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Proc. nº 824/97
2ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. Banco ..., SA, interpôs, junto do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, recurso contencioso de anulação do despacho nº 18/95, de 30 de Outubro, do Director Geral do Turismo, que indeferiu um pedido de aprovação de localização de um hotel ..., no concelho de Portimão.
Tal decisão de indeferimento teve por fundamento o disposto no nº 2 do Despacho Conjunto do Ministro do Planeamento e Administração do Território e do Ministro do Comércio e Turismo, de 15 de Dezembro de 1992, emitido ao abrigo do nº 3 do artigo 11º do Decreto Regulamentar nº 11/91, de 21 de Março, nos termos do qual não são permitidas construções com altura superior a oito metros e com mais de dois pisos em zonas próximas das margens do mar.
O recorrente sustentou, no requerimento de interposição do recurso, que o nº 3 do artigo 11º do Decreto Regulamentar, ao atribuir competência aos membros do Governo para emitirem regulamentos, contraria o artigo 115º, nº 5, da Constituição, ferindo de ilegalidade o regulamento emitido com base em tal preceito. Nas alegações de recurso então apresentadas, o recorrente reiterou este entendimento.
O Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, por sentença de 24 de Setembro de 1995, concedeu provimento ao recurso, anulando o acto impugnado. Fundamentou tal decisão na inconstitucionalidade das normas contidas no nº 3 do artigo 11º do Decreto Regulamentar nº 11/91, de 21 de Março, e no nº 2 do Despacho Conjunto do Ministro do Planeamento e Administração do Território e do Ministro do Comércio e Turismo, de 15 de Dezembro de 1992, por violação do artigo 115º, nº 5, da Constituição.
2. O Ministério Público interpôs recurso obrigatório de constitucionalidade da decisão de 24 de Setembro de 1995, ao abrigo do artigo 280º, nº 1, alínea a), da Constituição e 70º, nº 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade à Constituição das normas “desaplicadas”.
O juiz do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, por despacho de 18 de Outubro de 1996, não admitiu o recurso de constitucionalidade, em virtude de considerar que a decisão recorrida não recusou a aplicação de qualquer norma.
O Ministério Público reclamou de tal decisão, ao abrigo dos artigos
76º, nº 4, e 77º da Lei do Tribunal Constitucional, reclamação que foi deferida pelo Acórdão nº 185/97.
Admitido o recurso, o Ministério Público junto do Tribunal Constitucional apresentou alegações que concluiu do seguinte modo:
1º - A norma constante do nº 3 do artigo 11º do Decreto Regulamentar nº 11/91, de 21 de Março, ao devolver para regulamento formalmente menos solene (o despacho ministerial conjunto) a execução e desenvolvimento, a nível transitório, da disciplina instituída quanto aos empreendimentos nas zonas de ocupação turística, através da edição de normas de conteúdo estritamente técnico, não ofende o princípio estabelecido no nº 5 do artigo 115º da Constituição da República Portuguesa, na redacção então vigente.
2º - O regulamento integrado no despacho conjunto dos Ministros interessados, editado em obediência à referida norma regulamentar, em que explicitamente se funda, invocando ainda, ao longo do seu articulado, como suporte da competência para a sua edição outro diploma legal – o Decreto-Lei nº 328/86, de 30 de Setembro – não viola o princípio da precedência de lei, constante do nº 7 do artigo 115º da Constituição.
3º - Termos em que deverá proceder o presente recurso.
