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Procº nº 213/97
1ª SECÇÃO Consº Vitor Nunes de Almeida
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO:
1. - R... intentou contra 'R...,S.A.' e contra a 'RT...,S.A.',uma acção emergente de contrato individual de trabalho, que correu termos pelo Tribunal do Trabalho de Lisboa, pedindo a sua reintegração no posto de trabalho ao serviço da 1ª ré e a sua condenação no pagamento de diferenças salariais e retribuições e ainda outras quantias devidas pelo referido contrato de trabalho. Quanto à 2ª Ré, o autor formulou os seguintes pedidos subsidiários: a condenação no pagamento das quantias quantificadas no pedido formulado contra a 1ª ré, em termos de atribuição de dívidas feita no acto da cisão ou desde a data em que vier a ser considerada entidade patronal do autor, acrescidas de juros e que seja declarado caduco o procedimento disciplinar movido ao Autor e ilícita a decisão do seu despedimento, devendo o Autor ser reintegrado no seu posto de trabalho, de acordo com a sua categoria profissional. Por ter sido declarada extinta a RNIP e o seu património ter sido assumido pelo Estado, o Ministério Público passou a intervir na acção em representação do Estado (artigo 3º, nº1, da LOMP (Lei nº 47/86, de 15 de Outubro), a partir de 25 de Maio de 1996. Tendo-se procedido ao julgamento da causa, veio a ser proferida em 10 de Dezembro de 1996 a sentença final, pela qual se decidiu que a imposição, pela
'RNIP,SA', da mudança do Autor para a Rodoviária do Sul do Tejo, sem a sua concordância, configura um despedimento ilícito, pelo que, em consequência, se julgou a acção parcialmente procedente contra o Estado , que foi condenado no pagamento ao Autor das remunerações desde 1 de Março de 1991, a liquidar em execução de sentença, absolvendo a Rodoviária do Sul do Tejo, SA, do pedido contra ela formulado e o Estado do restante pedido.
2. - A Rodoviária do Sul do Tejo notificada desta decisão veio pedir a sua aclaração em dois pontos: (1) se a decisão efectivamente pretendeu absolver a Rodoviária do Sul do Tejo, S.A. dos pedidos contra ela formulados ou antes, não conheceu do mérito por considerar que esse conhecimento se encontra prejudicado pela decisão proferida quanto à RNIP, SA e pedidos principais; (2) se a ratio decidendi última residiu na inconstitucionalidade pura e simples da alínea p) do artigo 119º do Código das Sociedades Comerciais (adiante, CSC) ou na sua inconstitucionalidade numa dada interpretação. Por decisão de 4 de Fevereiro de 1997, foi proferida a aclaração solicitada, no sentido de que a Ré 'Rodoviária do Sul do Tejo, SA' tinha sido efectivamente absolvida e que 'na sentença considerou-se inconstitucional o artº 119º, p) quando interpretado no sentido de que era possível ordenar ao Autor a sua mudança para a Rodoviária do Sul do Tejo'. Notificada esta decisão às partes, o Ministério Público veio apresentar em 20 de Fevereiro de 1997 - após notificação do despacho que decidiu a aclaração - um requerimento a interpor recurso obrigatório de constitucionalidade, face à recusa de aplicação da alínea p) do artigo 119º do Código das Sociedades Comerciais (adiante, CSC), com fundamento em inconstitucionalidade da interpretação feita na decisão; a 'Rodoviária do Sul do Tejo, SA' veio também recorrer da decisão na parte da recusa de aplicação daquela norma, invocando que
'tem legitimidade autónoma para o presente recurso (artº 72º/1/b, daquele diploma), porquanto a revogação daquele juízo de inconstitucionalidade é susceptível de reconduzir a R. na qualidade de entidade patronal do A. de jure, com as inerentes consequências de ordem patrimonial, ao passo que a manutenção do decidido tem, de igual modo, efeitos patrimoniais, uma vez que esta assumiu, perante o A., a posição de entidade patronal de facto, designadamente através do pagamento de quantias entregues a título de remuneração do trabalho.'. Depois de apresentadas as alegações do Ministério Público e da recorrente
'Rodoviária do Sul do Tejo, SA', o trabalhador e recorrido, nas suas contra-alegações, veio suscitar duas questões prévias. Estas questões vieram a ser decididas pelo Acórdão nº 188/98 (ainda inédito), deferindo a questão prévia da ilegitimidade da 'Rodoviária do Sul do Tejo, Lda' e indeferindo a questão prévia relativa à tempestividade do recurso obrigatório do Ministério Público. Assim, o presente processo prosseguirá apenas para conhecimento do recurso do Ministério Público.
