Imprimir acórdão
Proc. nº 701/93
1ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I Relatório
1. A instaurou, no ano de 1985, acção especial de despejo contra o B pedindo que se decretasse a resolução do arrendamento do 5º andar do prédio urbano sito em..., com o consequente despejo do arrendado, e se condenasse o Réu a restituir o prédio no estado de conservação e asseio em que lhe foi entregue.
2. Em 5 de Junho de 1992, foi proferido despacho saneador, com especificação e questionário.
3. De tal despacho veio a ser interposto pelo Réu recurso de agravo para o Tribunal da Relação de Lisboa, recurso que foi admitido com efeito meramente devolutivo e subida diferida.
4. O Réu reclamou deste despacho para o Presidente do Tribunal da Relação, ao abrigo do disposto no artigo 688º do Código de Processo Civil, pedindo que se ordenasse a subida imediata do recurso de agravo, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
Desde logo suscitou a questão da inconstitucionalidade dos artigos 734º, 735º e 740º do Código de Processo Civil, por violação dos artigos 13º e 20º, nº 1, da Constituição.
5. O Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, em despacho proferido em 10 de Maio de 1993 nesses autos de reclamação, julgou improcedente a reclamação, indeferindo-a.
Remetendo para a fundamentação de um outro despacho que, na mesma data, proferiu numa outra reclamação referente ao mesmo processo, justificou a decisão dizendo:
a) quanto ao efeito de subida do recurso
- que a questão não tinha cabimento ao nível da reclamação, de cujo âmbito manifestamente extravasava, razão pela qual a não conhecia;
b) quanto ao momento de subida do recurso
- que a inutilidade que poderia advir da não subida imediata do recurso era meramente relativa, ou seja, que se traduzia na mera inutilização eventual de actos processuais;
- que não se vislumbrava qualquer inconstitucio-nalidade das normas contidas nos artigos 734º, 735º e 740º do Código de Processo Civil, não violando as mesmas o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição, nem o direito de acesso aos tribunais, previsto no artigo 20º da Constituição.
6. É deste despacho que vem o presente recurso, interposto ao abrigo do disposto nos artigos 280º, nº 1, alínea b), da Constituição e 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, pretendendo o recorrente que se aprecie a inconstitucionalidade dos artigos
734º, nº 2, 735º e 740º do Código de Processo Civil, por violação do princípio da igualdade perante a lei e do direito de acesso aos tribunais, consagrados, respectivamente, nos artigos 13º e 20º, nº 1, da Constituição.
Nas suas alegações, o recorrente vem precisar que é o artigo 734º, nº 2, do Código de Processo Civil, que apenas admite a subida imediata dos recursos não enumerados no nº 1 do citado artigo quando a retenção os tornasse absolutamente inúteis, que ofende directamente da Constituição.
7. Nessas alegações, o recorrente fundamentou a sua pretensão dizendo que:
As normas contidas nos artigos 734º, nº 2, 735º e 740º do Código de Processo Civil,
'sobretudo a norma do nº 2 do art. 734º, quando aqui refere que 'sobem também imediatamente os agravos cuja retenção os tornaria absolutamente inúteis, acabam por ofender os princípios estabelecidos nos arts. 13º e 20º da CRP, uma vez que com o uso da expressão 'os tornaria absolutamente inúteis' acaba-se por ofender, embora muitas vezes de modo subtil, aqueles princípios constitucionais, dado que ao julgador, nunca ou dificilmente, como aconteceu no caso dos autos, se coloca a questão de a retenção do agravo tornar este absolutamente inútil.
Mas não é assim, como no caso acontece.
É que, com a retenção ou subida diferida, do agravo, este acaba ou por perder a sua utilidade directa, ou acaba por esta ficar muito diminuída ou reduzida, de modo que não traz interesse ou utilidade prática ao agravante, como no caso dos autos, mas sim, passa a ter interesse para a parte agravada, que aproveita por não ter subida imediata o mesmo agravo.
No caso concreto, tendo o alegante recorrente agravado da retenção do recurso interposto a fls. 301 verso e 302 do processo principal, conforme certidão de fls. 20 destes autos, que fora admitido a fls. 320 do processo principal, conforme certidão de fls. 27 deste recurso, este respeitante ao despacho saneador, entretanto proferido juntamente com formulação da especificação e do questionário, então o aqui recorrente fica prejudicada em termos da sua defesa, perante o benefício advindo à recorrida por, entretanto, ficar a saber os meios de defesa do mesmo recorrente, que é R. nos autos principais, sendo aquela A.
Assim, não sendo, como não foi, atento o Julgador a esse particular, então não atribuíu, como devia, subida imediata ao recurso, refugiando-se nas normas do CPC, acima referidas, tendo inclusive presente a norma do art. 734º, nº 2, que assim deve ser considerada inconstitucional por ofensa aos princípios consignados quer no art. 13º, quer no art. 20º da CRP, impedindo-se, assim, que haja igualdade perante a lei e que, com as mesmas armas, haja o verdadeiro acesso à justiça, ao direito e aos tribunais para defesa dos direitos e dos interesses legítimos das partes, aqui do agravante.'