Por seu turno, o recorrido contra-alegou e apresentou um parecer jurídico da autoria do Professor Paulo Otero. Nas conclusões, o recorrido sustentou o seguinte: A) Quanto à validade jurídico-constitucional do artigo 11º, nº 3, do Decreto Regulamentar nº 11/91, de 21 de Março:
1) Estabelecendo a Constituição uma clara diferenciação orgânica, procedimental e formal entre os decretos regulamentares e todas as restantes formas de regulamentos governamentais de execução das leis, permitindo o seu artigo 115º, nº 6 (actual artigo 112º, nº 7), a possibilidade de criação de uma reserva legal de forma de decreto regulamentar, verifica-se que um regulamento nunca pode afastar, tal como nem sequer uma lei pode permitir que um regulamento afaste (CRP, artigo 115º, nº 5, hoje o artigo 112º, nº 7), a forma de decreto regulamentar reservada por lei para a respectiva regulamentação governamental;
2) Resulta da Constituição, em consequência, que só uma lei pode
“derrogar” a exigência feita por uma outra lei de que a sua regulamentação seja efectuada pela forma de decreto regulamentar - encontrando-se excluída a possibilidade de qualquer regulamento - incluindo, por isso mesmo, o próprio decreto regulamentar - proceder a uma modificação da reserva legal da forma de decreto regulamentar, existindo aqui, por outras palavras, a consagração constitucional de uma reserva de lei sobre a matéria;
3) Neste sentido, o artigo 11º, nº 3, do Decreto Regulamentar nº 11/91, de 21 de Março, determinando que a disciplina normativa dos empreendimentos nas zonas de ocupação turística em que se verifique ausência de instrumentos de planeamento aprovados fosse emanada por despacho, bem ao contrário do preceituado pela lei que exigia a forma de decreto regulamentar, afasta parcialmente a reserva legal de forma de decreto regulamentar garantida directamente pela Constituição, violando o preceituado no seu artigo 115º, nº 6
(hoje, o artigo 112º, nº 7);
4) Além disso, uma vez que só a lei pode “derrogar” a exigência feita por uma outra lei de que a sua regulamentação seja efectuada pela forma de decreto regulamentar, o artigo 11º, nº 3, do Decreto Regulamentar nº 11/91, de 21 de Março, ao proceder à remissão da disciplina da matéria para despacho viola o princípio da reserva de lei e, consequentemente, o princípio da separação de poderes, verificando-se que se está perante uma decisão normativa da Administração ferida de inconstitucionalidade orgânica e material;
5) A inconstitucionalidade do artigo 11º, nº 3, do Decreto regulamentar nº 11/91, de 21 de Março, determina, por seu lado, a inconstitucionalidade consequente ou derivada de todo o Despacho Conjunto dos Ministros do Planeamento e da Administração do Território e do Comércio e Turismo, de 15 de Dezembro de
1992;
6) Seguindo um outro caminho argumentativo, o princípio da legalidade da competência, enquanto expressão da subordinação constitucional da própria Administração à lei, determina, segundo os seus corolários da preferência e do primado da lei ao nível da definição das regras de competência, que os órgãos administrativos nunca tenham nas suas mãos a definição (ou a modificação) das regras de competência, principalmente quando está em causa o exercício de competências com inegável projecção constitucional, tal como sucede em matéria de decretos regulamentares;
7) No entanto, a verdade é que o artigo 11º, nº 3, do Decreto Regulamentar nº 11/91, de 21 de Março, “libertando” a normação dos empreendimentos nas zonas de ocupação turística da forma de decreto regulamentar, passando antes a exigir a simples forma de despacho conjunto de dois Ministros, chama a si a redefinição da lei das regras de competência (e procedimentais) resultantes da lei para a matéria em causa, afastando, deste modo, o Primeiro-Ministro da respectiva decisão, confiando-a em exclusivo aos Ministros do Planeamento e Administração do Território e do Comércio e Turismo, e, por outro lado, conduzindo a que uma forma menos solene de acto acabasse por excluir também qualquer intervenção procedimental do Presidente da República na respectiva normação, resultando de tudo, por último, uma diminuição do grau de legitimidade político-democrática da normação regulamentar por simples via de despacho;
8) Em consequência, deve entender-se que o artigo 11º, nº 3, do Decreto Regulamentar nº 11/91, de 21 de Março, consubstancia uma violação manifesta do princípio constitucional da legalidade da competência e deste modo, de subordinação da própria Administração à lei através dos princípios da preferência e do primado da lei, gerando esta inconstitucionalidade, por outro lado, e uma vez mais, a inconstitucionalidade derivada ou subsequente do Despacho Conjunto dos Ministros do Planeamento e da Administração do Território e do Comércio e Turismo, de 15 de Dezembro de 1992;
B) Quanto à validade jurídico-constitucional do Despacho Conjunto dos Ministros do Planeamento e da Administração do Território e do Comércio e Turismo, de 15 de Dezembro de 1992:
9) Sem prejuízo da já anteriormente exposta inconstitucionalidade consequente ou derivada do Despacho Conjunto dos Ministros do Planeamento e da Administração do Território e do Comércio e Turismo, de 15 de Dezembro de 1992, isto por feito da inconstitucionalidade do artigo 11º, nº 3, do Decreto Regulamentar nº 11/91, de 21 de Março, a verdade é que o próprio Despacho Conjunto citado se mostra directamente desconforme com a Constituição;
10) Desde logo, sendo o jus aedificandi uma faculdade integrante do conteúdo do direito fundamental de propriedade privada garantido pelo artigo 62º, nº 1 da Constituição, enquanto direito fundamental de natureza análoga aos direitos, liberdade e garantias, qualquer restrição ao direito de construir ou de edificar comporta sempre, por definição, também uma restrição ao exercício do direito de propriedade privada;
11) Ora, determinando o nº 2 do Despacho Conjunto dos Ministros do Planeamento e da Administração do Território e do Comércio e Turismo, de 15 de Dezembro de 1992, restrições à construção de estabelecimentos hoteleiros através da imposição de limites máximos à altura e ao número de pisos, verifica-se que estamos diante de uma verdadeira restrição ao exercício do direito de propriedade privada sem que tivesse sido respeitada a reserva de lei exigida pelo artigo 18º, nºs 2 e 3, da Constituição;
12) Por conseguinte, o nº 2 do Despacho Conjunto dos Ministros do Planeamento e da Administração do Território e do Comércio e Turismo, de 15 de Dezembro de
1992, está ferido de inconstitucionalidade formal e orgânica: (i) comporta restrições a um direito fundamental não sendo formalmente uma lei, (ii) nem foi emanado no exercício de uma competência legislativa;
13) Além disso, estipulando o artigo 115º, nº 7, (actual, artigo 112º, nº 8) da Constituição que todos os regulamentos devem indicar expressamente a lei que regulamentam ou que define a competência para a respectiva emissão, observa-se que o Despacho Conjunto dos Ministros do Planeamento e da Administração do Território e do Comércio e Turismo, de 15 de Dezembro de 1992, fazendo apenas menção ao artigo 11º, nº 3, do Decreto Regulamentar nº 11/91, de 21 de Março, como norma habilitante, não contêm nenhuma indicação da lei ao abrigo da qual foi emitido ou que define a respectiva competência subjectiva ou objectiva para a sua emissão, violando o disposto na citada disposição constitucional;
14) Exactamente porque o Despacho Conjunto dos Ministros do Planeamento e da Administração do Território e do Comércio e Turismo, de 15 de Dezembro de 1992, viola directamente o disposto no artigo 115º, nº 7, da Constituição (hoje, o artigo 112º, nº 8), deve, em consequência, concluir-se pela inconstitucionalidade formal de todo o referido acto regulamentar.
3. Corridos os vistos, cumpre decidir.
II Fundamentação A Objecto
4. O Decreto-Lei nº 367/90, de 26 de Novembro, que procedeu à alteração do Decreto-Lei nº 176-A/88, de 18 de Maio, estabeleceu no nº 6 do seu artigo 11º que os Planos Regionais de Ordenamento do Território são aprovados mediante decreto regulamentar.
O Decreto Regulamentar nº 11/91, de 21 de Março, que aprovou o Plano Regional de Ordenamento do Território para o Algarve, estabeleceu, nos nºs 2 e 3 do artigo 11º, o seguinte: Artigo 11º Zonas de ocupação turística
(...)
2 – Nas zonas referidas no número anterior não devem ser previstas nem autorizadas acções ou empreendimentos que, pelas suas características, dimensão ou natureza:
(...) b) Causem degradação das condições naturais, paisagísticas e do meio ambiente;
(...)
3 – Os empreendimentos nas zonas de ocupação turística, e na ausência de instrumento de planeamento aprovado, ficam sujeitos a um conjunto de normas transitórias fixadas por despacho conjunto dos Ministros do Planeamento e da Administração do Território e do Comércio e Turismo onde se explicitem as densidades de ocupação, índices da área susceptível de construção e, a título indicativo, os princípios contratuais entre as autarquias e o promotor com vista
à salvaguarda dos requisitos indispensáveis a este sector de actividade.
(...)
5. Visando dar sequência ao disposto no Plano Regional de Ordenamento do Território para o Algarve, o Despacho Conjunto do Ministro do Planeamento e Administração do Território e do Ministro do Comércio e Turismo, de 15 de Dezembro de 1992, consagrou no nº 2 o seguinte regime: Os estabelecimentos hoteleiros a que alude o número anterior não poderão ter uma altura superior a 8 m e um máximo de dois pisos quando se situem a uma distância inferior a 350 m do litoral da margem das águas do mar ou das respectivas zonas adjacentes como tal classificadas.
O Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, na decisão recorrida, anulou o acto de indeferimento do pedido de aprovação da localização de um hotel, uma vez que considerou que as normas que serviram de fundamento à decisão de indeferimento (nº 2 do referido Despacho Conjunto e nº 3 do artigo
11º do Decreto Regulamentar) são inconstitucionais, por violação do artigo 115º, nº 5, da Constituição.
O recorrido, por outro lado, sustenta que tais normas são ainda inconstitucionais por violação do artigo 115º, nºs 6 (reserva de decreto regulamentar) e 7, por violação do princípio da legalidade da competência e da subordinação da Administração à Lei. O recorrido afirma, por último, que as normas em apreciação são orgânica e formalmente inconstitucionais, por restringirem o direito de propriedade sem a correspondente habilitação legislativa.
B A questão da eventual inconstitucionalidade do artigo 11º, nº 3, do Decreto Regulamentar nº 11/91, de 21 de Março, por violação do artigo 115º, nº 5 (actualmente 112º, nº 6), da Constituição
6. A questão suscitada directamente pelo recurso obrigatório do Ministério Público é a da eventual violação do artigo 115º, nº 5, da Constituição (112º, nº 6, na versão actual) pelo nº 3 do artigo 11º do Decreto Regulamentar nº 11/91, na medida em que remeteu para Despacho conjunto dos Ministros do Planeamento e da Administração do Território e do Comércio e Turismo a explicitação de certos critérios de ordenamento do território.
Uma tal remissão de regulamentação não poderá, todavia, contradizer o nº 6 do artigo 112º da Constituição, já que o referido Decreto Regulamentar nº
11/91 não é uma lei, mas sim um regulamento do Governo. Assim, como não estamos no caso sub judice perante uma “lei” que autolimita a sua competência, delegando num acto normativo de valor inferior a sua interpretação ou integração, não é sequer justificável o confronto do referido diploma regulamentar com a hipótese legal do artigo 112º, nº 6.
A remissão de um regulamento emanado de fonte normativa hierarquicamente superior para um outro de uma fonte menos solene não se insere no âmbito normativo literal e sistemático do artigo 112º, nº 6, da Constituição. Consequentemente, a inconstitucionalidade invocada quanto ao artigo 112º, nº 6, não se verifica.
C A questão da eventual inconstitucionalidade do artigo 11º, nº 3, do Decreto Regulamentar nº 11/91, de 21 de Março, e do consequente Despacho Conjunto do Ministros do Planeamento e da Administração do Território e do Comércio e Turismo, de 15 de Dezembro de 1992, por violação do artigo 115º, nº 6
(actualmente 112º, nº 7), da Constituição
7. Existe uma primeira questão jurídica subjacente à questão de constitucionalidade suscitada: a da eventual incompatibilidade do artigo 11º, nº
3, do Decreto Regulamentar nº 11/91 com a lei que o autorizou, ao remeter para despacho conjunto de dois ministros a regulamentação da “densidade de ocupação,
índices de área susceptível de construção e, a título indicativo, os princípios contratuais entre as autarquias e o promotor” nos empreendimentos em zonas de ocupação turística, na ausência de instrumento de planeamento aprovado.
O Decreto-Lei nº 967/90, de 26 de Novembro estabelece no seu artigo
11º, nº 6, que os planos regionais de ordenamento do território são aprovados mediante decreto regulamentar. A aprovação por Despacho Conjunto de matérias que poderiam constar de concretos instrumentos de planeamento, no caso de estes inexistirem, poderá violar uma reserva de decreto regulamentar? Da resposta a esta questão depende a solução da questão de constitucionalidade proposta: a eventual contradição com o artigo 115º, nº 6, da Constituição (112º, nº 7, após a Revisão Constitucional de 1997) do referido artigo 11º, nº 3, do Decreto Regulamentar nº 11/91. A questão de constitucionalidade reside, efectivamente, na eventual falta de competência de uma norma regulamentar para afastar uma reserva de decreto regulamentar estabelecida por uma norma com valor de lei. É uma questão relacionada com o valor relativo da lei e do regulamento e referente à invasão de competência especificamente legal por um regulamento.
8. Definida a questão, uma resposta afirmativa à mesma dependeria de o objecto do despacho conjunto dos ministros corresponder, efectivamente, ao objecto reservado pelo Decreto-Lei nº 367/90 a decreto regulamentar.
O Despacho Conjunto dos Ministros do Planeamento e da Administração do Território e do Comércio e Turismo, de 15 de Dezembro de 1992, estabeleceu que “os estabelecimentos hoteleiros a que alude o número anterior não poderão ter uma altura superior a 8 m e um máximo de dois pisos quando se situem a uma distância inferior a 350 m do litoral da margem das águas do mar ou das respectivas zonas adjacentes como tal classificadas”. Tal prescrição poderia constar do próprio plano regional de ordenamento do território e, consequentemente, pertenceria ao objecto do decreto regulamentar, para o qual remete o Decreto-Lei nº 367/90. Mas violar-se-á, por isso, a própria reserva de decreto regulamentar prevista no Decreto-Lei nº 367/90? Por outras palavras, pretenderia o Decreto-Lei nº 367/90 impor uma reserva absoluta de decreto regulamentar relativamente a todas as matérias concretas a que um plano de ordenamento do território se poderia referir, de modo que a integração de qualquer lacuna do mesmo decreto regulamentar não poderia ser realizada pela autoridade administrativa? E todo e qualquer critério de concretização dos princípios gerais definidos no plano de ordenamento do território deveria estar explicitada no mesmo? A própria remissão para um instrumento de planeamento aprovado ofenderia a reserva de decreto regulamentar?
9. Uma resposta afirmativa conduziria, na realidade, a um excessivo alargamento dos fins da própria reserva de decreto regulamentar que se prevê no caso presente. Com efeito, referindo-se a reserva de decreto regulamentar à previsão dos planos regionais de ordenamento do território, não tem que incluir todos os aspectos técnicos suscitados em situações concretas do ordenamento do território na execução dos mesmos, mas apenas os critérios e princípios gerais que devem orientar a Administração, exprimindo as grandes opções nessa matéria. A função do decreto regulamentar é exactamente fixar esses critérios gerais a seguir no ordenamento do território, permitindo simultaneamente uma aplicação uniforme e previsível da lei, não podendo ser entendida como absoluta limitação da avaliação técnica das situações pelas entidades administrativas. Pelo contrário, o decreto regulamentar é a fonte dos critérios normativos que hão-de conduzir e facilitar a actuação das entidades administrativas na aplicação da lei e no cumprimento de certos objectivos de interesse público, conferindo uma maior solidez às expectativas dos particulares no seu relacionamento com a Administração. Ora, esse desiderato é alcançado, em zonas de ocupação turística em que não haja instrumento de planeamento aprovado, por normas transitórias fixadas por despacho conjunto dos Ministros do Planeamento e da Administração do Território e do Comércio e Turismo, onde se explicitem, nomeadamente, as densidades de ocupação e os índices da área susceptível de construção. O decreto regulamentar fornece critérios gerais de protecção ambiental e paisagística [artigo 11º, nº 2, alínea b)], impedindo a autorização de acções e empreendimentos que “causem degradação das condições naturais, paisagísticas e do meio ambiente”, e impõe que haja regras relativas à densidade de ocupação e à
área susceptível de construção, que são instrumentais da aplicação dos critérios gerais. Impõe, por conseguinte, que haja ordenamento sem, todavia, estipular o conteúdo dessas regras perante situações concretas de ordenamento que exigem uma avaliação técnica e delega nos Ministros que tutelam o planeamento do território e o turismo a competência para determinar o conteúdo de tais regras em tais situações.
10. A solução consagrada pelo legislador consiste, assim, em interpor entre o decreto regulamentar e a actividade administrativa concreta uma outra instância regulamentar que assegure a uniformidade das decisões, em certos sectores, e em reduzir a margem da discricionariedade administrativa na prossecução dos fins de interesse público (preservação do ambiente e da paisagem, e ordenação do território, nas zonas turísticas).
Em si mesma, tal solução legislativa corresponde a um controlo acrescido da actividade administrativa na sua vertente de maior precisão técnica dos critérios, não contendendo com uma reserva de decreto regulamentar. Com efeito, se o artigo 11º, nº 3, do Decreto Regulamentar nº 11/91 não tivesse sido previsto, não seria, mesmo assim, de excluir que a não autorização de um empreendimento com uma certa dimensão e a uma certa distância do litoral pudesse ser directamente fundamentada na alínea b) do nº 2 do mesmo Decreto Regulamentar, com base na comprovação técnica de que a dimensão ou a distância do litoral seriam lesivas para o ambiente.
11. Não haverá, deste modo, qualquer violação do Decreto-Lei nº 367/90 pelo artigo 11º, nº 3, do Decreto Regulamentar nº 11/91. E, consequentemente, o artigo 112º, nº 7, da Constituição não foi violado pelo artigo 11º, nº 3, do Decreto Regulamentar nº 11/91 e pelo nº 2 do Despacho Conjunto dos Ministros do Planeamento e da Administração do Território e do Comércio e Turismo, de 15 de Dezembro de 1992. Na realidade, o facto de estes, conjugadamente, concretizarem apenas as condições positivas que impedirão um juízo de pendor discricionário relativo ao prejuízo para o ambiente de certo empreendimento, pelas suas características, dimensão ou natureza, impede que se conclua por uma alteração da competência constitucional do decreto regulamentar. Ou seja, não se pode inferir que terá havido uma sobreposição do decreto regulamentar a uma categoria de actos legislativos hierarquicamente superiores. Assim, o Decreto Regulamentar nº 11/91 não viola, no seu artigo 11º, nº 3, o poder atribuído pela Constituição às leis de constituírem uma reserva de decreto regulamentar, porque não subtrai a matéria para a qual o decreto-lei estipulou reserva de decreto regulamentar a esta mesma forma.
12. Também o argumento da violação da separação de poderes – princípio da legalidade das competências – não é procedente. Na verdade, como se referiu, a matéria para a qual é prevista a forma de despacho conjunto não subtrai ao poder legislativo do Governo o controlo do seu conteúdo normativo, na medida em que as normas do Despacho Conjunto de 15 de Dezembro de 1992 apenas concretizam, técnico-politicamente, os critérios fixados no próprio Decreto Regulamentar nº 11/91.
A determinação da densidade de ocupação e os índices da área susceptível de construção são meras concretizações de uma previsão normativa geral. Por outro lado, a altura dos edifícios e a distância do litoral são simplesmente critérios relacionados com a área susceptível de construção e a densidade da ocupação.
D A questão da eventual inconstitucionalidade do artigo 11º, nº 3, do Decreto Regulamentar nº 11/91, de 21 de Março, e do consequente Despacho Conjunto do Ministros do Planeamento e da Administração do Território e do Comércio e Turismo, de 15 de Dezembro de 1992, por violação do artigo 62º e 18º, nº 2, da Constituição
13. Por último, não é correcto o entendimento de que as restrições do jus aedificandi resultantes dos instrumentos normativos sub judicio violam as exigências constitucionais relativas à consagração legislativa das restrições ao direito de propriedade (artigos 62º, nº 1, e 18º, nº 2, da Constituição). Desde logo, o direito de propriedade não é consagrado constitucionalmente como um direito sem limites imanentes derivados da sua função social. As necessidades de preservação do ambiente e do ordenamento do território são, no equilíbrio constitucional dos valores, um condicionamento concreto do direito de propriedade, não configurando, propriamente, uma restrição deste direito, mas apenas um pressuposto ou condição do seu adequado exercício.
A edificação de prédios altos junto ao litoral, em áreas protegidas paisagisti-camente, em contradição com exigências de ordenamento territorial e ambiental, não está directamente autorizada pelo artigo 62º, nº 1, da Constituição. O artigo 62º, nº 1, não se exprime isoladamente na Constituição portuguesa, independentemente, por exemplo, dos valores consagrados no artigo
66º, nºs 1 e 2, alínea b). O exercício do direito de propriedade, nomeadamente da faculdade de edificar, deve harmonizar-se com as referidas exigências do ordenamento territorial e protecção ambiental.
14. Por outro lado, mesmo entendendo que a harmonização entre o direito de propriedade e as exigências de ordenamento do território e de protecção do ambiente dependem de uma concreta previsão legislativa, limitativa do direito de propriedade, sempre se haveria de entender que tais exigências têm consagração no próprio Decreto-Lei nº 176-A/88, de 18 de Maio. Efectivamente, este diploma alterou e desenvolveu legislação anterior prevendo a realização de planos regionais de ordenamento, visando “o correcto ordenamento do território através do desenvolvimento harmonioso das suas diferentes parcelas pela optimização das implantações humanas e do uso do espaço e pelo aproveitamento racional dos seus recursos” (artigo 2º). O mesmo diploma previu ainda que os planos regionais de ordenamento do território têm por objectivo:
“definir as opções e estabelecer os critérios de organização e uso do espaço, tendo em conta, de forma integrada, as aptidões e potencialidades da área abrangida” e “estabelecer normas gerais de ocupação e utilização que permitem fundamentar um correcto zonamento, utilização e gestão do território abrangido, tendo em conta a salvaguarda de valores culturais e naturais” [artigo 3º, alíneas b) e c)].
15. Um tal interesse público de gestão do espaço territorial, no sentido do “desenvolvimento harmonioso do território nacional” (Decreto-Lei nº
838/93, de 20 de Julho, que definia os planos regionais de ordenamento de território como “instrumentos programáticos e normativos ... visando a caracterização e o desenvolvimento harmonioso das diferentes parcelas do território”), impõe, necessariamente, um condicionamento do exercício absoluto das faculdades inerentes ao direito de propriedade, tal como o jus aedificandi.
É, assim, a própria consagração legislativa da figura do plano regional de ordenamento do território que fornece o fundamento normativo que o Decreto Regulamentar nº 11/91 e o despacho Conjunto dos Ministros do Planeamento e Administração do Território e do Comércio e Turismo, de 15 de Dezembro de 1992, concretizam. As restrições ao direito de propriedade que deveriam ser abrangidas pela reserva legislativa estão de facto contempladas como inerentes aos interesses públicos de ordenamento do território e protecção ambiental no Decreto-Lei nº 176-A/88, de cuja execução tratam as normas dos diplomas regulamentares sub judicio.
Com efeito, se a lei prevê a gestão do território em função do interesse público, as limitações do jus aedificandi são, como se referiu, uma decorrência normal dessa previsão legislativa. Outra questão é saber se nos casos em que tais limitações privem o titular do núcleo essencial do direito de propriedade, alguma compensação é devida.
Deste modo, não se pode concluir que as “restrições” ao jus aedificandi, no caso concreto, não tenham suporte legislativo, derivando apenas de norma regulamentar, pois elas decorrem da actividade normal de ordenamento do território e protecção ambiental própria da Administração Pública, ao abrigo do Decreto-Lei nº 176-A/88. As normas regulamentares sub judicio apenas concretizam, de acordo com a perspectiva regional, a gestão do território nacional.
E A questão da eventual violação do artigo 112º, nº 8
16. Finalmente, o nº 2 do Despacho Conjunto refere-se expressamente ao decreto regulamentar que define a sua competência, explicitando, também, suficientemente os critérios em que fundamenta a sua legalidade - trata-se, evidentemente, do artigo 11º, nº 3, do Decreto Regulamentar nº 11/91, de 21 de Março.
Por outro lado, o Despacho Conjunto visa apenas suprir, transitoriamente, a falta de instrumentos de ordenamento do território, tal como foi preconizado pela regulamentação do Decreto-Lei nº 176-A/88 e pelo Decreto Regulamentar nº 11/91. Deste modo, nem sequer formalmente (já que a questão não se coloca no plano de uma violação substancial da Constituição) existe falta de sintonia com o artigo 112º, nº 8, da Constituição. A norma sub judicio do Despacho Conjunto não usurpa qualquer função do Decreto Regulamentar em questão, sendo apenas uma regra de cariz técnico que medeia entre a decisão legislativa e a actividade administrativa, concretizando o critério normativo previsto no próprio Decreto Regulamentar.
III Decisão
17. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide não julgar inconstitucionais as normas constantes do artigo 11º, nº 3, do Decreto Regulamentar nº 11/91, de 21 de Março, e do nº 2 do Despacho Conjunto do Ministro do Planeamento e da Administração do Território e do Ministro do Comércio e Turismo, de 15 de Dezembro de 1992, concedendo provimento ao recurso e revogando a decisão recorrida, que deverá ser reformulada de acordo com o presente juízo de constitucionalidade.
Lisboa, 23 de Março de 1999. Maria Fernanda Palma Bravo Serra Guilherme da Fonseca Paulo Mota Pinto José Manuel Cardoso da Costa