3. - Nas alegações apresentadas neste Tribunal, o Procurador-Geral adjunto em exercício, formulou as seguintes conclusões:
'1º A norma constante da alínea p) do artigo 119º do Código das Sociedades Comerciais, ao estabelecer os requisitos indispensáveis do projecto de cisão de uma sociedade, prescrevendo que a administração desta deve necessariamente tomar posição sobre a atribuição da posição contratual da sociedade a cindir nas relações laborais existentes - que se não extinguem por força da cisão - não pode qualificar-se como sendo respeitante à 'legislação do trabalho', para os efeitos previstos nos artigos 54º, nº5, alínea d) e 56º, nº2, alínea a) da Constituição da República Portuguesa.
2º Tal norma, quando interpretada em termos de que é licito à administração da sociedade determinar a transmissão, sem necessidade do consentimento dos trabalhadores, da posição contratual nas relações laborais existentes para as sociedade que venham a ser constituídas em consequência da cisão, acompanhando aqueles trabalhadores a transferência do património e estabelecimento em que estavam integrados, sem alteração do conteúdo funcional, dos direitos adquiridos e da estabilidade da relação laboral, não colide com o princípio constitucional da segurança no emprego, afirmado pelo artigo 53º da Lei Fundamental.
3º Termos em que deverá proceder o presente recurso, determinando--se a reforma da decisão recorrida em conformidade com o juízo de constitucionalidade da norma desaplicada.' Pelo seu lado o recorrido, R..., conclui as suas contra-alegações na parte agora relevante, pela forma seguinte:
'r) Apenas por mera cautela se acrescenta, quanto aos fundamentos dos recursos. O recorrido considera que a norma da alínea p) do artº 119º do Cód. das Soc. Comerciais não está ferida de inconstitucionalidade, mas por razões diametralmente opostas às adiantadas pela Rodoviária do Sul do Tejo, SA, e sem estar certo de ter compreendido as razões expendidas pelo Estado Português. s) A norma da alínea p) do artº 119º do C.S.C. esclarece que a cisão não opera ipso jure a extinção dos contratos de trabalho dos trabalhadores por conta da sociedade cindida abrangidos, e faz recair sobre as administrações das sociedades a cindir a responsabilidade de definirem a atribuição que propõem das situações empregadoras que titulem, sem lhes conferir poderes para discricionariamente procederem e tal atribuição que tem de obedecer às regras gerais de direito aplicáveis, neste entendimento não sendo a norma em causa inconstitucional; t) Das cisões não resultam sempre transmissões de estabelecimento, envolvendo trabalhadores. Nas alegações do Estado Português cita-se uma passagem do Prof. Doutor Raúl Ventura que expressamente o diz; u) É assim errado dizer-se que a norma da alínea p) do artº 119º do Cód. das Sociedades Comerciais nem é inovadora, porquanto as situações enquadráveis na sua previsão sempre já estariam prevenidas no preceituado no artº 37º do R.C.I.T., onde os direitos dos trabalhadores se encontram salvaguardados; v) Na situação dos autos e noutras comuns, os trabalhadores abrangidos pela cisão não laboram necessariamente numa unidade empresarial autonomizável que, por motivo de cisão vá tornar-se numa sociedade independente, na qual permanecerão os trabalhadores que já prestavam a sua colaboração àquela unidade quando ela ainda se integrava na sociedade cindida;
