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Proc. nº 846/93
2ª Secção Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam na 2ª secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1 – Por decisão do 1º Tribunal Militar Territorial de Lisboa, de 14 de Julho de
1993, foi o ora recorrente, J..., condenado: a. pela prática de um crime continuado de burla, previsto e punido pelo artigo 204º, alínea b), do Código de Justiça Militar (CJM), na pena de três anos e seis meses de prisão, a qual foi substituída por igual tempo de presídio militar; b. pela prática de um crime de peculato, previsto e punido pelo artigo
193º, nº 1, alínea d), do Código de Justiça Militar, na pena de nove meses de presídio militar; c. pela prática de um crime previsto e punido pelo artigo 167º, nºs 1 e 2, do mesmo Código de Justiça Militar, na pena de seis meses de prisão militar. Em cúmulo, efectuado nos termos do artigo 40º do Código de Justiça Militar, foi o arguido condenado na pena única de quatro anos de presídio militar, tendo-lhe sido perdoado um ano nos termos dos artigos 14º, nº 1, alínea b), 2º, 4º e 15º da Lei nº 23/91, de 4 de Julho. Ordenou ainda o Tribunal que fosse descontado o tempo de prisão preventiva por ele sofrida e a prisão disciplinar que lhe foi imposta.
2 – Desta decisão apenas o arguido apresentou recurso. Nas respectivas alegações suscitou o recorrente desde logo a questão da inconstitucionalidade da norma que se extrai do artigo 419º do Código de Justiça Militar, por, no seu entender, ser violadora dos artigos 13º, 32º, nº 1, e 208º da Constituição.
3 – Já no Supremo Tribunal Militar o Promotor de Justiça, no seu parecer de fls.
499 a 502, defendeu o agravamento das penas parcelares aplicadas ao réu pela prática dos crimes previstos nos artigos 193º e 204º do Código de Justiça Militar para, respectivamente, dois anos de presídio militar e oito anos de prisão maior. Propôs ainda que fosse mantida a pena aplicada pela prática do crime previsto no artigo 167º do Código de Justiça Militar e que do cúmulo jurídico a efectuar não resultasse pena inferior a oito anos e dois meses de prisão maior.
3 – Notificado, ao abrigo da alínea b) do nº 2 do artigo 440º do Código de Justiça Militar, para responder ao parecer do Promotor de Justiça, o recorrente veio sustentar a inconstitucionalidade do nº 2 do artigo 440º do Código de Justiça Militar, por entender que tal norma é violadora dos artigos 13º e 32º, nº 1, da Constituição.
4 – O Supremo Tribunal Militar, por acórdão de 18 de Novembro de 1993, concedeu parcial provimento ao recurso, dizendo, sobre as questões de constitucionalidade suscitadas, o seguinte: Quanto à alegada inconstitucionalidade do artigo 419º do Código de Justiça Militar:
'No que toca à falta de fundamentação, este Supremo, pelo Acórdão de 24 de Maio de 1990 (Colecção de Acórdãos, 1º vol., 1990, pp. 238 e seguintes), decidiu que o dever de fundamentação é aplicável ao processo criminal militar nos termos do artigo 374º, nº 2, do Código de processo Penal, subsidiariamente aplicado. No aludido acórdão entendeu-se que existe lacuna no Código de Justiça Militar relativamente à fundamentação, pelo que aquele artigo 374º, nº2, tem aplicação e, consequentemente, constitui nulidade a falta de fundamentação ex vi do disposto no artigo 379º, alínea a), também do Código de processo Penal. Apreciando agora a questão, considera este Supremo Tribunal dever alterar este entendimento. De facto, o artigo 419º do Código de Justiça Militar tem redacção muito próxima do artigo 450º do Código de processo Penal de 1929, tal como a primeira parte do artigo 418º, nº 2, daquele Código é muito semelhante ao artigo 469º deste diploma. Sempre se entendeu que o Código de processo Penal de 1929 não obrigava ou até proibia a fundamentação das respostas aos quesitos, mesmo após a entrada em vigor do Código de processo Civil de 1962, subsidiário do Código de Processo Penal e que impõe tal fundamentação (...). Decidiu-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de maio de 1963
(Boletim 128, p. 378) que o julgamento da matéria de facto pelo Tribunal Colectivo, em processo penal, não obedecia ao sistema do artigo 653º do Código de Processo Civil, que impõe a fundamentação. Ora, esta não aplicação do dito artigo 653º só pode suceder porque não existe lacuna no Código de processo Penal de 1929 e, pelas mesmas razões, também não há lacuna no Código de Justiça Militar ao não prever, no seu artigo 419º como matéria a integrar o acórdão condenatório a fundamentação dos factos provados. Alega, porém, o recorrente ser inconstitucional o dito artigo 419º, na interpretação que acaba de ser dada, por violação dos princípios contidos nos artigos 13º, 32º, nº 1 e 208º da Constituição. Mas, salvo melhor opinião, não tem razão. De facto, importa não esquecer que os processos penais comum e militar têm
âmbito de aplicação diferentes, aplicável aquele aos crimes comuns e este aos essencialmente militares. A diferente estrutura de crimes sub judicio e a diversa composição dos tribunais que os julgam, justificam e até, por vezes, impõem regimes separados dos dois processos. Assim, pode o legislador impor a fundamentação dos factos provados no processo penal comum e não impor no processo penal militar, sem atingir o princípio da igualdade, já que se trata de processos desiguais. E também é necessário recordar que os cidadãos estão sujeitos aos dois processos, independentemente de serem ou não m8ilitares, já que, como se sabe, os crimes essencialmente militares podem ser praticados (pelo menos alguns deles) por cidadãos não militares, tal como os crimes comuns podem ser cometidos por elementos das Forças Armadas. O Tribunal Constitucional julgou ser constitucional o artigo 469º do Código de Processo Penal de 1929, entendendo não ser inconstitucional a inexistência da fundamentação (acórdão nº 207/88, de 12 de Outubro de 1988, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 12º volume, págs. 609 e seguintes). Pelas mesmas razões, para as quais se remete, não são inconstitucionais os artigos 418º, nº 2 e 419º do Código de Justiça Militar, quando não contemplam a fundamentação dos factos provados. Efectivamente, também não é violado o artigo 32º da Constituição já que a citada fundamentação não atinge as garantias de defesa do acusado ou o due process of law, nem o artigo 208º, nº1, da Lei Fundamental dado que a fundamentação das decisões dos tribunais existe somente nos casos e nos termos previstos na lei. Conclui-se, assim, que o tribunal recorrido não cometeu qualquer nulidade ao não fundamentar a decisão factual que tomou, pois a ela não era obrigado'.
Quanto à alegada inconstitucionalidade do artigo 440º, nº2, alínea b) do Código de Justiça Militar:
'O artigo 440º, nº2, alínea b), do Código de Justiça Militar preceitua que a proibição da reformatio in pejus, imposta pelo nº 1 do mesmo artigo, não se verifica quando o Promotor de Justiça, no visto inicial do processo, se pronunciar fundamentadamente pela agravação da pena. Esta norma, porém, é rotulada de inconstitucional pelo recorrente, que alega violar elo os princípios da igualdade e as garantias de defesa do arguido, previstas respectivamente, nos artigos 13º e 32º, nº 1, da Constituição. Quanto àquele princípio da igualdade já se referiu que ele não impõe a coincidência dos princípios contidos nas leis penal e processual comum e militar. Se tal coincidência fosse constitucionalmente imposta o Código de Justiça Militar não podia existir ou funcionava de forma idêntica à lei penal e era inútil ou desta divergia e era inconstitucional. Também não há violação do artigo 32º, nº1, da lei Fundamental. Como se afirma no já citado acórdão nº 297/88 do tribunal Constitucional: «A ideia geral que pode formular-se a este respeito – a ideia geral, em suma, por onde terão de aferir-se outras possíveis concretizações (judiciais) do princípio da defesa, para além dos consignados no nº 2 e seguintes do artigo 32º - será a de que o processo criminal há-de configurar-se como um due process of law, devendo considerar-se ilegítimo, por consequência, quer eventuais normas processuais, quer procedimentos aplicativos delas, que impliquem um encurtamento inadmissível das possibilidades de defesa do arguido». Ora, a reformatio in pejus não é, em si mesma, um encurtamento inadmissível das possibilidades de defesa do arguido. Este tem o direito, que se integra nas suas garantias de defesa, de poder recorrer de uma sentença condenatória, pedindo a revisão do seu caso. Mas, esta revisão apenas está obrigatoriamente limitada pela acusação e não pelo conteúdo da sentença que se pretende rever. Admite-se que, prevendo a lei, em caso de recurso exclusivo do condenado, a proibição da reformatio in pejus, não possa tal proibição ser afastada sem que o recorrente seja disso alertado, propiciando-se-lhe a possibilidade de responder a um pedido de agravação da pena e até de desistir do recurso. E ambas estas faculdades estão-lhe conferidas pela lei. Porém, podendo o réu conhecer e opor-se ao pedido de agravação, tal como a um recurso de acusação pública, é manifesto que está assegurado o fair tial ou o due process of law que assegura as garantias de defesa constitucionalmente tuteladas'.
5 – É desta decisão que vem interposto, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo
70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, o presente recurso. Pretende o recorrente, nos termos do respectivo requerimento de interposição, ver apreciada a constitucionalidade das normas que se extraem dos artigos 419º e 440º, nº 2, do Código de Justiça Militar, por entender que tais normas violam o disposto nos artigos 13º e 32º, nº 1, da Constituição e, quanto à primeira daquelas normas, ainda o disposto no artigo 208º da Lei Fundamental.
