcta determinação da sanção aplicada (ver o que se extrai do n.º 1 do citado artigo), solicitar a elaboração do inquérito.
Todavia, tendo actuado de harmonia com o determinado no artigo 127º do C. P. Penal (referência à livre apreciação da prova), entendeu não haver necessidade de o fazer, em face dos elementos de prova carreados ao julgamento e ali apreciados e a sua livre convicção – obediência à lei.
O arguido apresentou contestação e deveria ter também o cuidado de alicerçar as suas afirmações em elementos concretos de prova. Falhando nisto, como admite, ‘sibi imputet’.
A lei instituiu sistemas de motivação e controle relacionados com a apreciação da prova, sendo de pôr em evidência o carácter racional desta, com a imposição de um sistema que obriga a uma correcta fundamentação fáctica das decisões que têm por finalidade o cumprimento final do objecto do processo. O Tribunal ‘a quo’. Com toda a certeza, apreciou a prova produzida – e não se mostra existir atropelo a prova vinculada ou tarifada –, por modo a ser admitido que fez uso de uma liberdade exercida de harmonia com um dever, que é o da prossecução da chamada ‘verdade material’, com recondução a critérios objectivos e ligada a realidades de motivação e controlo.
Assim sendo, não se vislumbra fundamento para ser afirmado que houve atropelo ao disposto no artigo 32º da C. R. P..
O arguido teve todas as possibilidades de se defender do libelo acusatório contra ele dirigido.
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É deste acórdão que vem, pelo arguido, interposto recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, com vista à apreciação da inconstitucionalidade, por violação do artigo 32º da Constituição, da norma constante do artº 370º do Código de Processo Penal na interpretação segundo a qual não há 'necessidade de elaboração do relatório do Instituto de Reinserção Social'.
2. Determinada a feitura de alegações, conclui o recorrente a por si produzida do seguinte modo:-
'1- A função do relatório social é auxiliar o tribunal no conhecimento de personalidade do arguido, incluindo a sua condição familiar e socio-profissional.
2 – Por isto deve estar junto aquando da determinação da sanção, uma vez que o seu conteúdo respeita a matéria de facto que deve ser objecto de apreciação do tribunal, mostrando-se necessário fazer constar da decisão quais os factos relativos à personalidade do arguido que foram tidos em conta.
3 – Mais essencial ainda é esse relatório quando há ausência de elementos de prova, e quando o arguido é tão jovem e primário.
4 – Em processo penal não se pode fazer um exame exaustivo da personalidade do arguido, mas isto não significa que não se lhe devam traçar esquematicamente os respectivos contornos (Ac. 19/04/91.
5 – Se assim não for, estar-se-à a esvaziar a função, significado e conteúdo da figura do relatório social e estar-se-à também a violar as garantias fundamentais de defesa do cidadão.
6 – Viola-se assim o art. 32, nº 1 da CRP.
7 – Havendo apenas como meio de prova a própria palavra do arguido, o relatório social devia sempre ter sido solicitado para assim vir ao de cima o facto de este ser consumidor de haxixe, ser dirigente de um clube de futebol, trabalhar, ser filho único e como tal único amparo da sua mãe, viúva e doente.
8 – Estes factos contribuiriam para uma mais correcta atribuição da pena e para um maior respeito das suas garantias de defesa.
9 – Aliás a função do relatório social é também possibilitar a correcta determinação da sanção a ser aplicada, isto é, permitir o adequado julgamento de direito (Ac. STJ 18/12/91).
10 – Com este instrumento pretendeu-se que a prova relevante para efeitos da sentença final se não limitasse ao elenco de factos objecto do processo, nomeadamente quanto ao circunstancionalismo concreto de vida e às condições envolventes do meio cultural e familiar.
11 – A falta do relatório social, mesmo quando obrigatório, perante carência de factos àcerca dos elementos visados pelo relatório, não é apenas uma mera irregularidade, mas determina a insuficiência da matéria de facto para a decisão.
12 – A unica prova apreciada foi a de acusação uma vez que, além das declarações do próprio arguido, a defesa não teve qualquer outros meios de defesa.
13 – Mais: na decisão recorrida nada se diz sobre o ambiente familiar e condição socio-profissional do arguido.
14 – Houve assim um atropelo das garantias de defesa do arguido.
15 – Padece portanto de inconstitucionalidade o artigo 370º, nº 1 do CPP quando interpretado no sentido da não obrigatoriedade da solicitação do relatório social quando não haja outros elementos de prova, por violação do estatuído no artigo 32º, nº 1 da CRP'.