w) O que frequentemente ocorre é um mero destaque de um activo patrimonial, que vai integrar o capital de uma nova sociedade, que iniciará uma actividade específica, e para isso necessita de ser dotada de trabalhadores que antes não se ocupavam dela, até porque inexistente e podem ser recrutados na sociedade cindida; x) Podem, não porque a administração das sociedades a cindir tenham poder para impôr a sua transferência para a nova sociedade, mas porque têm a responsabilidade de acordar com eles essa transferência, ou optar por os manter ao serviço da cindida;
y) O que de todo é inadmissível, é pretender-se que a alínea p) do artº 119º do Cód. das Sociedades Comerciais contém a virtualidade de, por si, permitir a imposição de uma mudança de entidade patronal, e simultaneamente que tal não constitui matéria essencial de direito laboral; z) Quando da cisão resultar uma transferência de estabelecimento comercial, a modificação subjectiva dos contratos de trabalho será possível, não porém ex vi da alínea p) do artº 119º do Cód. das Sociedades Comerciais, mas pela força do comando do artº 37º do R.C.I.T. Nos casos em que da cisão não resulta a transmissão de estabelecimento, nomeadamente quando se pretende destacar o trabalhador para um local diferente de trabalho causando-se com isso prejuízos sérios, ou quando se pretenda remetê-lo para uma organização onde nunca trabalhou, até porque muitas vezes antes nem existia, das duas uma: o ou se entende que a alínea p) do artº 119º do Cód. das Sociedades Comerciais permite às administrações das sociedades a cindir impôr uma tal transparência aos trabalhadores, e então não pode defender-se que o preceito não seja inovador e não trate de direitos essenciais dos trabalhadores pelo que, não tendo as suas estruturas representativas sido ouvidas e negociado no processo de criação da norma a mesma é inconstitucional; o ou se reconhece que a norma da alínea p) do artº 119º, por si, não permite impôr nada aos trabalhadores, e ela é conforme à Constituição. Não existe tertium genus. aa) É incorrecto argumentar, como o faz a recorrente particular, com a desnecessidade da aprovação dos trabalhadores abrangidos para se proceder à cisão de uma sociedade. Claro que as sociedades, por deliberação das suas assembleias gerais podem cindir-se, podem até dissolver-se. Não podem é fazê-lo como bem entenderem, desprezando os direitos daqueles com quem mantém relações contratuais. No caso das cisões, têm de encontrar soluções, no âmbito da lei laboral, para os contratos de trabalho que, por motivo deles se não extinguem. Nestes termos e nos mais que V.Exas. doutamente suprirão, devem os presentes recursos não ser admitidos, o da Rodoviária do Sul do Tejo, AS por a esta faltar legitimidade para recorrer, o do Estado Português por intempestivo, mas ainda que assim se não decidisse, sempre pelos fundamentos pretendidos pelos recorrentes deviam os recursos improceder, expressando esse Tribunal o entendimento de que a norma da alínea p) do artº 119º do Código das Sociedades Comerciais não atribui ela própria às administrações das sociedades a cindir poderes para procederem unilateralmente a alterações dos contratos dos trabalhadores ao seu serviço, assim se fazendo JUSTIÇA!'