6 – Recebido o recurso foi o recorrente notificado para alegar, o que fez, tendo concluído nos seguintes termos:
'1ª - O ora recorrente foi julgado e condenado no 1º Tribunal Militar Territorial de Lisboa, pela prática de três crimes essencialmente militares, todos punidos pelo CJM;
2ª - Foi-lhe aplicada a pena única de 4 (quatro) anos de presídio militar;
3ª - Inconformado, interpôs o então réu, ora recorrente, recurso da decisão para o STM;
4ª - Considerou que o Tribunal militar de 1ª instância tinha aplicado uma norma alegadamente inconstitucional, a do artigo 419º do CJM, quando não a devia ter aplicado;
5ª - Sustentou que a norma do artigo 419º do CJM era violadora de três princípios constitucionais, os contidos nos artigos 13º, 32º, nº1 e 208º, nº 1, da CRP;
6ª - O STM não atendeu aos motivos invocados pelo ora recorrente e decidiu manter a aplicação do preceito do artigo 419º do CJM;
7ª - Durante a pendência do recurso, o Promotor de Justiça junto do STM requereu, tendo em vista a alínea b) do nº 2 do artigo 440º do CJM, a agravação das penas aplicadas ao réu em relação a dois crimes em cuja prática havia sido condenado na 1ª instância;
8ª - O ora recorrente contestou a pretensão de aplicação do instituto da agravação da pena nos casos de recursos interpostos só pelo réu, vulgo
'reformatio in pejus';
9ª - Para tanto, invocou a eventual inconstitucionalidade da norma do nº 2 do artigo 440º do CJM, entendendo que a referida norma não podia ser aplicada pelo STM, porquanto infringia, desta vez, os princípios constitucionais contidos nos artigos 13º e 32º, nº1, da CRP;
10ª - No seu acórdão, o STM decidiu, mais uma vez, ao arrepio do artigo 207º da CRP, ao ter aplicado ao recorrente a pena global única de 6 (seis) anos de prisão;
11ª - Agravou, assim, a punição imposta em 1ª instância;
12ª - O objecto do presente recurso circunscreve-se à questão da eventual inconstitucionalidade das normas dos artigos 419º e 440º, nº2, do CJM;
13ª - O artigo 419º do CJM é o preceito que define o conteúdo a que deve obedecer um acórdão condenatório a ser proferido por um tribunal militar de 1ª instância;
14ª - Na sua extensa redacção, enumera os diversos elementos que o julgador deve incluir no texto condenatório;
15ª - Todavia, na sua profusão de alíneas, não refere o essencial;
16ª - Não exige uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentem a decisão; não requer que a redacção do acórdão contenha uma enumeração dos factos não provados; omite a exigência da indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal;
17ª - Os referidos elementos são impostos, por outro lado, pelo nº 2 do artigo
374º do CPP em relação à sentença penal comum;
18ª - O antagonismo entre o prescrito na lei penal militar, por um lado, e na lei processual penal, por outro, põe a nu as deficiências do dispositivo legal do artigo 419º do CJM, preceito da lei militar;
19ª - As graves faltas de que enferma o artigo 419º do CJM têm uma explicação de fundo: nenhuma das alíneas constantes do artigo se aproxima de uma fundamentação, tal como é exigido pelo artigo 374º do CPP em relação à sentença penal comum;
20ª - Verifica-se, em primeiro lugar, que o artigo 419º do CJM viola o princípio da necessária fundamentação das decisões judiciais, consagrado no artigo 208º, nº 1, da CRP;
21ª - Este dispositivo constitucional estabelece, claramente, um dever geral de fundamentação das decisões judiciais;
22ª - Este dever constitui uma garantia integrante de um Estado de direito democrático e decorre, historicamente, das necessidades de racionalização e controle do poder judicial face à possibilidade de um exercício arbitrário do poder pelos juizes;
23ª - Simultaneamente instrumento de ponderação e legitimação da própria decisão judicial e de garantia do direito ao recurso, a necessária motivação dos actos jurisdicionais cumpre duas funções: uma, de ordem processual; outra, de ordem extra-processual;
24ª - A primeira função, de ordem endo-processual, tem por objectivo impor ao juiz um momento de verificação e de controlo crítico da lógica da decisão e vai garantir a efectividade do direito ao recurso;
25ª - A outra função, de ordem extra-processual, tem por escopo possibilitar o controlo externo e geral sobre a fundamentação factual, lógica e jurídica do acto decisório, a fim de garantir a 'transparência' do processo, que, por sua vez, surge conexa com a ideia de garantia do controle de justiça da decisão.
26ª - Só racionalizada e motivada a decisão judicial conseguirá convencer as partes e a sociedade da sua justiça;
27ª - A necessidade de fundamentação dos actos jurisdicionais concretiza-se através da exposição concisa e completa dos motivos de facto, bem como das razões de direito que justificaram a decisão; através, também, da indicação das provas que relevaram para a convicção do tribunal;
28ª - É precisamente a exposição de motivos e a indicação das provas que vemos faltarem no 419º do CJM;
29ª - A falta destes elementos essenciais faz com que o comando constitucional do nº 1 do artigo 208º da CRP não seja concretizado;
30ª - Não há razão nenhuma para que o dever de fundamentação não seja aplicável ao processo penal militar;
31ª - O STM, por acórdão de 24 de maio de 1990, decidiu que o dever de fundamentação era aplicável ao processo criminal militar, nos termos do artigo
374º, nº 2 do CPP, subsidiariamente aplicável;
32ª - Por aresto de 18 de Novembro de 1993, e num claro retrocesso em relação à jurisprudência anteriormente firmada, decide o mesmo STM alterar esse entendimento, tornando a aplicar o artigo 419º do CJM;
33ª - O facto de a fundamentação das decisões judiciais estar dependente da lei não legitima o STJ a aplicar a lei militar e a julgar, por esse facto, definido o âmbito do dever de fundamentação;
34ª - Apesar de Ter um alcance eminetemente programático, o preceito do nº 1 do artigo 208º da CRP é dotado, por imposição da ideia de Estado de direito democrático, de um conteúdo normativo imediato;
35ª - Este conteúdo normativo imediato faz decorrer para o legislador a obrigação de prever (ou não dispensar) a fundamentação das decisões judiciais. A discricionaridade legislativa não é total, portanto.
36ª - O que o legislador penal militar fez no artigo 419º do CJM foi, precisamente, dispensar a fundamentação das decisões penais militares, quando condenatórias;
37ª - Uma decisão judicial que baseie a sua 'fundamentação' nos termos previstos na lei militar exime o juiz da necessidade de consciencializar ou racionalizar as operações que o levam a proferir uma determinada decisão;
38ª - Acaba por frustrar o sentido e a intenção do comando constitucional do nº
1 do artigo 208º da CRP;
39ª - Uma decisão judicial fundamentada 'nos termos previstos na lei (militar) acaba por ser uma decisão infundamentada;
40ª - A norma do artigo 419º do CJM enferma do vício da inconstitucionalidade, por violação do princípio constitucional do nº 1 do artigo 208º da CRP;
41ª - Não é só o preceito do nº 1 do artigo 208º da CRP que impõe o dever de fundamentação. A norma do nº 1 do artigo 32º da Lei Fundamental também imporá tal dever.
42ª - A fundamentação das decisões judiciais constitui uma garantia do direito ao recurso, da sua efectividade.
43ª - A falta de exposição dos motivos fundamentadores da decisão do tribunal, bem como a falta de indicação das provas formadoras da sua convicção, vem impedir uma eficaz sindicância da decisão assim obtida;
44ª - O direito ao recurso tem cabimento no âmbito das garantias de defesa consagradas no artigo 32º, nº 1 da CRP;
45ª - A fórmula contida no nº 1 do artigo 32º da CRP não constitui apenas uma expressão condensada de todas as normas restantes do artigo;
46ª - O preceito do nº 1 deve ser objecto de uma leitura particularmente exigente, porquanto nos situamos num contexto das garantias de defesa do arguido em processo criminal;
47ª - A letra do nº 1 do artigo 32º da CRP não deixa margem para dúvidas;
48ª - A norma do nº 1 do artigo 32º da CRP constitui uma cláusula geral englobadora de todas e quaisquer garantias que hajam de decorrer do princípio da protecção global e completa dos direitos de defesa do arguido em processo criminal;
49ª - É, portanto, uma fonte autónoma de garantias de defesa, permitindo a ponderação de questões não expressamente previstas nos demais números do artigo;
50ª - O direito de recurso das decisões judiciais condenatórias constitui um instrumento necessário e adequado para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação;
51ª - A ideia de 'orientação para a defesa' do processo criminal inculcada, especialmente, pelo nº 1 do artigo 32º da CRP, faz com que o direito de recurso contra sentenças penais condenatórias se deva ter por incluído nas garantias de defesa de que fala o referido nº 1 do preceito.