Mais à frente, o recorrente acrescenta que:
'Afigura-se, pois, estar demonstrada a inconstitucionalidade das normas dos arts. 734º, nº 2, 735º e 740º do CPC, se bem que a inconstitucionalidade das normas dos dois últimos citados artigos deve ser analisada em conjugação ou conexão com a inconstitucionalidade da norma do nº 2 do art. 734º do CPC.
É que, as normas referentes aos arts. 735º e 740º do CPC estipulam, respectivamente, o regime de subida diferida e o regime do efeito suspensivo, os quais regimes estão relacionados imediata e directamente com o regime estipulado no art. 734º, sobretudo o do nº 2, do CPC, estabelecendo esta última norma um regime de subida imediata mas só quando se verificar que a retenção do agravo o tornaria absolutamente inútil. Ora, esta última norma, conexada às demais indicadas, ofende directamente os princípios constitucionais estabelecidos nos arts. 13º e 20º da CRP. Ou seja, o princípio da igualdade perante a lei e o do acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos direitos e legítimos interesses, respectivamente.
Pelo que, devem ser consideradas inconstitucionais tais normas, sobretudo a do nº 2 do art. 734º do CPC, onde aparece a expressão, aberrante e inconstitucional, traduzida na palavra absolutamente.'
8. Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II Fundamentação
9. Embora o recorrente tenha indicado, no requerimento de interposição do recurso, que pretendia que o Tribunal apreciasse a conformidade constitucional das normas contidas nos artigos 734º, nº 2, 735º e
740º do Código de Processo Civil, veio, posteriormente, precisar que a norma que considerava directamente violada da Constituição era apenas a primeira das indicadas e não em toda a sua extensão. Somente considerou então inconstitucional a parte da norma que exige, para que o agravo não mencionado no nº 1 do artigo 734º do Código de Processo Civil suba imediatamente ao tribunal superior, que a sua retenção o tornasse absolutamente inútil.
Deve pois entender-se que o recorrente restringiu o objecto do recurso, ao abrigo do disposto no artigo 684º, nº 3, do Código de Processo Civil (aplicável ex vi do artigo 69º da Lei do Tribunal Constitucional).
O artigo 734º do Código de Processo Civil dispõe o seguinte:
'(Agravos que sobem imediatamente)
1. Sobem imediatamente os agravos interpostos:
a) Da decisão que ponha termo ao processo;
b) Do despacho pelo qual o juiz se declare impedido ou indefira o impedimento oposto por alguma das partes;
c) Do despacho que julgue o tribunal absolutamente incompetente;
d) Dos despachos proferidos depois da decisão final.
2. Sobem também imediatamente os agravos cuja retenção os tornaria absolutamente inúteis.'
Como se viu, o recorrente sustenta que a norma contida no nº 2 deste artigo viola o princípio da igualdade e o direito de acesso aos tribunais, consagrados nos artigos 13º e 20º, nº 1, da Constituição.
10. O princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição, constitui um princípio estruturante do regime geral dos direitos fundamentais, dirigido ao legislador e ao intérprete (cf. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 5ª ed., 1991, p. 574). A igualdade pressupõe, em primeiro lugar, universalidade na atribuição de direitos e deveres, articulando-se, desse modo, com o próprio princípio democrático (artigos 12º e
2º da Constituição). Na exigência de não discriminação (artigo 13º, nº 2, da Constituição), a igualdade constitui um corolário da essencial dignidade da pessoa humana (artigo 1º da Constituição): trata-se de uma dignidade que não varia com as circunstâncias da ascendência, raça, língua, território de origem, credo religioso, político ou ideológico ou estatuto cultural, económico ou social, nomeadamente.
Em sentido material, a igualdade implica, negativamente, a proibição do arbítrio. Serão inadmissíveis, nesta perspectiva, diferenciações de tratamento sem qualquer justificação razoável - ou, no pólo oposto, equiparações de situações manifestamente desiguais (cf. Gomes Canotilho, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., 1993, p. 127). Positivamente, a igualdade indica as características constitutivas de cada categoria essencial, que justificam a atribuição do mesmo regime (cf. Perelman,
'Égalité et valeurs', L'égalité, vol. I, 1971, p. 319 e ss.). A igualdade implica então proporcionalidade (cf. Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, t. IV, 2ª ed., 1993, p. 216 e ss.).
A jurisprudência do Tribunal Constitucional tem identificado, uniformemente, a proibição do arbítrio como corolário do princípio da igualdade (cf., entre muitos outros, o Acórdão nº 39/88, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11º vol., 1988, p. 272) e esclarece que essa proibição apenas permite um controlo negativo da constitucionalidade das normas. Ao Tribunal Constitucional não cabe averiguar se o legislador encontrou a solução mais adequada, razoável ou justa (cf. o Acórdão nº 187/90, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 16º vol., 1990, p. 408). O legislador goza de liberdade, resultante de mandato democrático, para estabelecer tratamentos diferenciados
(ou igualitários) procedendo a escolhas entre as várias características diferenciadoras (ou igualizadoras) racionalmente admissíveis.