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II - FUNDAMENTOS:
4. - A decisão recorrida desaplicou a norma do artigo 119º, alínea p), do Código das Sociedades Comerciais, aprovado pelo Decreto-Lei nº 262/86, de 2 de Setembro, com fundamento na sua inconstitucionalidade formal e material. A inconstitucionalidade formal derivaria de se ter entendido que a norma em causa
'se integra no universo da legislação laboral para efeitos do que se dispõe nos artigos 55º, alínea d) e 57º,nº2, alínea a), da C.R.P.' (Constituição da República Portuguesa - versão da Lei Constitucional nº 1/82, de 30 de Setembro). Quanto à inconstitucionalidade material ela resultaria de, no entendimento da sentença, interpretada a norma questionada como permitindo que a R.N.I.P. pudesse ordenar a mudança do autor para a nova sociedade resultante da cisão, a
'Rodoviária do Sul do Tejo', ela seria inconstitucional, por violar o princípio da segurança no emprego. Será, de facto, assim? A norma do artigo 119º do CSC insere-se no capítulo X sobre a 'Cisão de sociedades' e regula a obrigatoriedade de a administração da sociedade a cindir elaborar um «projecto de cisão» de onde constem 'além dos demais elementos necessários ou convenientes para o perfeito conhecimento da operação visada', os elementos elencados nas alíneas a) a p). Neste última alínea - que é a que vem questionada - estabelece-se o seguinte: p) a atribuição da posição contratual da sociedade ou sociedades intervenientes, decorrente dos contratos de trabalho celebrados com os seus trabalhadores, os quais não se extinguem por força da cisão'. Importa, antes de mais definir a situação concreta da empresa em causa - a Rodoviária Nacional - para poder apreciar a recusa de aplicação da norma acima referida. O Decreto-Lei nº 288-C/75, de 12 de Junho nacionalizou determinadas empresas de transportes sob aquela designação, para, logo em 1 de Junho de 1976 (pelo Decreto-Lei nº 427-J/76) alterar a denominação para 'Rodoviária Nacional, EP' que, pelo Decreto-Lei nº 12/90, de 6 de Janeiro, foi transformada em sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, sob a designação de
'RNIP-Rodoviária Nacional, Investimentos e Participações, SA', que sucedeu à anterior empresa pública (artigo 2º, nº1). O diploma de 1990 previu a formação de novas sociedades resultantes de cisões simples da RNIP, sendo o capital das novas sociedades exclusivamente por si subscrito ou realizado (artigo 9º, nº1); as cisões e a constituição das novas sociedades seriam documentadas pelas actas das deliberações do C.A. da RNIP que, após as cisões passaria a ser uma sociedade gestora de participações sociais. A RNIP veio a ser dissolvida pelo Decreto-Lei nº 309/94, de 21 de Dezembro. Entretanto, com a publicação da Lei nº 11/90, de 5 de Abril (Lei Quadro das Privatizações), as empresas resultantes da cisão da RNIP foram todas reprivatizadas.
5. - A norma que a decisão recorrida desaplicou com fundamento na sua inconstitucionalidade é uma norma que manteve a sua redacção originária - desde o Decreto-Lei nº 262/86, de 2 de Setembro -, não constando idêntica norma do diploma que, sobre esta matéria, antecedeu o CSC - o Decreto-Lei nº 598/73, de 8 de Novembro, e que regulou a fusão e a cisão de sociedades comerciais. Nos termos do artigo 118º do CSC, é permitido a uma sociedade destacar parte do seu património para com ela constituir outra sociedade (cisão simples) ou dissolver-se e dividir o seu património, sendo cada uma das partes resultantes destinada a constituir nova sociedade (cisão-dissolução) ou ainda, destacar partes do seu património ou dissolver-se, dividindo o património em duas ou mais partes e fundi-las com sociedades já existentes ou com partes do património de outras sociedades (cisão-fusão). Para realizar qualquer das modalidades de cisão, o CSC impõe que a administração da sociedade cinditária ou das sociedades participantes tenham de elaborar um projecto de cisão, de onde constem para além dos elementos necessários para o perfeito conhecimento da operação quer no aspecto jurídico quer económico, os elementos referenciados nas alíneas a) a p), elementos estes que constituem, assim, 'o conteúdo mínimo do projecto de cisão de sociedades'. É assim que se deve entender a norma da 6ª Directiva do Conselho da CEE, de 17 de Dezembro de