52ª - Ao considerar que o tribunal militar de 1ª instância não estava obrigado a fundamentar a decisão condenatória que tomou, o STM fez tábua rasa dos princípios contidos no preceito constitucional retro-mencionado, sancionando a aplicação do artigo 419º do CJM, quando não o devia ter feito;
53ª - A falta de fundamentação do artigo 419º do CJM vem tolher a possibilidade do arguido efectivar o seu direito de recurso;
54ª - Esta grave omissão impede-o de defender cabalmente a sua posição e de contrariar a acusação;
55ª - O direito de recurso que se venha a exercer não será um direito efectivo;
56ª - Se o direito de recurso é uma das garantias de defesa do nº 1 do artigo
32º da CRP; se a fundamentação das decisões penais condenatórias há-de consubstanciar uma garantia (de efectivação) do direito ao recurso; o artigo
419º do0 CJM, ao não prever a fundamentação como requisito da sentença penal militar, é inconstitucional, por violar o princípio do nº 1 do artigo 32º da CRP, que também impõe – à semelhança do nº 1 do artigo 208º - o dever de fundamentação;
57ª - Se a fundamentação não está prevista no artigo 419º do CJM como um dos requisitos da sentença penal militar, quando condenatória, já o mesmo não se passa quanto à sentença penal comum: o nº 2 do artigo 374º do CPP impõe a fundamentação como um dos elementos que devem preencher o seu conteúdo;
58ª - Daqui resulta uma diversidade de regimes que parece violar o princípio constitucional da igualdade, inscrito no artigo 13º da CRP;
59ª - O referido princípio é um dos princípios estruturantes do sistema constitucional global e assenta na igual dignidade social de todos os cidadãos;
60ª - Igualdade significa proibição do arbítrio, intenção de racionalidade e intenção de justiça;
61ª - Impõe, como regra, a igualdade na aplicação do direito, fundamentalmente assegurada pela tendencial universalidade da lei e pela proibição de diferenciação dos cidadãos com base em condições meramente subjectivas;
62ª - proibindo o arbítrio, a igualdade proíbe, também, discriminações entre os cidadãos;
63ª - A proibição do arbítrio constitui um limite externo da liberdade de decisão dos poderes públicos no momento da aplicação da lei e considera inadmissíveis diferenciações de tratamento sem qualquer justificação razoável e, bem assim, identidade de tratamento para situações de facto diferentes.
64ª - A vinculação do legislador ao princípio constitucional da igualdade não vai eliminar a liberdade de conformação legislativa;
65ª - No entanto, há-de a medida legislativa ter adequado suporte material, na medida em que existem limites externos da discricionaridade legislativa que impedem que o legislador vá longe demais;
66ª - O legislador vai longe demais quando é arbitrário;
67ª - Não deixa de haver liberdade legislativa, mas ela não é total;
68ª - Através da proibição de discriminações – outra das expressões do princípio da igualdade – serão consideradas ilegítimas quaisquer diferenciações de tratamento entre os cidadãos que não sejam materialmente fundadas;
69ª - O nº 2 do artigo 13o ajuda a esclarecer quais serão as situações de tratamento diferenciado ilegítimo, ao enunciar uma série de factores de desigualdade inadmissíveis;
70ª - Este elenco contido no nº 2 não tem, obviamente, carácter exaustivo, sendo puramente enunciativo;
71ª - Serão igualmente ilícitas as diferenciações de tratamento fundadas em outros motivos, sempre que eles se apresentem como contrários à dignidade humana ou incompatíveis com o princípio do Estado de direito democrático;
72ª - A diversidade de regimes imposta pelo artigo 419º do CJM, em contraposição ao artigo 374º, nº 2, do CPP, importa uma desigualdade ilegítima e materialmente infundada;
73ª - O dever de fundamentação constitui uma imposição da ideia de Estado de direito;
74ª - Se a diferenciação de tratamento se baseia num factor que se apresenta como incompatível com a ideia de Estado de direito democrático, a diversidade de regimes em que se traduz essa diferenciação há-de carecer de qualquer justificação racional ou fundamento material bastante;
75ª - No caso concreto do confronto entre o artigo 419º do CJM e o artigo 374º do CPP, estamos perante uma sucessão de leis com diferenciação não fundada;
76ª - O preceito da lei processual penal comum prevê a fundamentação como requisito da sentença penal correspectiva. O preceito homólogo da lei penal militar omite este requisito.
77ª - Se a distinção operada por esta diversidade de regimes constitui uma distinção materialmente infundada, de entre as disposições em confronto, aplicar-se-á a todas as situações e pessoas a disposição mais favorável e que melhor se integrar no espírito do sistema jurídico-constitucional; a outra disposição legal será inconstitucional:
78ª - A alegada diferença de estrutura dos crimes comuns e dos crimes essencialmente militares, bem como a diversa composição dos tribunais que julgam uns e outros, não justificam nem impõem regimes separados dos dois processos;
79ª - As diferenças assinaladas nunca poderiam servir de base a uma distinção de regimes que viesse a pôr em perigo a ideia de Estado de direito democrático;
80ª - Quando se trata de (não) fundamentar decisões judiciais, é a ideia de Estado de direito democrático que está a ser posta em causa;
81ª - Não estamos a falar da fundamentação de factos provados, mas sim da fundamentação da própria decisão judicial;
82ª - O legislador nunca poderá impor a fundamentação da decisão penal comum, sem a impor de igual modo para a decisão condenatória a ser proferida por um tribunal militar, sob pena de estar a atingir o princípio constitucional da igualdade;
83ª - Deve a norma do artigo 419º do CJM ser declarada inconstitucional por, em confronto com o preceito homólogo da lei geral, dar origem a uma situação de discriminação, violadora do artigo 13º da CRP;
84ª - No âmbito do presente recurso, não se aborda apenas a questão da eventual inconstitucionalidade da norma do artigo 419º do CJM. Idêntica questão é colocada em relação à norma do nº 2 do artigo 440ª do mesmo diploma.
85ª - O referido preceito vem estabelecer limitações ao princípio da proibição da 'reformatio in pejus', princípio que impede a agravação da pena ao réu nas situações de recurso interposto no exclusivo interesse da defesa;
86ª - É no nº 2 do artigo 440º do CJM que se explicitam as duas situações em que a regra da proibição da 'reformatio in pejus' pode ser contrariada: serão as hipóteses de diversa qualificação jurídico-criminal dos factos pelo tribunal superior e de promoção da agravação da pena pelo promotor de justiça junto do tribunal de recurso;
87ª - Se não há regra sem excepção, não é menos certo que a excepção não pode nunca subverter a regra;
88ª - No plano jurídico, se é pacífico que um regime regra há-de comportar as suas limitações, também resulta líquido que as mesmas hão-de sempre revestir carácter excepcional e ser de aplicação restrita;
89ª - A aplicação das excepções ao regime-regra não poderá pôr em causa o princípio que está subjacente a este;
90ª - No caso do artigo 440º do CJM, a regra é a proibição da 'reformatio in pejus'; o seu nº 2 contempla as situações de excepção; o princípio subjacente à proibição da 'reformatio in pejus' é o da protecção da posição jurídica do réu/recorrente, nomeadamente a garantia de efectividade plana do direito ao recurso;
91ª - As situações de excepção previstas no nº 2 do artigo 440º vêm pôr em causa o princípio subjacente à regra da proibição da 'reformatio in pejus', subvertendo-o;
92ª - A subversão ao princípio afecta sobremaneira a posição jurídica do réu/recorrente e a efectividade plana do seu direito de recurso, que e uma das garantias de defesa que possui em processo criminal;
93ª - O nº 2 do artigo 440º do CJM é violador do nº 1 do artigo 32º da CRP, porquanto o direito ao recurso constitui uma importante garantia de defesa que se deve ter por incluída nas garantias de defesa de que se fala no preceito constitucional em apreço;
94ª - Prevendo a lei uma 'reformatio in pejus' da decisão recorrida, o réu continua a ter o direito de interpôr recursos das decisões que lhe sejam desfavoráveis e com as quais não concorde;
95ª - No entanto, a possibilidade do réu/recorrente ver alterada a sentença penal em seu prejuízo vai provocar nele uma retracção em exercer o direito ao recurso;
96ª - O réu não vai reagir a decisões penais desfavoráveis com medo que o resultado do recurso lhe venha ainda a ser mais desfavorável que a própria decisão do tribunal recorrido;
97ª - O réu está inibido de exercer com plena efectividade um direito que lhe assiste, porque tem o receio em ver o seu recurso ser aproveitado, quer pelo tribunal superior quer pelo acusador público, para fins estranhos ao seu objecto inicial;
98ª - Este aproveitamento abusivo deixa frustrada a expectativa dos arguidos recorrentes;
99ª - O direito de recurso garantido pelo artigo 32º, nº 1, da CRP, é fortemente colocado em causa pela possibilidade de uma 'reformatio in pejus';
100ª - A retracção que a aceitação da 'reformatio' provoca no réu em exercer o direito de recurso não é compatível com o âmbito da garantia constitucionalmente consagrada, que não admite restrições de qualquer espécie;
101ª - A referida garantia constitucional tutela, não apenas a possibilidade abstracta do exercício do direito de recurso, mas também a possibilidade prática do seu êxito efectivo;
102ª - O estatuto jurídico do arguido é a pedra de toque do espírito do ordenamento processual penal e a regra do nº 1 do artigo 32º da CRP é uma das mais importantes neste domínio;
103ª - De qualquer maneira, cumpre dizer que a aceitação da 'reformatio in pejus' representa um ataque inadmissível aos princípios que norteiam o nº 1 do artigo 32º.
