Imprimir acórdão
Proc. nº 857/98
1ª Secção Relatora: Cons.ª Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. No Tribunal Judicial da Comarca da Horta, a C... de Angra do Heroísmo intentou contra G... e mulher, M..., acção especial de posse judicial avulsa, pedindo a entrega judicial de prédio por si adquirido através de arrematação, alegando que os réus ocupam tal prédio sem título e contra a sua vontade.
Os réus limitaram-se a deduzir reconvenção, pedindo a condenação da autora ao pagamento de quantia equivalente ao valor das 'benfeitorias necessárias e úteis' que realizaram no prédio.
O Juiz da Comarca da Horta indeferiu liminarmente o pedido reconvencional por entender que a presente acção, sendo especial e contendo especificidades processuais que a tornam particularmente célere, é incompatível com a dedução de um pedido reconvencional que segue a forma de processo comum.
2. Inconformados com a decisão, dela agravaram os réus, pedindo a sua revogação e substituição por outra que admita o pedido reconvencional.
O Tribunal da Relação de Lisboa, comparando a tramitação própria do processo de posse judicial avulsa com a tramitação aplicável ao pedido reconvencional dos réus – o processo comum de declaração –, concluiu que 'é absolutamente manifesto que a tramitação processual enunciada não se compatibiliza com a admissibilidade de qualquer pedido reconvencional, designadamente o de benfeitorias'. Julgou assim o agravo improcedente e confirmou a decisão recorrida. Fundamentou a decisão no artigo 274º, nº 3, do Código de Processo Civil (na redacção anterior à reforma de 1995, que é a aplicável ao caso dos autos), segundo o qual 'não é admissível a reconvenção, quando ao pedido do réu corresponda uma forma de processo diferente da que corresponde ao pedido de autor, salvo se a diferença provier do diverso valor dos pedidos'.
3. G... e mulher interpuseram novo recurso de agravo. Nas suas alegações, mais uma vez sustentaram que a forma deste processo não obsta à reconvenção e que outros processos especiais expressamente a admitem. A outra parte não contra-alegou.
Apreciando o acórdão recorrido, o Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 17 de Junho de 1998, pronunciou-se nos seguintes termos:
'[...] Defende decisão correcta, estando bastante bem elaborado e devidamente fundamentado. Interpretou no seu real alcance o estatuído no art. 274, nº 3 CPC, na redacção anterior à reforma de 1995, o agora aplicável. Termos em que se nega provimento ao agravo, remetendo-se para os fundamentos da decisão impugnada - art. 713, nº 5, 754 e 762, todos do CPC'.
4. Deste acórdão vieram G... e mulher interpor recurso para o Tribunal Constitucional, com fundamento na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, pedindo a apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 713º, nº 5, do Código de Processo Civil, em confronto com o artigo 205, nº 1, da Constituição da República Portuguesa.
O recurso foi admitido por despacho de fls. 138.
5. Nas suas alegações de recurso para o Tribunal Constitucional, os recorrentes formularam as seguintes conclusões:
'a) A norma contida no art. 713.5 do C.P.Civil é inconstitucional. b) Com efeito, essa disposição afronta o imperativo constitucional contido no art. 205.1 da Constituição. c) Na verdade, remeter para uma fundamentação não é fundamentar. d) Consequentemente, tal norma deve ser declarada inconstitucional'.
Por sua vez, a recorrida C... de Angra do Heroísmo alegou que:
'A) Faltam os pressupostos da utilidade e do interesse ao Recorrente na medida em que a decisão sobre a constitucionalidade da norma impugnada em nada afectará as decisões jurisprudenciais já tomadas sobre a matéria de facto submetida inicialmente a julgamento; B) A C.R.P. não explicita o teor nem a extensão da exigência de fundamentação das decisões jurisprudenciais; C) Cabendo ao legislador ordinário concretizar essa exigência constitucional este fê-lo, no caso vertente, através do artº 713º nº 5 do C.P.C.; D) A fundamentação exigida legitima as decisões jurisprudenciais pois torna-as compreensíveis e aceitáveis, uma vez explicadas, ou mais facilmente sindicáveis quando não aceites, pelo que o que há que ver é se a decisão, explicada nos termos da lei, demonstra às partes em conflito a sua razão de ser e este aspecto não é sindicável ao nível deste Venerando Tribunal; E) Por último, a questão de saber se o artº 713º nº 5 do C.P.C. concretiza devidamente ou não a exigência do artº 205º nº 1 da C.R.P. na medida em que poderá, ou não, abarcar, na prática, a totalidade do espírito compreendido na norma constitucional não é sindicável ao nível da fiscalização em concreto da constitucionalidade de normas jurídicas mas sim em sede de fiscalização de inconstitucionalidade por omissão; F) Falta, nos termos da lei (artºs 280º e 283º a contrario da C.R.P. e artºs 70º e 71º, a contrario, e artºs 62º a 66º, ex vi artº 67º e artº 68º, todos da Lei nº 28/82 de 15 de Novembro), legitimidade ao Requerente para requerer a fiscalização por omissão. G) Termos em que deve o presente recurso ser julgado improcedente fazendo-se, assim, JUSTIÇA.'