1982, que indubitavelmente esteve na base do preceito em apreço. Com efeito, o artigo 3º da Directiva impõe a elaboração de um projecto escrito de cisão e o número 2 do preceito determina que 'o projecto de cisão indicará, pelo menos
(…)'. No caso da sociedade em apreço, uma empresa pública, depois transformada em sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, a administração elaborou um plano de cisões a realizar, fazendo corresponder cada nova sociedade a constituir a cada um dos diferentes Centros de Exploração que a RNIP detinha, sabendo-se de antemão que, após as cisões, a empresa originária se destinava a ser dissolvida, após encerramento da liquidação, nos termos do que se dispunha no artigo 10º do Decreto-Lei nº 309/94, de 2 de Dezembro. Ora, a cisão consiste essencialmente na operação pela qual uma dada sociedade fracciona o seu património activo e ou passivo, extinguindo ou não a sua personalidade para dar origem a novas sociedades ou para juntar a parte destacada do património a outras sociedades. Quanto à alínea p) do artigo 119º do CSC, a sua estatuição é clara e inequívoca: por um lado, enuncia um princípio de direito laboral, que, todavia, nada acrescenta aos princípios já vigentes nesse direito : os contratos de trabalho não se extinguem por força da cisão da sociedade; por outro lado, refere que neste aspecto, o conteúdo do projecto escrito de cisão tem de conter necessariamente a indicação de quem passará a deter a posição contratual decorrente dos contratos de trabalho com a sociedade ou sociedades intervenientes. Embora seja este o conteúdo da norma que, concretamente, foi desaplicada na decisão recorrida, o certo é que, no que se refere à empresa em causa, a específica normação produzida com vista à alteração da sua natureza jurídica e
às posteriores cisões, já continha uma norma com conteúdo idêntico ao do artigo
119º, alínea p) do CSC. Trata-se do nº1 do artigo 10º do Decreto-Lei nº 12/90, de 6 de Janeiro, no qual se determinava que o Conselho de Administração submeterá ao Ministro das Finanças e das Obras Públicas, Transportes e Comunicações, 'o plano geral das cisões a efectuar, com menção e justificação dos seguintes pontos para cada uma das sociedades cuja constituição seja prevista: (…) e) Contratos de trabalho a transmitir'. De qualquer modo, a norma do artigo 119º, alínea p), do CSC, é claramente uma norma garantística, de protecção dos trabalhadores das sociedades intervenientes na cisão: para além de impor que no projecto de cisão conste a quem fica atribuída a posição decorrente dos contratos de trabalho dos trabalhadores das sociedades intervenientes, a norma estabelece expressamente que tais contratos de trabalho não se extinguem com a cisão, devendo ser transmitidos, se se tratar de cisão total ou não, se a cisão for parcial. Poderá considerar-se uma norma com este conteúdo, como ‘legislação do trabalho’, para os efeitos dos artigos 55º, alínea d) e 57º, nº1, alínea a), da Constituição (na versão da Revisão Constitucional de 1982?
6. - De acordo com as referidas normas, as organizações representativas dos trabalhadores (comissão de trabalhadores e associações sindicais) têm direito de
'participar na elaboração da legislação do trabalho'. A Constituição não define o que considera legislação do trabalho, mas a lei ordinária - a Lei nº 16/79, de 16 de Maio - que veio regulamentar o exercício do direito de participação, procurou estabelecer o conceito de ‘legislação do trabalho’, considerando que é a que 'visa regular as relações individuais e colectivas de trabalho, bem como os direitos dos trabalhadores individuais, enquanto tais e suas organizações, especificando depois, exemplificativamente, nas diversa alíneas e no nº2 do preceito. Assim, há que inclui dentro da
‘legislação do trabalho’ normas sobre contrato individual de trabalho e relações colectivas de trabalho, organizações representativas de trabalhadores, direito à greve, salário mínimo nacional e horário nacional de trabalho, formação profissional, acidentes de trabalho e doenças profissionais e a ratificação de convenções internacionais, processo laboral, podendo, em geral, afirmar-se que, de acordo com a jurisprudência do Tribunal Constitucional, o conceito abrange a legislação regulamentar dos direitos fundamentais dos trabalhadores reconhecidos na Constituição (cfr. os Acórdãos nºs 31/84, 15/88, 201/90, 93/92, 146/92 e
155/92, in 'Acórdãos do Tribunal Constitucional', V.s 2º, pág. ;11º, pág.153;
16º, pág.493; 21º, pág.s 91,613 e 677, respectivamente).