104ª - O princípio que preside àquele preceito é o da protecção global e completa dos direitos de defesa do arguido em processo criminal, que assenta no pressuposto (real) da desigualdade material entre a acusação e a defesa;
105ª - Para atenuar esta desigualdade de armas, são concedidas ao arguido específicas garantias, em ordem a operar a devida compensação;
106ª - Uma dessas garantias é a de um recurso interposto pela defesa não poder ser objecto de agravação;
107º - Uma dessa específicas garantias é a proibição da 'reformatio in pejus' nestas situações, que, afinal, sempre está tutelada pela norma do nº 1 do artigo
32º da CRP;
108ª - O nº 2 do artigo 440º do CJM é inconstitucional, não só por pôr em causa o exercício efectivo do direito do recurso do réu, mas também por ofender o princípio da proibição da 'reformatio in pejus'. Tanto aquele direito como este princípio constituem garantias de defesa tuteladas pelo nº 1 do artigo 32º da CRP;
109ª - O processo criminal há-de configurar-se como um 'due process of law';
110ª - Não é a possibilidade de o réu recorrente conhecer e opor-se ao pedido de agravação que vai assegurar um 'fair trial' ou o 'due process of law';
111ª - Se a proibição da 'reformatio in pejus' constitui uma garantia de defesa tutelada pela norma do nº 1 do artigo 32º da CRP, a 'reformatio in pejus' representa um encurtamento inadmissível das possibilidades de defesa do arguido;
112ª - Representa uma fraca contrapartida dar ao réu recorrente a possibilidade de responder a um pedido de agravação da pena quando é a frustração da sua expectativa que pode resultar – e normalmente resulta – de um pedido desta natureza;
113ª - Encarar a possibilidade de desistência do recurso como um meio de defesa do réu recorrente nas hipóteses de superveniência de um pedido de agravação da pena pelo promotor de justiça é admitir a posição segundo a qual a 'reformatio in pejus' sempre vai comprometer a efectividade plena do exercício do direito ao recurso;
114ª - Se um pedido de agravação da pena representa um 'convite' à desistência do recurso por parte do réu recorrente, não está de modo algum assegurado o 'due process of law';
115ª - A promotoria de justiça junto dos tribunais militares limitou-se a fazer um aproveitamento abusivo do recurso interposto pelo réu, quando também tinha a possibilidade de interpor, ela própria, um recurso da decisão do tribunal militar de 1ª instância;
116ª - A promotoria teria prestado um mau serviço ao interesse público a não ter havido recurso do réu da decisão condenatória de 1ª instância, pois teria deixado transitar em julgado uma decisão com a qual não concordava;
117ª - Não se assegurou o 'due process of law' quando a promotoria, em vez de ter reagido à decisão através do competente recurso, se limitou a fazer um aproveitamento do recurso interposto pelo réu;
118ª - Muito menos se assegurou um 'fair trial' quando o acusador público se aproveitou de algo a que não tinha dado origem e que até tinha deixado cair: o recurso;
119ª - Deve ser declarada a inconstitucionalidade do nº 2 do artigo 440ª do CJM, por violação clara do nº 1 do artigo 32º da CRP, que prescreve o princípio da máxima tutela dos direitos de defesa do arguido em processo criminal;
120ª - Fazendo a comparação entre o nº 2 do artigo 440ª do CJM com o preceito homólogo da lei geral – neste caso o nº 2 do artigo 440º do CPP – verificamos que não existe uma coincidência de regimes legais nesta matéria, o que ocasiona uma situação de desigualdade entre os destinatários de um e de outro ordenamento processual;
121ª - tal desigualdade ofende a norma contida no artigo 13º da CRP:
122ª - Estamos, uma vez mais, perante uma situação de tratamento diferenciado não fundado: infringe-se a regra da igualdade na aplicação do direito, sem que se vislumbre qualquer justificação razoável que imponha uma obrigação de diferenciação;
123ª - Insiste-se numa distinção discriminatória, em que se contrariam as intenções de racionalidade e de justiça que são próprias da ideia de igualdade;
124ª - O que resulta evidente é a ilicitude da diferenciação de tratamento operada pela existência de dois regimes legais diversos para situações da vida substancialmente idênticas;
125ª - O que está em causa, quando tratamos da 'reformatio in pejus' e da sua proibição, é a protecção do estatuto jurídico do arguido, que constitui particular expressão da salvaguarda dos direitos do homem num Estado de direito democrático.
126ª - Qualquer que seja o motivo que sirva de base a uma diferenciação de tratamento que ponha em causa a integridade do princípio da proibição da
'reformatio in pejus', aquele motivo apresentar-se-á, sempre, como contrário à dignidade humana e incompatível com o princípio do Estado de direito democrático.
127ª - Quando se atinge o estatuto jurídico do arguido sujeito à jurisdição militar desta maneira arbitrária, está a infringir-se um daqueles factores de desigualdade inadmissível que, não estando contidos na letra do nº 2 do artigo
32º da CRP, o estão, todavia, na sua 'ratio'.
128ª - A discriminação resultante da vigência, em simultâneo, dos artigos 440º, nº 2 do CJM e 409º, nº 2 do CPP, é uma discriminação proibida.
129ª - Esta diversidade de regimes acerca da proibição da 'reformatio in pejus' nem sempre se verificou: até à publicação do CPP de 1987, os dois preceitos existentes sobre a matéria equivaliam-se no conteúdo e até na redacção, que era praticamente idêntica;
130ª - Com a entrada em vigor do novo CPP, passou a reger esta matéria, no
âmbito do Direito Processual Penal comum, o artigo 409º, preceito que ampliou significativamente o âmbito da proibição constante do art. 667º do Código até então em vigor.
131ª - O artigo 409º do CPP de 87 fez distinguir, claramente, qual era a regra e qual era a excepção. Representou um nítido progresso em relação ao direito anterior, enquanto o CJM ficou na mesma.
132ª - Ao não acompanhar a evolução operada no direito processual penal comum, o legislador penal militar foi arbitrário na sua omissão, na medida em que fez tábua rasa dos princípios de racionalidade e de justiça que impunham uma evolução idêntica à da lei geral;
133ª - Em sede de proibição da 'reformatio in pejus', e da existência de limitações ao princípio, a coincidência é constitucionalmente imposta.
134ª - À data de entrada em vigor da CRP de 1976 não havia violação do princípio da igualdade. Esta verificou-se supervenientemente.
135ª - Como também aqui existem duas disposições a estabelecer tratamento desigual para duas situações iguais, vemos tratar-se de uma sucessão de leis com diferenciações não fundadas.
136ª - A solução que alvitramos é a da aplicação a todas as situações e pessoas da disposição mais favorável e a declaração de inconstitucionalidade da norma que não se integra no espírito do sistema jurídico-constitucional;
137ª - esta norma é, obviamente, a do nº 2 do artigo 440º do CJM.
138ª - Se se pode argumentar dizendo que o princípio da igualdade não impõe sempre a coincidência de preceitos legais, essa não coincidência há-de ter uma explicação racional.
139ª - O que é facto é que o STM, no seu acórdão, não consegue adiantar qualquer explicação para justificar a diferença de tratamento existente nas disposições comum e militar a respeito das limitações ao princípio da proibição da
'reformatio in pejus';
140ª - Nesta matéria, se houver divergência, há um preceito que será inconstitucional.
141ª - Se o STM defende uma não coincidência de preceitos, fica por explicar a razão do artigo 440º, nº 2, do CJM ser praticamente igual na sua redacção ao preceito homólogo da lei geral que lhe serviu de fonte legislativa.
142ª - Tem razão o STM quando conclui que, em condições de coincidência de preceitos, o CJM não podia existir;
143ª - Por outro lado, a divergir desta maneira dos preceitos da lei geral, qualquer norma do CJM será sempre rotulada de inconstitucional.
144ª - Se calhar, o CJM é um diploma inútil.
145ª - Deve declarar-se a inconstitucionalidade da norma do nº 2 do artigo 440º do CJM, por efectuar uma distinção discriminatória entre as situações da vida nele previstas e as previstas no nº 2 do artigo 409º do CPP;
146ª - A referida distinção discriminatória, por ser materialmente infundada, viola o princípio constitucional da igualdade, consagrado no artigo 13º da CRP.'
7 – O Procurador-Geral Adjunto produziu igualmente alegações, tendo concluído que 'A norma do artigo 419º do Código de Justiça Militar, enquanto não impõe o dever de fundamentação das decisões judiciais, e a norma do artigo 440º, nº 2, alínea b), do mesmo diploma, enquanto afasta a proibição da 'reformatio in pejus' quando o promotor de justiça junto do tribunal superior se pronunciar, no visto inicial do processo, pela agravação da pena, não são inconstitucionais.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir. II – Fundamentação
8 – Importa, antes de mais, delimitar com rigor o objecto do presente recurso, já que, como bem observa o Ministério Público, ele deve cingir-se - para além da apreciação da constitucionalidade do artigo 419º do CJM - à apreciação da constitucionalidade da alínea b) do nº 2 do artigo 440º do CJM, e não - como pretende o recorrente no requerimento de interposição do recurso e nas respectivas alegações - à apreciação da constitucionalidade de todo o nº 2 deste preceito. Tendo o recurso sido interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, ele apenas pode ter por objecto a(s) norma(s) efectivamente aplicada(s) pela decisão recorrida. Ora, é manifesto que a decisão recorrida apenas aplicou a alínea b) - e não a alínea a) - do nº 2 daquele artigo 440º, pelo que, nesta parte, o recurso tem por objecto apenas a norma que se extrai daquela alínea b), enquanto afasta a proibição da 'reformatio in pejus', prevista no nº 1, 'quando o promotor de justiça junto do tribunal superior se pronunciar, no visto inicial do processo, pela agravação da pena, aduzindo logo os fundamentos do seu parecer, caso em que serão notificados os réus, a quem será entregue cópia do parecer, para resposta no prazo de três dias'.