De seu turno o Representante do Ministério Público junto deste Tribunal concluiu a sua alegação dizendo:-
'1º
A norma constante do nº 2 do artigo 370º do Código de Processo Penal, ao estabelecer que – tendo o arguido mais de 21 anos à data da prática dos factos e não estando, portanto, sujeito ao regime especial dos 'jovens adultos'
– compete ao Tribunal determinar, no exercício dos seus poderes inquisitórios e de livre apreciação, a elaboração de relatório social, quando o considere necessário à correcta determinação da sanção eventualmente aplicável ao arguido, não viola o princípio constitucional das garantias de defesa.
2º
Na verdade, tal princípio não afasta em absoluto a auto-res-ponsabilidade dos sujeitos processuais pela orientação da sua defesa, cumprindo naturalmente ao arguido - quando considere tal relatório social essencial – requerer ou sugerir tempestivamente ao juiz a respectiva elaboração
– não lhe sendo lícito vir questionar a pretensa omissão do exercício de poderes inquisitórios do Tribunal a que, afinal, deu causa.
3º
Não viola o princípio das garantias de defesa a vigência do princípio da livre apreciação de provas, bem como o facultar-se ao juiz a apreciação de quais os meios probatórios que, por se considerarem necessários ao apuramento da verdade material, devem ser oficiosamente produzidos.
4º
Temos em que deverá improceder o presente recurso'.
II
1. Ressalta do requerimento de interposição de recurso que, em direitas contas, a vertente impugnação é de circunscrever, e tão só, à norma constante do nº 1 art.º 370º do Código de Processo Penal aprovado pelo Decreto-Lei nº 78/87, de 17 de Fevereiro, na interpretação acima indicada.
Na verdade, dispõe-se naquele artigo:- Artigo 370º
(Relatório social)
1. O tribunal pode em qualquer altura do julgamento, logo que o considerar necessário à correcta determinação da sanção que eventualmente possa vir a ser aplicada, solicitar a elaboração de relatório social, ou a respectiva actualização quando aquele já constar do processo.
2. A solicitação referida no número anterior é obrigatória quando o arguido, à data da prática do facto, tivesse menos de 21 anos e for de admitir que lhe venha a ser aplicada uma medida de segurança de internamento, uma pena de prisão efectiva superior a três anos ou uma medida alternativa à prisão que exija o acompanhamento por técnico social.
3. Independentemente de solicitação, os serviços oficiais de reinserção social podem enviar ao tribunal, quando o acompanhamento do arguido preso preventivamente o aconselhar, o relatório social ou a respectiva actualização
4. A leitura em audiência do relatório social só é permitida a requerimento, nos termos e para os efeitos previstos no artigo seguinte.
É de notar que, no caso dos autos, o ora recorrente não ofereceu quaisquer provas e não requereu ou sugeriu a realização de quaisquer diligências
(designadamente a elaboração de um relatório social), com vista à demonstração ou tentativa de demonstração de quaisquer factos que, quer objectivamente, quer do seu ponto de vista, servissem para alicerçar circunstâncias depoentes a seu favor ou para facultar ao tribunal aquilo que, na sua óptica, deveria ser uma maior adequação da pena em que eventualmente viesse a ser condenado à sua personalidade ou ao circunstancionalismo social, económico, económico e familiar em que se inseria.
Ainda assim, o tribunal de 1ª instância deu como provado que o recorrente auferia no exercício da sua actividade profissional a quantia de Esc.
50.000$00 mensais, vivia com a sua mãe, possuía o 8º ano de escolaridade, não tinha antecedentes criminais, sendo humilde o seu estatuto económico e social.
2. A questão de constitucionalidade posta pelo recorrente consiste em, a seu ver, a norma ínsita no transcrito nº 1 do artº 370º do Código de Processo Penal, ao não impor ao tribunal o dever de solicitar a elaboração de um inquérito social (pois que a mesma apenas lhe concede uma mera faculdade quando o considerar necessário à correcta determinação da sanção que eventualmente possa vir a ser aplicada e caso se trate de arguidos com menos de 21 anos e seja de admitir que lhes venha a ser aplicada uma medida de segurança de internamento, uma pena de prisão efectiva superior a três anos ou uma medida alternativa à prisão que exija o acompanhamento por técnico social), é contrária ao princípio do asseguramento das garantias de defesa no processo criminal consagrado no nº 1 do artigo 32º da Lei Fundamental.
Assistirá ao recorrente razão?
Adianta-se desde já que este Tribunal não vislumbra que a norma sub iudicio padeça do vício que lhe é imputado.
2.1. Na verdade, o normativo em causa não restringe, seja de que forma for, que o arguido exerça plenamente toda uma panóplia de acções ou actividades com vista a assegurar uma sua efectiva defesa, pois que dela não deflui nenhum comando do qual se extraia uma qualquer proibição ou, ao menos, um poder - atribuído ao tribunal - de indeferimento, não razoável ou injustificado
(ainda que essas não razoabilidade ou não justificação sejam perspectivadas de harmonia com a Constituição), de qualquer pretensão do arguido direccionada ao exercício da sua defesa, não vedando, nitidamente e verbi gratia, que o tribunal defira uma solicitação, formulada pelo arguido, de feitura de um relatório social.