A norma constante da alínea p) do artigo 119º do CSC enuncia um dos elementos que deverão constar, nos termos do corpo do artigo, do projecto de cisão que terá de ser elaborado pela administração da sociedade a cindir. A intenção do legislador, como transparece do texto do corpo do artigo, é bem clara: trata-se de, antecipadamente à concretização da operação, reunir 'os elementos necessários ou convenientes para o perfeito conhecimento da operação visada'. E compreende-se que, tendo de haver um acordo de vontades, os participantes devem estar informados dos direitos e deveres que assumirão em consequência desse acordo. É nesse nível que se situa a exigência legal, que de forma nenhuma tem por destinatários os trabalhadores. Quanto a estes, rege o artigo 37º da Lei do Contrato Individual de Trabalho (LCIT), garantindo que a 'posição que dos contratos de trabalho decorre para a entidade patronal transmite-se ao adquirente, por qualquer título, do estabelecimento onde os trabalhadores exerçam a sua actividade ...' da qual se retira o princípio geral do direito do trabalho: o princípio da subsistência dos contratos de trabalho, independentemente de quem for, no momento, a respectiva entidade patronal. Certo é que na alínea p) em questão se refere que os contratos de trabalho se não extinguem com a cisão. O contexto em que vem inserida esta afirmação não permite, contudo, que se atribua à alínea valor sequer confirmativo do regime geral. Nessa parte, a norma é meramente informativa, como se o legislador pretendesse lembrar a quem vai elaborar o projecto que os contratos de trabalho não podem dar-se como extintos em consequência da fusão. O projecto a elaborar não poderá entrar em linha de conta com os efeitos que, hipoteticamente resultariam da extinção de alguns contratos. Nesta medida a alínea p) não se projecta, nem sequer reflexamente, na esfera jurídica dos trabalhadores. Só forçando a interpretação para além do que razoavelmente se extrai do texto é que se encontrará uma tutela dos mesmos, sediada no processo de formação de vontades que, inclusivamente, em face dos termos em que se propõe a realização da operação, poderão não vir a formalizar o acordo projectado. Uma norma deste tipo não é «legislação do trabalho» para o efeito de exigir a prévia audição das organizações representativas dos trabalhadores. Com efeito, em tal conceito tem-se considerado caberem as normas que respeitam directamente à regulamentação e efectivação de todos os direitos fundamentais reconhecidos aos trabalhadores na Constituição, mas não já as normas que apenas tutelem indirecta e reflexamente esses direitos. Nestes termos, tem de se concluir que não se verifica no caso dos autos a inconstitucionalidade formal da norma do artigo 119º, alínea p) do CSC, ainda que do respectivo diploma que o aprovou não conste qualquer indicação de terem sido ouvidas as organizações representativas dos trabalhadores, por violação dos artigos 55º, alínea d) e 57º, nº1, alínea a), da Constituição (na versão da Revisão Constitucional de 1982).
7. - Quanto à inconstitucionalidade material, resultaria ela, segundo a decisão recorrida, de, na hipótese de a norma em causa vir a ser interpretada como permitindo que a R.N.I.P. pudesse ordenar a mudança do autor para a nova sociedade resultante da cisão, a 'Rodoviária do Sul do Tejo', então, tal norma seria inconstitucional, por violar o princípio da segurança no emprego. Na base desta tese encontra-se o entendimento de que o confronto com a garantia da segurança no emprego resulta de se considerar que a mudança do trabalhador deriva de uma decisão unilateral da entidade empregadora. É o que resulta do seguinte passo da decisão recorrida:
'Pode, neste passo, questionar-se em que medida, é que a mudança do A., por decisão unilateral da entidade empregadora, da sociedade cindida para a nova sociedade afecta aquela garantia. O mesmo será questionar-se em que medida o artigo 119º, alínea p) (a interpretar-se como dando uma faculdade à sociedade a cindir de decidir do destino dos contratos de trabalho) colide com a garantia de segurança do emprego.' Pode, desde logo, questionar-se se o artigo 119º, p), permite uma tal interpretação, uma vez que dele apenas consta a obrigação, para a administração da sociedade a cindir, de elaborar um projecto de cisão, do qual conste, entre outros elementos, a