II
6. De acordo com a formulação dos recorrentes, o presente recurso foi interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
O recurso previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº
28/82 é o recurso que cabe das decisões dos tribunais 'que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo'.
São pressupostos desse tipo de recurso: que a decisão recorrida tenha aplicado a norma ou normas que se pretende que o Tribunal aprecie e que a inconstitucionalidade dessa norma haja sido suscitada durante o processo.
Como este Tribunal tem afirmado repetidamente, a inconstitucionalidade de uma norma só se suscita durante o processo quando tal se faz a tempo de o tribunal recorrido poder decidir essa questão, isto é, em princípio, quando o problema é colocado antes de ser proferida decisão sobre a matéria a que respeita a questão de constitucionalidade.
Porém, o Tribunal tem admitido que, em casos excepcionais e anómalos em que o recorrente não tem oportunidade processual de cumprir o ónus de suscitar a questão de constitucionalidade durante o processo, ele possa ser dispensado do seu cumprimento.
No caso dos autos, não era exigível ao recorrente que tivesse suscitado a questão durante o processo, já que não era previsível para a parte se o Supremo Tribunal de Justiça iria adoptar na decisão do recurso a forma
'normal' ou 'sumária' de fundamentação e julgamento.
Considera-se assim tempestiva a colocação da questão relativa à pretensa inconstitucionalidade da norma do artigo 713º, nº 5, do Código de Processo Civil apenas no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional.
7. Constitui objecto do presente recurso a norma constante do artigo
713º, nº 5, do Código de Processo Civil, na redacção que resulta do Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro, cujo teor é o seguinte:
'Quando a Relação confirmar inteiramente a sem qualquer declaração de voto o julgado em 1ª instância, quer quanto à decisão, quer quanto aos seus fundamentos, pode o acórdão limitar-se a negar provimento ao recurso, remetendo para os fundamentos da decisão impugnada.'
Esta norma é aplicável ao julgamento do recurso de agravo interposto na 2ª instância, por força das disposições conjugadas dos artigos 762, nº 1,º e
749º do Código de Processo Civil.
8. No entender dos recorrentes, a norma em causa seria inconstitucional por violação do artigo 205º, nº 1, da Constituição.
Determina o preceito constitucional invocado:
'As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei'.
A exigência de fundamentação das decisões judiciais corresponde sem dúvida a um imperativo constitucional e constitui uma garantia integrante do conceito de Estado de Direito democrático.
Segundo o preceito constitucional invocado, a fundamentação das decisões judiciais está dependente da lei. O legislador ordinário goza de liberdade de conformação na definição do âmbito do dever de fundamentação, podendo garanti-lo com maior ou menor latitude.
Como este Tribunal sublinhou no acórdão nº 56/97 (publicado no Diário da República, II Série, nº 65, de 18 de Março de 1997, p. 3272 ss), a exigência constitucional nesta matéria limita-se a devolver ao legislador ordinário o encargo de definir o âmbito e a extensão do dever de fundamentar, conferindo-lhe ampla margem de liberdade constitutiva.
Tal não pode significar, evidentemente, discricionariedade legislativa susceptível de afastar o dever de fundamentar as decisões. Sobretudo quanto às decisões judiciais que tenham por objecto a solução do objecto do litígio, impõe-se a fundamentação ou motivação fáctica dos actos decisórios através da exposição concisa e completa dos motivos de facto, bem como das razões de direito que justificam a decisão.
A norma em apreciação, ao permitir que a decisão proferida em recurso remeta para a fundamentação da decisão impugnada, não implica qualquer desadequação constitucional. Na verdade, desta norma não resulta a dispensa de fundamentação da decisão do recurso. Por outro lado, só pode adoptar-se a forma
'sumária' de julgamento aí prevista se existir confirmação integral do julgado na instância inferior, quer quanto à decisão, quer quanto aos fundamentos, e se houver unanimidade no julgamento do recurso.
Com esta alteração introduzida no Código de Processo Civil pelo Decreto-Lei nº 329-A/95, teve-se fundamentalmente em vista simplificar a estrutura formal dos acórdãos. Com o regime estabelecido nesta norma, não é eliminada a fundamentação da decisão judicial, porquanto o que se passa é que o tribunal superior recebe ou perfilha os fundamentos indicados pelo tribunal inferior; é assim instituída uma forma célere e simplificada de apreciação, fundamentação e decisão dos recursos, à semelhança da que existe, por exemplo, no domínio do processo constitucional (artigo 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional) e do processo penal (artigo 420º, nº 3, do Código de Processo Penal).
Não há portanto que censurar a norma do artigo 713º, nº 5, do Código de Processo Civil, pois dela não resulta qualquer violação do dever constitucional de fundamentação das decisões judiciais.
III
9. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao recurso.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta.
Lisboa, 9 de Março de 1999- Maria Helena Brito Vítor Nunes de Almeida Artur Maurício Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa