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Proc. nº 447/96
1ª Secção Relatora: Cons.ª Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Ao abrigo de despacho de declaração de utilidade pública do Secretário de Estado das Obras Públicas, de 31 de Agosto de 1993 (Diário da República, II Série, Suplemento, nº 221, de 20 de Setembro de 1993), tomou a BRISA posse administrativa de uma parcela de terreno com a área de 4.038 m2, sita no Lugar da Cova, freguesia de Castelões, concelho de Penafiel, de que eram proprietários M... e mulher, MS.... Não tendo chegado a acordo com os expropriados, a BRISA promoveu a avaliação arbitral do terreno, cujo valor foi fixado, por acórdão de arbitragem de 15 de Abril de 1994, em 9.776.000$00. A área edificável do terreno indicada era de 720 m2. Os expropriados interpuseram recurso desta avaliação junto do Tribunal Judicial de Penafiel, em 6 de Julho de 1994, alegando, em síntese, não corresponder a avaliação efectuada ao prejuízo efectivo da expropriação (nomeadamente, por não se ter levado em linha de conta que o terreno é parcialmente apto para construção, nos termos do artigo 24º do Código das Expropriações). Requereram, nos termos dos artigos 59º e seguintes do Código das Expropriações, uma segunda avaliação do terreno. A BRISA, por seu lado, sustentou a correcção da avaliação arbitral, afirmando que a vocação do terreno era unicamente agrícola, dada a sua inserção numa zona estritamente rural e sem quaisquer infraestruturas urbanísticas. Foi entretanto aprovado o Plano Director Municipal de Penafiel (aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros nº 53/94, publicado no Diário da República, I, nº 160, de 13 de Julho de 1994, p. 3746 ss).
2. O Tribunal Judicial de Penafiel, por sentença de 13 de Março de 1995, atribuiu aos expropriados a quantia de 35.963.740$50, a título de indemnização por expropriação da sua parcela de terreno, correspondente ao valor fixado no laudo pericial de 22 de Novembro de 1994 (35.511.000$00, para uma área com potencialidade edificatória de 1630 m2, na extensão total do terreno a expropriar), acrescido do valor de actualização ao índice de preços no consumidor. Tendo a BRISA interposto recurso desta sentença, o Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 30 de Novembro de 1995, reduziu para 13.145.922$00 o valor da indemnização a atribuir aos expropriados, rejeitando a consideração do acréscimo de potencialidade edificatória induzida pelo PDM, alegadamente tida em conta na segunda avaliação, uma vez que este só entrara em vigor após a declaração de utilidade pública.
Alegando a obscuridade deste acórdão, Manuel de Jesus Penetro e mulher requereram a sua aclaração. O Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 29 de Fevereiro de 1996, indeferiu este pedido.
3. Inconformados, os expropriados Manuel Penetro e mulher interpuseram o presente recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, do acórdão de 30 de Novembro de
1995, requerendo a fiscalização da constitucionalidade
'[...] do nº 2 do artº 22º do Código das Expropriações (aprovado pelo artº 1º do Decreto-Lei nº 438/91, de 9 de Novembro), in fine, onde se determina que a justa indemnização, medida embora pelo valor do bem expropriado, seja no entanto
«fixada por acordo ou determinada objectivamente pelos árbitros ou por decisão judicial, tendo em consideração as circunstâncias e as condições de facto existentes à data da declaração de utilidade pública.'
Por despacho de 26 de Março de 1996 (fls. 189), o Desembargador Relator, nos termos do artigo 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional, convidou os recorrentes a completar o requerimento de interposição de recurso, nomeadamente a fornecer a indicação da peça processual em que suscitaram a inconstitucionalidade do artigo 22º, nº 2. O recurso foi admitido por despacho de 23 de Abril de 1996, pois considerou-se que, 'embora de forma que se nos oferece larvar' foi cumprido minimamente o exigido pelo despacho que mandou completar o requerimento de interposição do recurso.