atribuição da posição contratual da sociedade ou sociedades intervenientes decorrente dos contratos de trabalho. Ora, o certo é que a elaboração do projecto de cisão nada resolve, pois, tal projecto tem de ser registado e deve ser submetido a deliberação dos sócios da sociedade ou sociedades intervenientes, se for caso disso (artigo 100ºdo CSC aplicável à cisão de sociedades por força do artigo 120º do mesmo diploma), sendo indispensável a convocação de uma assembleia geral para deliberar sobre o projecto de cisão e só a deliberação desta assembleia é decisiva para a efectivação do projecto. De qualquer modo, mesmo aceitando a interpretação que é feita pela decisão recorrida, parece claro que o princípio constitucional da segurança no emprego não é por ela violado. Vejamos. A Constituição, no seu artigo 53º estabelece que 'é garantida aos trabalhadores a segurança no emprego, sendo proibidos os despedimentos sem justa causa ou por motivos políticos ou ideológicos.' Esta garantia demonstra a natureza essencial do direito ao trabalho e a sua ligação à dignidade do homem, interferindo de modo directo com a ordenação das relações contratuais de trabalho. A garantia constitucional da segurança no emprego pressupõe, desde logo, a garantia da estabilidade da posição do trabalhador na relação de trabalho e a sua não funcionalização aos interesses do empregador. Daí que sejam proibidos os despedimentos sem justa causa, não podendo o trabalhador ser privado do seu trabalho por mero arbítrio patronal. Todavia, a garantia constitucional em apreço não obsta à consagração legal de certas causas de rescisão unilateral do contrato de trabalho pela entidade patronal com base em fundamentos objectivos. Também aquela garantia, se obsta a que o trabalhador seja despedido contra sua vontade, já não impede que ele se despeça unilateralmente, desde que fique ressalvado o direito da entidade empregadora a um adequado aviso ou ao ressarcimento de eventuais prejuízos. Ora, uma norma como aquela que está em causa nos autos e que se limita a estabelecer a obrigatoriedade de um projecto de cisão no qual se atribua a posição que para as sociedades envolvidas decorre dos contratos de trabalho e que expressamente se determine que tais contratos de trabalho se não extinguem por força da cisão, não pode, de todo em todo, violar a garantia da segurança no emprego, tal como resulta da norma do artigo 53º da Constituição. Com efeito, garantida que está, por força da parte essencial do referido comando normativo, a manutenção dos contratos de trabalho, que não poderão cessar pelo facto da cisão, desta transformação da entidade empregadora apenas pode resultar a transmissão dos mesmos contratos: ou de todos eles, no caso de a empresa cinditária se dissolver ou extinguir ou de parte para a ou para as novas empresas formadas pela cisão. O que significa que a mera mudança de entidade patronal continuando garantida a continuação das relações laborais, não pode violar a garantia de segurança no emprego, uma vez que não só persiste o contrato de trabalho, mantendo os trabalhadores o direito à antiguidade, à retribuição e às regalias de que gozava, como também a própria lei ordinária, ao impor a transmissão dos contratos de trabalho, não pode deixar de significar que a modificação da entidade empregadora não constitui um facto que, de per si, impossibilite a subsistência do vínculo laboral. Não ocorre, por conseguinte, a inconstitucionalidade material da norma da alínea p) do artigo 119º do Código das Sociedades Comerciais, que a decisão recorrida considerou verificada por violação da segurança no emprego, constante do artigo
53º da Constituição. Tem, pois, de proceder o presente recurso, uma vez que já antes se concluiu que não se verificava também a inconstitucionalidade formal da mesma norma, em que assentou a decisão recorrida.
III - DECISÃO: Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide não julgar inconstitucional a norma da alínea p) do artigo 119º do Código das Sociedades Comerciais, concedendo assim provimento ao presente recurso determinando, em consequência, a reforma da decisão recorrida em conformidade com o presente julgamento de constitucionalidade. Lisboa, 1999.03.02 Vítor Nunes de Almeida Maria Fernanda Palma Alberto Tavares da Costa Maria Helena Brito Paulo Mota Pinto Artur Maurício José Manuel Cardoso da Costa