9 – A questão da inconstitucionalidade do artigo 419º do Código de Justiça Militar
É o seguinte o teor do artigo 419º do Código de Justiça Militar:
Artigo 419º
O acórdão será redigido pelo juiz auditor, devendo conter, quando condenatório: a. O nome, filiação, idade, estado, profissão, naturalidade, residência, posto, número e situação militar do réu; b. A indicação dos factos e da lei por que é acusado; c. Os factos que se julgarem provados, distinguindo os que constituem a infracção dos que são circunstâncias agravantes ou atenuantes; d. A citação da lei aplicável aos factos referidos na alínea anterior; e. A condenação na pena aplicada; f. A declaração de perda para o Estado, nos casos previstos na lei, dos instrumentos do crime e a restituição a seus donos tanto dos objectos apreendidos aos criminosos como dos que tiverem vindo a juízo para prova da acusação; g. A ordem de soltura ou condenação do réu à cadeia, conforme os caso; h. A ordem de remessa do respectivo boletim para o registo criminal; i. A data e assinatura de todos os juizes. O Supremo Tribunal Militar interpretou esta norma no sentido de que dela não resulta (nem de qualquer outra do CJM) o dever de fundamentar o acórdão que põe termo ao processo, mesmo quando se trate de um acórdão condenatório. Entendeu ainda aquele Supremo Tribunal (ao contrário do que vinha entendendo anteriormente) que não existe, a este nível, uma lacuna no CJM, pelo que não é de aplicar, subsidiariamente, o disposto no artigo 374º, nº2, do Código de Processo Penal, na parte em que esta norma impõe a fundamentação, de facto e de direito, da sentença final.
É este sentido normativo do artigo 419º do CJM que o recorrente contesta, por entender que ele é violador dos artigos 208º (actualmente 205º, nº 1); 32º, nº 1 e 13º da Constituição. Vejamos se tem razão.
9.1. – A alegada violação do disposto no artigo 208º, nº1 (actualmente, 205º, nº
1) da Constituição. A Constituição de 1976, na sua redacção originária, nada dizia, ao menos de forma expressa, acerca do dever de fundamentação das decisões judiciais. Foi a revisão constitucional de 1982, levada a cabo pela Lei Constitucional nº 1/82, de 30 de Setembro, que, pela primeira vez, de forma explícita, consagrou o dever de fundamentação das decisões judiciais. Passou a dispor, então, o artigo 210º, nº 1, da Lei Fundamental, que: 'As decisões dos tribunais são fundamentadas nos termos e nos casos previstos na lei'. A revisão constitucional de 1989 (Lei Constitucional nº 1/89, de 8 de Julho) nada alterou em termos substanciais, limitando-se, nesta parte, a alterar a numeração dos artigos, passando aquele dever a constar do artigo 208º, nº1, da Constituição. Com a revisão constitucional de 1997 (Lei Constitucional nº 1/97, de 20 de Setembro) o dever de fundamentação das decisões judiciais passou a constar do artigo 205º, nº 1, preceito que dispõe, ainda hoje, da seguinte forma: 'As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei'. Ainda em face da vigência do artigo 210º da Constituição (redacção da Lei Constitucional nº 1/82, de 30 de Setembro) o Tribunal Constitucional teve oportunidade de se pronunciar, por diversas vezes, sobre o sentido e o alcance daquele preceito constitucional. Fê-lo, designadamente, nos acórdãos nºs 55/85
(Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5º vol., pp. 461 e ss.), 61/88 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11º vol., pp. 611 e ss.), 207/88 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 12º vol., pp. 609 e ss.) e 124/90 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 15º vol., pp. 409 e ss.), a propósito da questão de saber se era inconstitucional o artigo 469º do Código de Processo Penal de 1929, ao não exigir a fundamentação da resposta aos quesitos sobre a matéria de facto. Decidiu então o Tribunal Constitucional - embora com vozes discordantes - que aquele artigo 469º do Código de Processo Penal não violava o disposto no artigo
210º, nº 1, da Constituição. Sustentou este Tribunal essa conclusão, essencialmente, na constatação de que aquele preceito constitucional só garantia a obrigatoriedade da fundamentação das decisões judiciais 'nos casos e nos termos previstos na lei'. Nesse sentido disse-se logo no Acórdão nº 55/85 (já citado) que:
' Seja como seja, no nº 1 do artigo 210º da CR não se estabelece qualquer garantia geral, desde logo porque a definição do conteúdo do dever de fundamentação, quer em extensão, quer em profundidade, é totalmente relegada para os quadros da lei ordinária. Afirma-se apenas um princípio vagamente programático, e nada mais'.
E, mais à frente, reafirma-se no mesmo sentido:
'Neste preceito da CR não se define uma garantia institucional. Refere-se, sem determinismos, e diluidamente, um mero princípio programático, que relega para o legislador ordinário a implementação do dever de fundamentar, quer na sua direcção horizontal, quer na sua direcção vertical. Como ao legislador é dada liberdade para, em cada momento, delimitar o quantum e o quomodo da motivação, não se pode ver infracção ao nº 1 do artigo 210º da CR sempre que, no plano da lei ordinária, se não permita justificar racionalmente a decisão, seja ela de que natureza for.'
Ainda no mesmo sentido disse-se nos acórdãos nºs 61/88, 207/88 e 124/90 (já citados):
'É que, como decorre dos seus próprios termos, o artigo 210º, nº1, da Constituição, apenas garante a obrigatoriedade da fundamentação das decisões dos tribunais «nos casos e nos termos previstos na lei». O princípio constitucional tem, pois, um alcance eminentemente «programático», ficando devolvido ao legislador, em último termo, o seu «preenchimento», isto é, a delimitação do seu
âmbito e extensão'.
É esta jurisprudência que agora é invocada – quer pelo Tribunal Recorrido quer pelo Exmº Procurador-Geral Adjunto – para sustentar uma resposta idêntica – no sentido da não inconstitucionalidade – à questão que agora nos ocupa. Porém, como vai ver-se, sem razão. O que então disse o Tribunal Constitucional acerca do sentido e alcance do princípio consagrado no então artigo 210º, nº 1, da Constituição, não só não permite sustentar uma resposta idêntica – no sentido da não inconstitucionalidade – à questão que agora nos ocupa, como, pelo contrário, depõe no sentido de uma resposta diferente.
É que o Tribunal Constitucional não se limitou a afirmar que o artigo 210º, nº1, da Constituição, devolvia ao legislador ordinário a tarefa de concretizar o conteúdo – os casos e os termos – do dever de fundamentação das decisões judiciais. Na verdade, depois de se afirmar quanto antecede, acrescentou o Tribunal Constitucional que daí não resultava que o legislador ordinário ficasse inteiramente de mãos livres para delimitar o âmbito dessa obrigatoriedade. Pelo contrário, disse, desde logo, o Tribunal Constitucional, que do princípio consagrado no artigo 210º, nº1, da Constituição, decorria para o legislador ordinário a obrigação de prever a fundamentação de certas decisões judiciais. Nesse sentido disse-se nos acórdãos nºs 61/88, 207/88 e 124/90:
'Poderá (e certamente deverá) aceitar-se que, sendo embora assim, o legislador não fique, todavia, com uma liberdade constitutiva total e absoluta para delimitar o âmbito da obrigatoriedade de fundamentação das decisões dos tribunais. Ou seja: poderá (e certamente deverá) aceitar-se que, do princípio consagrado no artigo 210º, nº1, da Constituição, decorra para o legislador, apesar de tudo, a obrigação de prever (ou não dispensar) a fundamentação de certas decisões judiciais (nesse sentido, cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2ª ed., II vol., p. 317, anotação I)'.
Acrescentaram, ainda, estes Acórdãos, que:
'Mas, no contexto do que vem sendo referido, não é menos claro que os limites a tal liberdade constitutiva (ou «discricionaridade legislativa») hão-de ser muito largos, e respeitar um núcleo essencial mínimo de decisões judiciais. De outro modo, na verdade, subverter-se-á o próprio sentido da cláusula constitucional
(que é intencionalmente o de uma «incumbência» ao legislador) e o seu propósito cautelar'. Dito isto resta apenas determinar que decisões judiciais integram esse «núcleo essencial mínimo» em relação ao qual a referida «discricionaridade legislativa» não existe e, portanto, em relação às quais o legislador ordinário está obrigado a prever (ou não dispensar) a sua fundamentação. Entendeu o Tribunal Constitucional - embora, como vimos, com vozes discordantes
- que entre essas decisões não se encontrava o acto processual de resposta aos quesitos sobre a matéria de facto. Porém, questão completamente diferente é a de saber se o mesmo se passa com a decisão final condenatória em processo penal (no caso processo penal militar). Dos próprios termos dos acórdãos supra citados decorre, com clareza, que neste caso a resposta há-de ser diferente; isto é, que entre as decisões judiciais em relação às quais o legislador tem a obrigação de prever a sua fundamentação está certamente a decisão final sobre o mérito da causa em processo penal. Para constatar que é assim basta atentar no conteúdo da anotação de Gomes Canotilho e Vital Moreira ao nº 1 do artigo 210º da Constituição para que o Tribunal Constitucional remete nos acórdãos supra citados. Aí se refere:
'A fundamentação das decisões judiciais (nº 1) está sob reserva de lei, à qual compete definir o âmbito do dever de fundamentação, podendo a lei garanti-lo com maior ou menor amplitude. Todavia, a discricionaridade legislativa nesta matéria não é total, visto que há de entender-se que o dever de fundamentação é uma garantia integrante do próprio conceito de Estado de Direito democrático (cfr. artigo 2º), ao menos quanto às decisões judiciais que tenham por objecto a solução da causa em juízo. Não se compreenderia, de resto, que a garantia de fundamentação seja menos exigente quanto às decisões judiciais do que quanto aos actos administrativos (artigo 268º, nº 2)'. (sublinhado nosso). Em suma: como já antes deixámos antever, o que o Tribunal Constitucional disse
-designadamente nos acórdãos supra citados - acerca do sentido e alcance do princípio consagrado no então artigo 210º, nº 1, da Constituição, não só não permite - como pretendem o Tribunal Recorrido e o Ministério Público - sustentar uma resposta no sentido da não inconstitucionalidade do artigo 419º do CJM, como, pelo contrário, os argumentos então aduzidos são agora uma suporte válido para sustentar a inconstitucionalidade do referido preceito. E se já era assim em face na anterior redacção do artigo 210º, nº1, da Constituição (artigo 208º, nº1, na redacção de Revisão de 1989), dúvidas não podem subsistir de que essa solução é de manter em face da actual redacção do artigo 205º, nº1. É que o sentido da alteração legislativa levada a cabo pela Lei Constitucional nº 1/97, de 20 de Setembro, foi, inequivocamente, o de alargar o âmbito da garantia constitucional. Nos termos do actual artigo 205º, nº1, da Constituição, já não compete ao legislador ordinário definir que decisões judiciais devem ser fundamentadas, mas apenas a forma de que esse fundamentação se há-de revestir. Nos termos da actual redacção do artigo 205º, nº1, da Constituição, fundamentadas devem ser todas as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente, o que, obviamente, implica a obrigatoriedade de fundamentação da decisão final sobre o mérito da causa (cfr., neste sentido, o recente acórdão nº 680/98 ainda inédito). Por tudo o exposto, há, pois, que concluir, que o artigo 419º do Código de Justiça Militar, enquanto não prevê o dever de fundamentação da decisão final sobre o mérito da causa a proferir no âmbito do processo penal militar, é inconstitucional, por violação do disposto no artigo 205º, nº 1, da Constituição.