Por outro lado, a mencionada norma também não contende com o exercício, pelo tribunal, de poderes inquisitórios, designadamente com vista ao apuramento de factos ou circunstâncias que se revelem favoráveis ao arguido. Antes pelo contrário.
Não se vê, assim, que o nº 1 do artº 370º, seja porque modo for, vá, directa ou indirectamente, brigar com 'os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação', ou com a 'compensação' necessária para atenuar a 'desigualdade material de partida entre a acusação' e a 'defesa' (usaram-se, entre aspas, as palavras de Gomes Canotilho e Vital Moreira em Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, 202).
Não lobriga deste modo o Tribunal que os direitos fundamentais do arguido se vejam, pelo normativo em espécie, limitados, tendo por referência a sua «orientação para a defesa» no processo criminal.
Numa outra óptica, convém assinalar que a diferenciação entre o nº 1 e o nº 2 do artº 370º, no ponto em que este último estatui a obrigatoriedade de solicitação de relatório social quando em causa estejam arguidos com menos de 21 anos de idade e seja de admitir que lhes venha a ser aplicada uma medida de segurança de internamento, uma pena de prisão efectiva superior a três anos ou uma medida alternativa à prisão que exija o acompanhamento por técnico social, não é algo de arbitrário ou infundado.
De facto, e sabido que é que, em relação a tais arguidos, o nosso sistema penal prescreve um regime especial, essencialmente virado para uma função mais reeducadora do que sancionadora (cfr. Decreto-Lei nº 401/82, de 23 de Setembro), o relatório social, como assinala o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto em funções junto deste Tribunal, surge 'como um instrumento processual essencial para a plena realização dos fins constantes de tal diploma legal'. Sendo assim, a diferenciação surpreendida nos números 1 e 2 do artº 310º, no que tange à obrigatoriedade da solicitação do relatório social, tem manifesta razão de ser, não se visualizando nela qualquer arbitrariedade.
3. Alcançado que as garantias de defesa que o processo criminal deve assegurar ao arguido não são beliscadas pela norma em apreço, ainda se irá o Tribunal debruçar sobre uma outra vertente que, aliás, não é sequer equacionada pelo recorrente.
Consiste ela em saber se, sendo inquestionável que a punição criminal tem de ser adequada à culpa, o que decorre da circunstância de a República Portuguesa ser baseada na dignidade da pessoa humana, a não obrigatoriedade de solicitação de um relatório social de onde se possam extrair elementos tendentes ao conhecimento da personalidade do arguido e da sua ambiência económica, social e cultural, é algo que vai conflituar com o Diploma Básico.
Também neste particular a resposta deve ser negativa.
De facto, para se alcançar uma resposta positiva, mister seria que - ainda que se partisse da suposição de que a adequação da pena à culpa postulasse inultrapassavelmente e do ponto de vista constitucional, um conhecimento pelo tribunal da personalidade do arguido e da dita ambiência – se concluísse que um tal conhecimento só seria possível de advir através da elaboração de um relatório social.
Ora, é por demais claro que se não deve sustentar uma tal postura.
Aliás, no caso dos autos até se demonstra que foi possível a recolha pelo tribunal, e muito embora não tenha sido efectuada a realização de relatório social, de elementos de facto de onde se extraíram dados sobre a personalidade e ambiência social, económica e educacional do ora recorrente.
De outro lado, e no limite, a aludida resposta positiva até poderia conduzir a que o que constasse do relatório social fosse perspectivável como uma forma de prova tarifada, o que, como é obvio, contenderia com o princípio, regente em processo criminal, da livre apreciação da prova pelo tribunal, o que, isso sim, poderia contender com a postergação de garantias de defesa (cfr., sobre o princípio da livre apreciação da prova pelo tribunal consagrado no Código de Processo Penal de 1987, os Acórdãos deste Tribunal números 1165/96
(publicado na 2ª Série do Diário da República de 6 de Fevereiro de 1997) 320/97
(ainda inédito), 464/97 (publicado na 2ª Série do jornal oficial de 12 de Janeiro de 1998) e 542/97 (também ainda inédito).
III
Em face do exposto, nega-se provimento ao recurso, condenando-se o impugnante nas custas processuais, fixando a taxa de justiça em 10 unidades de conta. Lisboa, 22 de Março de 1999 Bravo Serra Paulo Mota Pinto Guilherme da Fonseca José Manuel Cardoso da Costa