11. No que diz respeito ao regime do agravo, o legislador tipificou os casos de subida imediata deste recurso quando ele é interposto no processo principal (artigo 734º, nº 1), nos procedimentos cautelares (artigo 738º) e nos incidentes (artigo 739º do Código de Processo Civil). Para além dos casos expressamente enunciados, previu uma cláusula geral, subsidiária, que permite a subida imediata de outros agravos, quando se entender que a retenção do recurso o tornaria absolutamente inútil (artigo 734º, nº 2, do Código de Processo Civil)
Ora, não se vê em que medida a norma contida no artigo
734º, nº 2, do Código de Processo Civil pode violar o princípio da igualdade. O legislador, dentro da liberdade de conformação do regime de subida dos recursos de que dispõe, entendeu que uns deveriam ter subida imediata e os restantes subida diferida. A norma subsidiária cuja constitucionalidade se questiona tem um fundamento racional, visto que privilegia recursos cuja retenção faria perder a utilidade.
Também não haverá violação do princípio da igualdade, numa outra perspectiva, por o recorrente ser colocado numa posição desvantajosa relativamente ao recorrido, quando o recurso não haja de subir imediatamente. O legislador atribui ao recorrido, nestas hipóteses, um benefício decorrente de uma presunção de legalidade da decisão judicial impugnada. O critério seguido obedece a uma racionalidade que não contraria a proibição do arbítrio.
12. Por conseguinte, a decisão do legislador apenas poderia ser censurada se se entendesse que, em matéria cível, há uma imposição constitucional absoluta do duplo grau de jurisdição e se se concluísse que a subida diferida do recurso interposto do despacho saneador afecta esse direito.
O Tribunal Constitucional tem entendido que a garantia judiciária (artigo 20º, nº 1, da Constituição) engloba o próprio direito de defesa contra actos jurisdicionais (Acórdão nº 287/90, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 17º vol., 1990, p. 159 e ss.; identicamente, Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob.cit., p. 162). E este direito só pode ser exercido mediante o recurso para (outros) tribunais. Por outro lado, a expressa previsão da existência de tribunais de primeira instância e de recurso também fornece um argumento a favor da dignidade constitucional do direito de recurso (assim, Acórdão nº 287/90, citado, e Ribeiro Mendes, Direito Processual Civil, Recursos,
2ª ed., 1992, p. 100).
Todavia, não se pode concluir que haja, na ordem jurídica portuguesa, um ilimitado direito de recurso, o que implicaria, por exemplo, a inconstitucionalidade do instituto das alçadas judiciais. O Tribunal Constitucional tem entendido - tal como já sustentara a Comissão Constitucional
- que o direito de recurso não é absoluto ou irrestringível (Acórdãos nºs 31/87 e 65/88, D.R., II Série, de 1 de Abril de 1987 e 20 de Agosto de 1988, respectivamente, e Parecer nº 9/82, Pareceres da Comissão Constitucional, 19º vol., 1984, p. 29 e ss.). Ressalvada está a matéria penal, em que se considera que o direito de recurso constitui garantia de defesa, ante o disposto no artigo
32º, nº 1, da Constituição (Acórdãos nºs 202/86 e 8/87, D.R., II Série, de 26 de Agosto de 1986, e I Série, de 9 de Fevereiro de 1987, respectivamente).
Consequentemente, apenas está consagrado - em matérias não penais - um genérico direito de recurso, ou, noutra linguagem, a um duplo grau de jurisdição. O seu conteúdo pode ser delimitado pelo legislador, que pode racionalizar este instituto processual, reservando o exercício do direito aos casos com maior dignidade. O legislador não poderá, simplesmente, abolir in toto os recursos (cf. Ribeiro Mendes, ibid.) ou afectá-lo 'substancialmente' (cf. Acórdão nº 287/90, cit., e Fernão Thomaz e Colaço Canário, 'O Objecto do Recurso em Processo Civil', Revista da Ordem dos Advogados, 42 (1982), p. 366 e ss.), entendendo-se como 'substancial' uma redução intolerável ou arbitrária, incompatível com o princípio do Estado de direito democrático (artigo 2º da Constituição).
13. No caso sub judicio nem sequer existe uma restrição do direito de recurso. Está em causa, exclusivamente, um diferimento da subida de alguns recursos, ditado por aspirações de celeridade e economia processuais. E, de todo o modo, o legislador ordinário ressalvou, como se viu, as hipóteses em que o protelamento da subida faria perder o efeito útil do recurso: nesses casos, a subida é sempre imediata.
Deste modo, conclui-se que a norma questionada não é inconstitucional, tal como se decidiu no Acórdão nº 208/93, em situação similar
(cf. D.R., II Série, de 28 de Maio de 1993).
III Decisão
14. Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao presente recurso, confirmando, na parte impugnada, a decisão recorrida.
Lisboa, 20 de Março de 1995 Maria Fernanda Palma Alberto Tavares da Costa Vitor Nunes de Almeida Armindo Ribeiro Mendes Antero Alves Monteiro Diniz José Manuel Cardoso da Costa