9.1. – A alegada violação do disposto no artigo 32, nº 1, da Constituição. Dito isto, é altura de dar resposta à segunda questão suscitada pelo recorrente: a de saber se o dever de fundamentação, de facto e de direito, da decisão final sobre o mérito da causa, em processo penal militar, não decorrerá igualmente do princípio de que o processo penal assegurará todas as garantias de defesa, consagrado no artigo 32º, nº1, da Constituição ? O artigo 32º, nº1, da Constituição, dispõe, actualmente, que 'O processo criminal assegurará todas as garantias de defesa, incluindo o recurso'. Ponderando sobre o sentido e alcance do nº 1 do artigo 32º da Constituição escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 2ª ed., I vol., pp. 214-215, anotação II):
'A fórmula do nº 1 é, sobretudo, uma expressão condensada de todas as normas restantes deste artigo, que todas elas são, em última análise, garantias de defesa. Todavia, este preceito introdutório serve também de cláusula geral englobadora de todas as garantias que, embora não explicitadas nos números seguintes, hajam de decorrer do princípio da protecção global e completa dos direitos de defesa do arguido em processo criminal. «Todas as garantias de defesa» engloba indubitavelmente todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação. Dada a radical desigualdade material de partida entre a acusação (normalmente apoiada no poder institucional do Estado) e a defesa, só a compensação desta, mediante específicas garantias, pode atenuar essa desigualdade de armas. Este preceito pode portanto ser fonte autónoma de garantias de defesa. Em suma: a«orientação para a defesa» do processo penal revela que ele não pode ser neutro em relação aos direitos fundamentais (um processo em si, alheio aos direitos do arguido), antes tem neles um limite infrangível'. No mesmo sentido - i.e., no sentido de que mais do que uma «expressão condensada» de todas as garantias de defesa incorporadas nas demais normas desse artigo, ele é, igualmente, «fonte autónoma de garantias de defesa» - se tem pronunciado igualmente, de forma reiterada, o Tribunal Constitucional. Nesse sentido escreveu-se, por exemplo, no Acórdão nº 55/85 (já citado):
'O princípio da defesa do arguido é desenvolvido ao longo dos números 2 a 7 do artigo 32º, mas não se esgota nessa elencação. O núcleo essencial do princípio ultrapassa a enumeração, é muito mais rico que ela, abarca uma zona exterior à sua concretização constitucional e impõe-se necessariamente a partir do momento em que é admitida no processo penal a possibilidade de aplicação de uma norma incriminadora a quem quer que haja adquirido o estatuto de arguido'.
E, no mesmo sentido, escreveu-se no Acórdão nº 61/88 (já citado):
'Esta cláusula constitucional apresenta-se com um cunho «reassuntivo» e
«residual» - relativamente às concretizações que já recebe nos números seguintes do mesmo artigo - e, na sua abertura, acaba por revestir-se, também ela, de um carácter acentuadamente «programático». Mas, na medida em que se proclama aí o próprio princípio da defesa, e portanto indubitavelmente se apela para um núcleo essencial deste, não deixa a mesma cláusula constitucional de conter «um eminente conteúdo normativo imediato a que se pode recorrer directamente, em casos limite, para inconstitucionalizar certos preceitos da lei ordinária» (cfr. Figueiredo Dias, A Revisão Constitucional, o Processo Penal e os tribunais, p.
51; e acórdão nº 164 da Comissão Constitucional, apêndice ao Diário da República, I série, de 31 de Dezembro de 1979). A ideia geral que pode formular-se a este respeito - a ideia geral, em suma, por onde terão de aferir-se outras possíveis concretizações (judiciais) do princípio da defesa, para além das consignadas nos nºs 2 e seguintes do artigo 32º - será a de que o processo criminal há-de configurar-se como um due process of law, devendo considerar-se ilegítimas, por consequência, quer eventuais normas processuais, quer procedimentos aplicativos delas, que impliquem um encurtamento inadmissível das possibilidades de defesa do arguido (assim, basicamente, cfr. Acórdão nº 337/86, deste Tribunal, Diário da República, I Série, de 30 de Dezembro de 1986)'.
Do que antecede decorre que a decisão sobre a questão de saber se o artigo 419º do CJM é ou não inconstitucional, por violação do disposto no nº 1 do artigo 32º da Constituição, depende da resposta a dar à questão de saber se a não obrigatoriedade de fundamentação (de facto e de direito) da decisão final, condenatória, a proferir no âmbito do processo penal militar, se traduz ou não numa «diminuição inadmnissível, num prejuízo insuportável e injustificável»
(para usar-mos as palavras do Acórdão nº 61/88), das garantias de defesa do réu. A resposta a esta questão pressupõe que se comece por identificar a função (ou funções) que a fundamentação da decisão final pode desempenhar no processo penal
(no caso, processo penal militar). A este propósito o Tribunal Constitucional afirmou já por diversas vezes – citando, designadamente, Michele Taruffo, («Note sulla garantizia constituzionale della motivazione», in Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, vol. LV, pp. 29 e ss.) – que a fundamentação das decisões judiciais, em geral, cumpre duas funções: a. uma, de ordem endoprocessual, que visa essencialmente impor ao juiz um momento de verificação e controlo crítico da lógica da decisão, permitir às partes o recurso da decisão com perfeito conhecimento da situação, e ainda colocar o tribunal de recurso em posição de exprimir, em termos mais seguros, um juízo concordante ou divergente; b. outra, de ordem extraprocessual, já não dirigida essencialmente às partes e ao juiz ad quem, que procura, acima de tudo, tornar possível um controlo externo e geral sobre a fundamentação factual, lógica e jurídica da decisão – que procura, dir-se-á por outras palavras, garantir a transparência do processo e da decisão. Ora, é tendo em atenção que são estas as razões que justificam a exigência de motivação das decisões judiciais que podemos desde já afirmar que a não fundamentação, de facto e de direito, da decisão final condenatória em processo penal militar representa uma «diminuição inadmissível, um prejuízo insuportável e injustificável» das garantias de defesa do réu, e, nessa medida, que é inconstitucional a norma que não a preveja (ou a dispense).
É esta conclusão que procuraremos de seguida fundamentar. Interessa-nos aqui, fundamentalmente, a primeira daquelas funções – a função endoprocessual – uma vez que é esta que se liga directamente com o princípio consagrado no artigo 32º, nº1, da Constituição. Nesta perspectiva a fundamentação das decisões judiciais justifica-se, desde logo, na medida em que funciona como garantia de racionalidade, imparcialidade e ponderação da própria decisão judicial. A motivação da decisão judicial funciona aqui como elemento de controlo interno necessário do princípio da livre convicção do juiz em matéria probatória (nesse sentido, por exemplo, o Parecer da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra sobre o artigo 653º do projecto, em primeira revisão ministerial, de alteração ao Código de Processo Civil, in Boletim da Faculdade de Direito, vol. XXXVII, 1961, p. 183). No mesmo sentido refere Eduardo Correia («Les preuves en droit pénal portugais», Revista do Direito e de Estudos Sociais, ano XIV, 1967) que a motivação da decisão é imprescindível, entre outras razões, para favorecer o autocontrolo dos juizes, designadamente obrigando-os a analisar, à luz da razão, as impressões recolhidas no decurso da produção da prova, bem como para estimular a recolha jurisprudencial de regras objectivas de experiência e o respeito pela lógica e pelas leis da psicologia judiciária na apreciação das mesmas. (No mesmo sentido, ainda, Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1º vol., pp. 204 a 206). Em suma: a fundamentação, de facto e de direito, da decisão judicial, visa, desde logo, garantir uma mais adequada ponderação da prova produzida bem como do direito aplicável. Por outro lado a fundamentação das decisões judiciais funciona igualmente como garantia de controlo da atenção prestada pelo tribunal aos argumentos da defesa. Nesse sentido refere Taruffo (ob. cit., p. 36) 'é evidente que o direito de defesa – entendido como o direito de influir sobre a decisão (direito à prova, direito a intervir sobre questões relevantes, direito ao contraditório) – só tem significado concreto quando seja possível verificar se e como o juiz teve em conta a defesa das partes'. Do que já se disse resulta, pois, que - independentemente da relação que seja de estabelecer entre a exigência de fundamentação da decisão judicial e a efectividade do direito ao recurso, também ele uma garantia constitucional - a fundamentação das decisões judiciais, em geral, e, especialmente, da decisão final condenatória em processo penal, deve considerar-se em si mesma, autonomamente, como uma das garantias de defesa previstas no artigo 32º, nº 1, da Constituição. É que, como procurámos demonstrar, quer a garantia de racionalidade, imparcialidade e ponderação da decisão judicial, quer a garantia de controlo da atenção prestada aos argumentos da defesa – garantias que não podem deixar de se considerar englobadas na cláusula geral do nº 1 do artigo 32º da Constituição – só são eficazmente asseguradas através da exigência de fundamentação, de facto e de direito, da decisão judicial. A tudo o que já se disse acresce que a fundamentação da decisão judicial constitui ainda um elemento indispensável para assegurar o efectivo exercício do direito ao recurso, o qual se encontra constitucionalmente garantido, hoje de forma explícita, no artigo 32º, nº 1, da Constituição. Sendo hoje certo que o direito a recorrer integra o núcleo das garantias de defesa em processo penal asseguradas pelo nº 1 do artigo 32º da Constituição, a verdade é que esse direito ficaria, de forma inadmissível, limitado pela não fundamentação da decisão final condenatória. Como assinala Michele Taruffo (ob. cit., p. 31) a motivação da sentença é necessária com vista à impugnação, com o fim de tornar funcional a relação entre o primeiro e o segundo grau de jurisdição: não só as partes podem valorar melhor a oportunidade da impugnação e individualizar os seus motivos específicos quando, através da motivação, conhecem as razões por que o juiz decidiu de certo modo, como ainda o juiz de recurso está em posição de formular melhor o seu juízo sobre a sentença impugnada quando conhece a argumentação de facto e de direito de que ela é resultado. A partir daqui, como refere Vital Moreira na declaração de voto que juntou ao Acórdão nº 207/88 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11º vol. pp. 625 e ss.),
'O raciocínio é simples: devendo o direito ao recurso ser considerado uma garantia de defesa constitucionalmente consagrada em matéria penal e tendo de haver motivação das decisões como uma garantia do direito ao recurso, então tem de considerar-se que a não motivação das decisões penais não se coaduna com o artigo 32º, nº 1, da Constituição'. Por tudo o exposto, é de considerar inconstitucional, por violação do disposto no artigo 32º, nº1, da Constituição, a norma que se extrai do artigo 419º do CJM, na parte em que não prevê a obrigatoriedade de fundamentação da decisão final a proferir no âmbito do processo penal militar.
9.1.3. – A alegada violação do disposto no artigo 13º da Constituição. Sustenta finalmente o recorrente que a norma que na interpretação da decisão recorrida se extrai do artigo 419º do CJM é inconstitucional, por violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição, na medida em que, na sua perspectiva, ela importa uma «desigualdade ilegítima e materialmente infundada» em relação ao regime previsto no artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal. Vejamos se tem razão. Tem o Tribunal Constitucional afirmado reiteradamente (veja-se, por último, o Acórdão nº 191/98, in Diário da República, II Série, de 24 de Julho de 1998), na esteira do que referem Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 2ª ed., I vol., p. 149, anotação IV) que o âmbito de protecção do princípio da igualdade na ordem constitucional portuguesa abrange as seguintes dimensões: '(a) a proibição do arbítrio, sendo inadmissíveis, quer diferenciações de tratamento sem qualquer justificação razoável, de acordo com critérios de valor objectivos, constitucionalmente relevantes, quer a identidade de tratamento para situações manifestamente desiguais; (b) proibição de discriminação, não sendo legítimas quaisquer diferenciações de tratamento entre os cidadãos baseadas em categorias meramente subjectivas ou em razão dessas categorias; (c) obrigação de diferenciação, como forma de compensar a desigualdade de oportunidades, o que pressupõe a eliminação, pelos poderes públicos, de desigualdades fácticas de natureza social, económica e cultural. A propósito da designada proibição do arbítrio - a dimensão do princípio da igualdade que agora pode estar em causa - têm a doutrina e a jurisprudência afirmado repetidamente que ela constitui um limite externo da liberdade de conformação ou decisão dos poderes públicos, exigindo positivamente um tratamento igual de situações iguais e um tratamento diverso de situações de facto diferentes. Em consequência, tem sido afirmado que existe infracção ao princípio da igualdade, na dimensão da proibição do arbítrio, quando os limites externos da 'discricionariedade legislativa' são violados, o que acontece quando a diferença de tratamento não se funda num adequado suporte material. Em síntese, pode dizer-se que a caracterização de uma medida legislativa como inconstitucional, por ofensiva do princípio da igualdade, dependerá, em última análise, da ausência de fundamentação material bastante para a distinção, isto
é, de razoabilidade e de consonância com o sistema jurídico (nesse sentido Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1983, pp. 125 e ss, e Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 44/84,
231/94, 34/96 e 225/97, Diário da República, II Série, de, respectivamente, 11 de junho e 28 de Abril de 1984, 29 de Abril de 1996 e 26 de Junho de 1997). Do exposto resulta que a decisão sobre a questão de saber se a norma que na interpretação da decisão recorrida se extrai do artigo 419º do CJM - segundo a qual a decisão final condenatória em processo penal militar não tem que ser fundamentada, ao contrário do que acontece, ex vi do artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal, com a decisão a proferir no âmbito do processo penal comum -, é ou não inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, depende da questão de saber se existe ou não uma específica base material credenciadora desse tratamento desigual, assente em alguma especificidade própria do processo penal militar. E, colocada a questão nestes termos, como deve sê-lo, a resposta a dar é inequivocamente negativa. De facto, não se vê em que é que as especificidades próprias do processo penal militar permitem justificar a aludida diferença de tratamento. Assim, não se verificando fundamento racional para a diferenciação operada pela norma em apreço, há que concluir, de acordo com o exposto anteriormente, que a mesma é inconstitucional por violação do artigo 13º da Constituição, na dimensão em que esta norma proíbe o arbítrio.
9.2 – A questão da inconstitucionalidade do artigo 440º, nº 2, alínea b), do Código de Justiça Militar.
É o seguinte o teor do artigo 440º, nº 2, alínea b), do CJM: Artigo 440º
1 – Interposto recurso de uma decisão condenatória somente pelo réu, pelo promotor de justiça no exclusivo interesse da defesa ou pelo réu e pelo promotor nesse exclusivo interesse, o Supremo Tribunal Militar não pode, em prejuízo de qualquer dos réus, ainda que não recorrente: a. Aplicar pena que, pela espécie ou pela medida, deva considerar-se mais grave do que a constante da decisão recorrida; b. Revogar o benefício da substituição da pena por outra menos grave; c. Modificar, de qualquer modo, a pena aplicada pela decisão recorrida;
1. – A proibição estabelecida no número anterior não se verifica: a. (...); b) Quando o promotor de justiça junto do tribunal superior se pronunciar, no visto inicial do processo, pela agravação da pena, aduzindo logo os fundamentos do seu parecer, caso em que serão notificados os réus, a quem será entregue cópia do parecer, para resposta no prazo de três dias. No entender do recorrente esta norma, enquanto afasta a proibição da reformatio in pejus, prevista no nº 1, quando o promotor de justiça junto do Supremo Tribunal Militar se pronunciar, no visto inicial do processo, pela agravação da pena, é inconstitucional por violação dos artigos 32º, nº 1 e 13º da Constituição. Vejamos se tem razão.