4. Nas alegações produzidas junto do Tribunal Constitucional, os recorrentes concluíram do seguinte modo:
'3. Em sede de julgamento de recurso emergente de expropriação litigiosa urgente, incumbe aos Tribunais comuns não apenas fazer cuidada interpretação e aplicação da lei ordinária mais ainda sindicar e decidir em cada caso concreto da conformidade dos preceitos que aplicam à Lei Fundamental da República, designadamente quando as decisões a proferir autorizadamente se prendem muito de perto com a disciplina da liberdade e propriedade dos cidadãos, velando por que a lei seja igualmente interpretada e igualmente aplicada, por forma a que se evitem desigualdades de tratamento directa ou indirectamente decorrentes das decisões proferidas ou da própria letra da lei, recusando então a aplicação de tais normas. Assim,
4. Na fixação da indemnização devida e expropriação litigiosa por utilidade pública não é lícito ao Tribunal interpretar ou aplicar preceito legal de modo a introduzir uma grave desigualdade entre os cidadãos residentes numa mesma localidade atingidos e os não atingidos por determinada declaração de utilidade pública, ignorando no cálculo daquela indemnização alegadas vantagens decorrentes da publicação de um PDM posteriormente à declaração de utilidade pública da parcela expropriada, quando é certo que terceiros proprietários ou os próprios expropriados contabilizarão em seu favor as ditas vantagens quando e sempre que, agindo livremente, se disponham a alienar em livre compra e venda as parcelas atingidas pela expropriação.
5. Viola o princípio da igualdade vertido no artº 13º da CR, acabando por ferir ainda a norma do artº 62º daquela mesma Lei, o acórdão que, sob aquele preciso fundamento, fixa um montante indemnizatório inferior àquele que confessadamente os expropriados obteriam se alienassem o terreno em livre compra e venda. E deste modo resulta que
6. O autorizado aresto do Tribunal da Relação do Porto que por tal modo decidiu o vertente litígio se apresenta agora duplamente inconstitucional, já porque viola aquele princípio do artº 13º da CR, já porque fere a regra do artº 62º da mesma Constituição, fixando para o caso valor indemnizatório muito inferior ao normal, real e corrente na localidade da situação dos bens. De resto,
7. A regra vertida no nº 2 do artº 22º do Código das Expropriações desacata os comandos dos artºs 13º, 1º, 6º e 62º da Constituição da República. Ou, quando assim mais autorizadamente não se entenda, seguro será então que,
8. A interpretação feita, no aresto em crise, daquele preceito do Código das Expropriações, apresenta-se ferida por inconstitucionalidade por isso que viola os princípios da igualdade dos cidadãos perante a lei – e as situações dela decorrentes – e da defesa da propriedade privada de imóveis, consentindo numa desapropriação por interesse público sem todavia assinar aos expropriados a adequada e assim justa indemnização. Pelo que e em síntese,
9. Cumpre a esse Alto Tribunal assim mesmo resolver, declarando para a situação vertente a inconstitucionalidade da norma do artº 22º, nº 2, do CE ou, quando menos, a inconstitucionalidade do aresto em crise, em consequência da interpretação nele expendida daquele inciso, ordenando em qualquer dos casos a respectiva reforma por modo a compaginar em concreto a fixação do montante indemnizatório com as disposições constitucionais aplicáveis e, desde logo, com as vertidas nos artºs 13º e 62º da Constituição.'
Por seu lado, as conclusões das alegações da BRISA foram as seguintes:
'1- O mérito da decisão do Tribunal da Relação do Porto que fixou o montante da JUSTA INDEMNIZAÇÃO em expropriação por utilidade pública é matéria que escapa ao conhecimento ou censura do Tribunal Constitucional. De qualquer modo, o Acórdão colocado em crise no presente recurso, decidiu bem, fixou o valor correcto e justo da indemnização, reportando-o, nos termos da Lei aplicável, à data da declaração de utilidade pública.
2- O artigo 22º, nº 2 do Código das Expropriações não viola os princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade e não importa qualquer desacato dos comandos dos artigos 13º, 1º, 6ºe 62º da Constituição da República.'
II
5. Vem o presente recurso interposto ao abrigo da alínea b), do nº 1, do artigo 70º, da Lei do Tribunal Constitucional. Constitui pressuposto deste tipo de recurso a aplicação, na decisão recorrida, de uma determinada norma, cuja inconstitucionalidade tenha sido suscitada pelo recorrente durante o processo. Conforme o Tribunal Constitucional afirmou no acórdão nº 269/94 (Diário da República, II, nº 139, de 18 de Junho de 1994, p. 6020 ss):
'Suscitar a inconstitucionalidade de uma norma jurídica é fazê-lo de modo tal que o tribunal perante o qual a questão é colocada saiba que tem uma questão de constitucionalidade determinada para decidir. Isto reclama, obviamente, que
[...] tal se faça de modo claro e perceptível, identificando a norma (ou um segmento dela ou uma dada interpretação da mesma) que (no entender de quem suscita essa questão) viola a Constituição; reclama, bem assim, que se aponte o porquê dessa incompatibilidade com a lei fundamental, indiciando, ao menos, a norma ou princípio constitucional infringido.'
Esta orientação, assumida pelo Tribunal Constitucional no acórdão citado, tem sido reiterada em jurisprudência constante. O requisito contido na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional só pode ter-se por verificado quando os recorrentes explicitem, de modo preciso, a questão de constitucionalidade, a tempo de o tribunal recorrido sobre ela se poder pronunciar. Recorrendo à formulação adoptada no acórdão nº 560/94 (Diário da República, II, nº 8, de 10 de Janeiro de 1995, p.
363 ss):
' [...] a inconstitucionalidade de uma norma jurídica só se suscita durante o processo quando tal questão se coloca perante o tribunal recorrido a tempo de ele a poder decidir e em termos de ficar a saber que tem essa questão para resolver – o que, obviamente, exige que quem tem o ónus da suscitação da questão de constitucionalidade a coloque de forma clara e perceptível. Bem se compreende que assim seja, pois, se o tribunal recorrido não for confrontado com a questão de constitucionalidade, não tem o dever de a decidir. E, não a decidindo, o Tribunal Constitucional, se interviesse em via de recurso, em vez de ir reapreciar uma questão que o tribunal recorrido julgara, iria conhecer dela ex novo. A exigência de um cabal cumprimento do ónus da suscitação atempada – e processualmente adequada – da questão de constitucionalidade não é, pois [...] uma «mera questão de forma secundária». É uma exigência formal, sim, mas essencial para que o tribunal recorrido deva pronunciar-se sobre a questão de constitucionalidade para que o Tribunal Constitucional, ao julgá-la em via de recurso, proceda ao reexame (e não a um primeiro julgamento) de tal questão.'
6. No caso sub judice, os recorrentes não suscitaram de modo processualmente adequado a questão de constitucionalidade do artigo 22º, nº 2, do Código das Expropriações.
Com efeito, os recorrentes, nas contra-alegações de recurso para o Tribunal da Relação do Porto – a peça processual em que afirmam ter suscitado a questão de constitucionalidade –, respondendo às alegações da BRISA, limitaram-se a apontar que:
'[...] para a nossa ordem jurídica-constitucional, o sacrifício do legítimo interesse privado ao superior interesse público deve reconduzir-se, no processo expropriativo e ao que melhor se entende, à supressão da liberdade (do momento do consenso negocial) na transmissão, assim se compaginando as disposições do artºs 1º, 13º, 62º, nº 2 e 226º, nº1 da Constituição (CR), com as normas dos artºs 1310º do Código Civil (CC) e 1º e 22º e segs. do CE.' (fls. 149 ss, 153).
É esta a única referência ao artigo 22º do Código das Expropriações. E forçoso será concluir que na frase transcrita não se consubstancia qualquer caracterização de inconstitucionalidade da referida norma.
É certo que, em momento posterior, – nomeadamente, na resposta ao convite do Tribunal da Relação do Porto para completar o requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional (fls. 190 ss) –, os recorrentes se alargaram na caracterização da inconstitucionalidade do segmento final do nº 2 do artigo 22º do Decreto-Lei nº 438/91, de 9 de Novembro. Mas esse já não era um momento processualmente adequado para o fazerem. Os recorrentes pretenderam aliás sustentar nessa resposta que, dada a sua posição processual, não tiveram oportunidade de colocar o problema 'de forma mais frontal'. Todavia, a circunstância de a sentença da primeira instância ter sido favorável aos recorrentes não os dispensa do ónus de, em sede de recurso, suscitar a questão da constitucionalidade das normas aplicáveis, designadamente em contraposição à solução defendida pela BRISA.
7. Conclui-se, assim, que não estão verificados, no caso em apreço, os pressupostos de admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
III
8. Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do recurso.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em oito unidades de conta. Lisboa, 16 de Março de 1999 Maria Helena Brito Maria Fernanda Palma Vítor Nunes de Almeida Alberto Tavares da Costa Paulo Mota Pinto Artur Maurício José Manuel Cardoso da Costa