9.2.1. – A alegada violação do artigo 32º, nº 1, da Constituição Disse-se já que o princípio de que o processo penal assegurará todas garantias de defesa, consagrado no nº 1 do artigo 32º da Constituição, não se esgota na elencação feita nos nºs 2 e seguintes do referido preceito. Pelo contrário, afirmou-se que aquele nº 1 funciona ainda como cláusula geral englobadora de todas as garantias que, embora não explicitadas nos números seguintes, hajam de decorrer do princípio da protecção global e completa dos direitos de defesa do arguido em processo criminal. Disse-se, em síntese, que o disposto no nº 1 do artigo 32º da Constituição é também ele «fonte autónoma de garantias de defesa». Assim, o que agora importa agora decidir é a questão de saber se o instituto da proibição reformatio in pejus é - e em caso afirmativo em que medida - uma dessas garantias que, embora não explicitada, há-de decorrer do princípio da protecção global e completa dos direitos de defesa do arguido em processo criminal, consagrado no nº 1 do artigo 32º da Constituição. Entendemos ser de dar resposta positiva a esta questão. A proibição, em certa medida, da reformatio in pejus, decorre efectivamente do princípio da protecção global e completa dos direitos de defesa do arguido em processo criminal, consagrado no nº 1 do artigo 32º da Constituição. A questão, aliás, não é inteiramente nova na jurisprudência do Tribunal Constitucional. De facto, já nos Acórdãos nº 499/97 (Diário da República, II Série, de 21 de Outubro de 1997) e 498/98 (ainda inédito) o Tribunal Constitucional teve oportunidade de se pronunciar sobre esta questão, tendo respondido que a proibição, numa certa medida, da reformatio in pejus, era imposta pelo princípio consagrado no nº 1 do artigo 32º da Constituição. Estava em causa, então, a questão de saber se a revogação pelo tribunal de recurso do perdão concedido pelo tribunal de primeira instância, havendo apenas recurso da defesa, afectava razões constitucionais no sentido da proibição da reformatio in pejus. Ponderou então o Tribunal Constitucional sobre os fundamentos da proibição da reformatio in pejus e a sua protecção constitucional:
'A proibição da reformatio in pejus justifica-se fundamentalmente pela protecção das garantias de defesa (cf. parecer da Câmara Corporativa, Boletim do Ministério da Justiça, nº 180º, 1968, pp. 103 e segs., no qual se discutem as várias posições doutrinárias sobre o fundamento jurídico da reformatio in pejus; cf., ainda, Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1974, p. 259; Castanheira Neves, Sumários de Processo Penal, 1967-1968, p. 36; e Bettiol, Instituições de Processo Penal, 1974, pp. 304-313). Na realidade a proibição da reformatio in pejus foi referida no pensamento jurídico a fundamentações de natureza diversa, desde as que são baseadas na estrutura do processo penal (princípio dispositivo para uns, estrutura do acusatório para outros) até às que assentam em razões valorativas substanciais
(iniquidade) ou, até, em razões politico-criminais (favor rei). A esse tipo de razões, que pretendiam justificar uma ampla proibição da reformatio, sempre que apenas houvesse recurso da defesa ou no seu interesse, contrapôs Delitala os valores da justiça limitativos da proibição da reformatio in pejus quando não estivesse apenas em causa impedir uma modificação dos critérios do já decidido, mas corrigir erros de aplicação do direito (cf. parecer citado, loc. Cit., e ainda Germano Marques da Silva, Curso de processo Penal, III, 1994, p. 321). Mas a conformação da proibição da reformatio in pejus, numa perspectiva jurídica que pondere globalmente todos os fins do sistema, não deve, na realidade, considerar apenas uma perspectiva de interesse do arguido, devendo, por isso, o
âmbito do proibição ser delimitado na conexão entre as garantias de defesa e a realização da justiça. Não decorre, obviamente, da Constituição uma proibição absoluta da reformatio in pejus, pois isso seria conflituante com o direito ao recurso da acusação e com a realização da justiça. Mas tem de ser garantida, num certo grau, a estabilidade das sentenças judiciais. A sua revogabilidade não pode ser referida a um plano de justiça absoluta, mas apenas ao plano do recurso e da recorribilidade (cf. Bettiol, ob. cit., p. 307). O próprio direito ao recurso pressupõe a verificação de requisitos determinados, os quais justificam uma reapreciação dos factos provados ou do direito aplicado dentro da matéria recorrida, sendo o recurso a emanação de um poder não ilimitado de controlo pelos tribunais superiores das decisões proferidas em 1ª instância. Ora, a proibição da reformatio in pejus é reclamada pela plenitude das garantias de defesa, quer porque a reformatio in pejus poderia surgir inesperadamente ou de um modo insusceptível a ser contraditada pela defesa, quer porque restringiria gravemente as condições de exercício do direito ao recurso. São, assim, princípios constitucionais, na sua concretização no sistema jurídico, que exigem a configuração de uma certa medida de proibição da reformatio in pejus (nesse sentido, Giorgio Spengher, Enciclopedia del Diritto, Vol. XXXIX, 1988, p. 297, sobretudo notas 134 e 135, referindo-se à obtenção de um direito à não reforma da pena baseado em princípios constitucionais)'.
Esta jurisprudência mantém inteira validade no caso que agora é objecto dos autos. Como se ponderou no Acórdão 498/98 (já citado) as razões constitucionais que militam no sentido da proibição da reformatio in pejus - designadamente, a tutela do direito ao recurso constitucionalmente garantida pelo nº 1 do artigo
32º - valem, com igual força, quer a agravação das sanções resulte da eliminação de uma atenuante ou da revogação de um perdão (como era o caso objecto do processo 498/98), quer decorra de um aumento das penas parcelares ou da pena unitária aplicada (como é o caso dos autos). E tendo apenas sido interposto recurso pelo arguido (como aconteceu nos presentes autos) ou pelo Ministério Público no exclusivo interesse daquele, as razões constitucionais que depõem então no sentido da proibição da reformatio in pejus valem igualmente para hipótese em que o titular da acusação junto do tribunal superior se tenha pronunciado, no visto inicial do processo, pelo agravamento das penas (e ainda que ao arguido tenha sido dada a possibilidade de responder). Nesse sentido, e a propósito da redacção dada ao artigo 667º § I nº 2 do Código de Processo Penal de 1929 pela Lei nº 2139, de 14 de Março de 1969 – indiscutivelmente, a fonte do artigo 440º, nº2, alínea b) do CJM – ponderava Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, 1974, p. 260-262):
'Por injustificável temos também a doutrina do actual 667º § I nº 2 do CPP, segundo a qual a proibição da reformatio in peius não se verifica «quando o representante do MP junto do tribunal superior se pronunciar, no visto inicial do processo, pela agravação da pena, aduzindo logo o seu parecer, caso em que serão notificados os réus, a quem será entregue cópia do parecer, para resposta no prazo de oito dias». No projecto de lei previa-se que a proibição não teria lugar «quando a acusação tenha interposto recurso subordinado»; a Câmara Corporativa censurou a solução, acentuando que «não se compreende bem a figura do recurso subordinado em processo penal» e sobretudo – com excelente razão – que a actuação do MP «deve ser sempre objectiva, ditada pela preocupação exacta de aplicação do direito, e não por razões de oportunidade». Propôs porém a solução que obteve consagração legal, invocando ser inegável que à magistratura do MP «falta, de um modo geral, na 1ª instância, justamente no escalão mais baixo e mais amplo, uma experiência e uma preparação profissional inteiramente satisfatórias ! Ora não só a base da argumentação não colhe (se a lei atribui
àqueles magistrados as funções que lhe atribui – algumas de magnitude incomparavelmente superior à da interposição de um recurso – é porque confia na sua experiência e preparação profissional !), como o expediente encontrado é absolutamente insuportável perante os fundamentos da própria proibição da reformatio in peius, acabando deixar entrar pela janela aquilo que se quis impedir que entrasse pela porta. E o mais grave é que, ao recusar-se a ideia do recurso subordinado, acabou afinal por se pôr em dúvida a própria atitude de objectividade do MP na 1ª instância, alegando-se que, face à referida falta de experiência e preparação profissional, «as instâncias superiores ver-se-iam na necessidade de determinar aos agentes do MP que interpusessem recurso subordinado, sempre que o réu recorresse»!. A eficácia da proibição da reformatio in peius entre nós encontra-se, assim, sensivelmente diminuída, dependendo em larga medida da forma parcimoniosa como o MP junto do tribunal superior utilize o poder que lhe outorga o artigo 667º § I nº 2; e melhor fora, seguramente, que nunca o utilizasse. Claro que haverá boas razões para confiar em tal parcimónia; mas não é por certo boa política legislativa deixar ao critério das pessoas decisões que, em rigor, só à lei deveriam pertencer'. Por tudo o exposto, é de considerar inconstitucional, por violação do disposto no artigo 32º, nº1, da Constituição, a norma que se extrai do artigo 440º, nº2, alínea b) do CJM, na parte em que afasta a proibição da reformatio in pejus, prevista no nº 1, quando o promotor de justiça junto do Supremo Tribunal Militar se pronunciar, no visto inicial do processo, pela agravação da pena.
9.2.2. – A alegada violação do artigo 13º da Constituição Sustenta ainda o recorrente que a norma que se extrai do artigo 440º, nº 2, alínea b) do CJM, é inconstitucional por violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição, na medida em que, na sua perspectiva, ela importa uma situação de «desigualdade ilegítima e materialmente infundada» em relação ao regime previsto no artigo 409º do Código de Processo Penal. E, mais uma vez, com razão. Também aqui - como vimos acontecer em relação ao artigo 419º do CJM - não vislumbramos nas especificidades próprias da instituição militar ou do processo penal militar uma base material que permita justificar a aludida diferença de tratamento entre o regime da proibição da reformatio in pejus no âmbito do processo penal comum e no âmbito do processo penal militar. Assim, não existindo fundamento racional a justificar um diferente regime, há que concluir, de acordo com o exposto anteriormente, que a norma ora em apreço é inconstitucional por violação do artigo 13º da Constituição, na dimensão em que esta norma proíbe o arbítrio. III – Decisão Assim, e pelo exposto, decide-se: a. Julgar inconstitucional, por violação dos artigos 205º, nº 1; 32º, nº1; e 13º, nº 1, todos da Constituição, a norma que se extrai do artigo 219º do Código de Justiça Militar quando interpretada no sentido de que dela não resulta o dever de fundamentar o acórdão que põe termo ao processo; b. Julgar inconstitucional, por violação dos artigos 32º, nº1; e 13º, nº 1, ambos da Constituição, a norma que se extrai do artigo 440º, nº2, alínea b), do Código de Justiça Militar, enquanto afasta a proibição da reformatio in pejus, prevista no nº 1, quando o promotor de justiça junto do Supremo Tribunal Militar se pronunciar, no visto inicial do processo, pela agravação da pena; c. Em consequência, conceder provimento ao recurso e determinar a reforma do acórdão recorrido de acordo com o presente juízo de inconstitucionalidade.
Lisboa, 3 de Março de 1999 José de Sousa e Brito Bravo Serra Guilherme da Fonseca Messias Bento Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (com dispensa de visto) Luís Nunes de Almeida